Folha de S. Paulo
Caos só pode ser contido por plenitude democrática e por reeducação da vida, isto é, das mediações institucionais
Há muito se fala de terra, com razão, como
grande questão
social brasileira. Depois, a racial. Agora a segurança
pública subiu ao pódio, a gravidade tem sacudido a letargia
oficial. Enxuga-se gelo. Mas também se verifica que paliativos pontuais aliviam
a sensação de insegurança, em especial durante megaeventos como o Réveillon carioca,
tranquilo este ano.
É imperativo, porém, associar anomia criminosa à violência estrutural, de proporções alarmantes, como condição da profunda desigualdade social, que exaspera as situações de carência e abre espaço para discursos populistas, cada vez mais corruptores da institucionalidade democrática.
Aos prováveis argumentos de que sempre foi
assim e que, portanto, não haveria correlação entre estrutura e aumento de
violência, convém lembrar que o populismo de direita carrega fatores
intrínsecos de disrupção. Para efeitos eleitorais, faz do populismo
penal-midiático panaceia contra a insegurança, enquanto na prática a incrementa
por disseminação de armas, a título de liberalismo da autoproteção. Desde o
desgoverno passado, a farra dos CACs é cúmplice do crime organizado.
Não só armas. A tradição marcial japonesa
estatui: "conter o espírito de violência". É que, além de força em
ato, violência implica estado de ânimo avesso à educação social, entendida por
John Dewey como "a própria vida". A afecção destrutiva de corpos
nasce na recusa de limites à potência, danosa a noções comuns como confiança e
segurança. Violência não é força vital nem insanidade agressiva. É cultural,
tem espírito e, se estimulada, cola como segunda pele em carrascos e vítimas.
Entre nós, a superestimulação coincide com a
emergência do extremismo na década passada, junto à violência das redes e dos
cultos que alimentam pulsões de ódio e de morte. Imagem exemplar: a
vândala-golpista que, no 8/1, empunhava marreta e se ajoelhava para
rezar. A rede de webcrentes é um deserto humano portátil.
Na palavra caos, sintetizam-se fatores: além
da anomia e do brutalismo intrínseco da estrutura, implosão de valores
imanentes aos vínculos humanos. Não é a ausência de disciplina cívica que
desencadeia o caos, mas circunstâncias permissivas da fascistização social.
Celebrar instituições implica abrir os olhos à sua ambiguidade de casa-grande,
para tentar transformá-las desde dentro.
A segurança de mercado, dita
"pública", não depende desse ou daquele ministro, e sim de uma ampla
ação pactuada do Estado formal, que periga sucumbir ao paralelo se não retomar
o domínio territorial. Mas o espírito de violência só é contido por plenitude
democrática e por reeducação da vida, isto é, das mediações institucionais. Sem
isso, resta ao povo comum ir levando. Ao governo, pilotar o caos.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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