segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Demétrio Magnoli – O reino sem a rainha

O Globo

Elizabeth II perpetuou no presente o passado sem manchas

Dinastias encarnam tradição, continuidade. Charles III, sangue do sangue de Elizabeth II, não precisaria ter prometido seguir o exemplo de sua mãe. Mas, nas democracias modernas, ser não é suficiente; as coisas devem parecer. E, por mais que ele se esforce, nunca poderá ocupar o lugar simbólico da rainha falecida.

No início da Segunda Guerra Mundial, diante da campanha aérea alemã contra Londres, o governo britânico ensaiou um plano de evacuação de Elizabeth, 14 anos, e sua irmã, Margaret, 9, para o Canadá. A rainha-mãe cortou a ideia pela raiz:

— As meninas não sairão se eu não sair; eu não sairei se o rei não sair, e o rei não sairá jamais.

No momento da rendição alemã, em maio de 1945, as duas adolescentes receberam permissão para, anônimas, juntarem-se às multidões que celebravam nas ruas.

Já se registrou, muitas vezes, que Elizabeth II conectava o Reino Unido a seu passado. É mais que isso: a rainha que reinou mais longamente na História britânica perpetuou o passado no presente. Sua figura congelou o tempo da triunfante resistência ao nazismo, ofuscando o declínio geopolítico do reino. O poderoso mito da vitória na guerra cobriu, com seu manto, o inexorável desaparecimento do “Império onde o sol nunca se põe”. Nascido em 1948, Charles III representa exclusivamente uma época de escassas glórias.

Elizabeth II já sentava no trono em 1956, ano da humilhação na Guerra de Suez, e ao longo do período seguinte, marcado pela independência da Índia e das colônias africanas. Contudo a redução do Império à Comunidade Britânica associou-se aos governos conservadores ou trabalhistas, não à rainha, espelho de um passado sem manchas.

Sem o Império, na condição de potência média, o Reino Unido juntou-se à Comunidade Econômica Europeia (CEE) para exercer a influência internacional possível. Elizabeth II entendeu a trajetória e abraçou o europeísmo. Em 1972, às vésperas do ingresso britânico, definiu a CEE como “um grande empreendimento”. Duas décadas depois, na hora do Tratado de Maastricht, descreveu-a como “um modelo de paz e progresso”.

Finalmente, em 2015, às portas do plebiscito que provocaria a saída da União Europeia, referiu-se à Europa como “nosso continente”, algo inusual na política britânica, e alertou:

— Sabemos que a divisão na Europa é perigosa e que devemos evitá-la.

E, ainda, dez dias antes da decisão plebiscitária, em meio às comemorações de seu 90º aniversário, mencionou “os benefícios que fluem da unidade dos povos por uma meta comum”.

O reino sem a Europa vai perdendo a bússola estratégica. Durante a campanha interna no Partido Conservador, Liz Truss foi indagada sobre o francês Emmanuel Macron: “amigo ou adversário?”. A resposta da ex-secretária do Exterior evidenciou um caos político e intelectual:

— O júri ainda não decidiu.

No Dia D, que Elizabeth acompanhou na flor de seus 18 anos, soldados britânicos desembarcaram na Normandia para libertar a França. Reino Unido e França formam os pilares europeus da Otan. O que a rainha terá pensado, semanas antes de morrer, da declaração da nova primeira-ministra?

Sem a Europa, o reino arrisca sua própria unidade. Na Irlanda do Norte, o Brexit reativou as tensões entre católicos e protestantes, atualizando a questão da reunificação irlandesa. Na Escócia, governada por um partido nacionalista, a maioria parlamentar reivindica um novo plebiscito sobre a independência. Charles III encara, na esteira de sua proclamação, o desafio de impedir a fragmentação britânica.

A missão não é simples. A unidade estatal britânica repousa sobre a monarquia, sobre uma tradição de sangue. Mas, nos dias que correm, o sangue não basta: a legitimidade depende do consentimento popular. Por isso, enquanto o caixão da rainha era velado, o rei engajou-se em visitas oficiais às nações que compõem o reino. A turnê não podia ficar para depois: Charles III precisava ser o corpo vivo de Elizabeth II nos encontros com os chefes de governo das quatro nações, que são seus súditos. O encanto do passado deve sujeitar, por mais algum tempo, as forças centrífugas do presente.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente artigo,como sempre.