O Estado de S. Paulo
Importância do direito à ciência é crescente
em função da velocidade com que a cultura científica altera as condições da
vida
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
foi adotada e proclamada pela Assembleia-Geral da ONU em 10 de dezembro de
1948. Ela tem o significado de um evento inaugural ao reconhecer a importância
do “direito a ter direitos” das pessoas como critério organizador da
convivência coletiva. Ela traçou uma política de direito que foi aprofundando
por meio de tratados internacionais o alcance de uma plataforma emancipatória
do ser humano, inerente ao seu preâmbulo e ao articulado dos seus 30 artigos.
Uma dimensão emancipatória contemplada pela
declaração que tem sido menos destacada é o direito à ciência. Trata-se, como
diz o enunciado do seu artigo 27, de um direito de participar “do progresso
científico e de seus benefícios”. Sua importância é crescente em função da
velocidade do processo com o qual a cultura científica da pesquisa básica e
aplicada altera de maneira constitutiva as condições da vida no interconectado
mundo contemporâneo.
É o que gera novos riscos e oportunidades para o ser humano, por exemplo no âmbito da saúde e do meio ambiente que só a ciência tem condição de gestionar.
Daí o alcance do direito à ciência que a
declaração anteviu, com clarividência, e que se contrapõe à intransitividade
negacionista do seu papel.
O artigo 27 não existe por si só. Integra o
articulado dos quatro pilares da arquitetura da Declaração Universal.
É no seu abrangente contexto de
interdependência e complementaridade que a declaração especifica a obrigação
positiva de estender a todos os benefícios da criatividade humana. Tem como
base a abrangente afirmação universal da generalização do princípio da
igualdade e o seu corolário lógico – a não discriminação, pelo qual se iniciou,
no século 17, nos âmbitos nacionais, a sua positivação. É o que dispõe a
Declaração Universal no seu pórtico (artigos 1 e 2) para recorrer à formulação
de René Cassin, que foi um de seus redatores. O pórtico é o pano de fundo que
inspirou a elaboração da declaração, elaborada na perspectiva ex parte populi e
não na visão de governantes e dos riscos do arbítrio da “razão de Estado”, pois
tem como fonte material as atrocidades do Holocausto nazista.
É por essa razão que os direitos humanos, no
seu conjunto, no dizer do jurista italiano Luigi Ferrajoli, formulam “leis dos
mais débeis que se contrapõem à lei dos mais fortes”, na dinâmica dos laços
entre o indivíduo e a sociedade.
A declaração não se circunscreve a enfrentar
os problemas que estão na sua origem e que continuam presentes. Projetou, com
suas normas, valores fundamentais modeladores do futuro. É o caso do direito à
ciência, como destaca Andrea Boggio. Com efeito, o artigo 27 realça e aponta
para a importância crescente, no mundo contemporâneo, dos vínculos entre
ciência, sociedade e suas instituições.
O Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, na vis directiva da declaração, retoma
a importância da matéria. Seu artigo 15 reconhece a cada indivíduo o direito de
“desfrutar o progresso científico e suas aplicações” e afirma a obrigação do
Estado de “respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica”.
Reconhece igualmente os benefícios do fomento à cooperação internacional no
domínio da ciência, que embasa a atualidade da diplomacia da ciência a que me
dediquei no período em que presidi a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp).
O avanço do conhecimento científico e os
benefícios de suas descobertas ampliam o escopo do direito à saúde e da
assistência médica na prevenção e tratamento das enfermidades e das epidemias.
É o que permite dar maior efetividade à saúde como bem público.
É no âmbito do meio ambiente e da
transversalidade dos seus problemas que a ciência desempenha um papel crítico
no encaminhamento dos seus crescentes desafios. A Declaração de Estocolmo de
1972 destacou premonitoriamente o papel da ciência e da tecnologia para
descobrir, evitar e combater os riscos que ameaçam o meio ambiente e conceber
soluções para seu encaminhamento.
Na Conferência do Rio de 1992, que acompanhei
de perto como seu vice-presidente, relembro que a ciência e o conhecimento
foram a fonte material das duas grandes convenções que dela emanaram: a do
clima e a da diversidade biológica. Ambas enfatizaram nas suas normas a
relevância do papel da ciência para o aprofundamento dos compromissos dos
Estados, na dinâmica da regularidade de suas COPs.
Desnecessário reiterar os riscos que rondam a
sustentabilidade do mundo que a ciência desvenda e ao mesmo tempo oferece um
horizonte de descobertas para uma gestão em benefício da humanidade dos seres
que a integram.
Em síntese, o direito à ciência ilumina o
papel da ciência e do conhecimento na condução das políticas públicas e na
diplomacia das negociações internacionais, adensa a relevância da diplomacia da
cooperação internacional na matéria e destaca o papel da ciência como um meio
próprio de aprimorar a convivência coletiva – o valor fundante inspirador da
Declaração Universal.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992, 2001-2002).
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