Objetividade é essencial à reforma administrativa
O Globo
Legislativo e Executivo fazem bem em trazer tema à pauta. Risco é perder
foco em debates estéreis
É bem-vinda a intenção manifestada pelo presidente da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), de desengavetar a reforma administrativa. Menos por méritos
específicos da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) parada na Câmara e mais
por recolocar em discussão uma reforma necessária e urgente, fundamental para
aperfeiçoar a gestão do Estado e melhorar os serviços prestados ao cidadão.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta resistências conhecidas ao abordar o tema, por estar sob constante vigilância dos sindicatos ligados ao PT. Prova disso foi já ter convocado para março um concurso unificado para contratar 6.600 novos servidores públicos federais, quando o ideal seria contratá-los dentro de um novo regime. Mesmo assim, diante de um movimento que se desenha inevitável, o Executivo tomou a iniciativa de elaborar uma proposta alternativa de modernização da gestão de pessoal, a cargo dos ministros da Gestão e Inovação, Esther Dweck, e da Fazenda, Fernando Haddad.
Ambos destacam o óbvio: a premissa deve ser melhorar a qualidade do
serviço prestado à população. Não há quem discorde. As divergências começam
quando se discute como. Várias iniciativas encaminhadas no Congresso deveriam
ser aproveitadas. Seria um erro recomeçar a discutir do zero um tema sobre o
qual já se acumulou tanto conhecimento e tanta frustração.
Um dos pontos críticos em que o governo acerta é a iniciativa para
reduzir o número de cargos na máquina, hoje ao redor de 150, para algo entre 20
e 30. Racionalidade nas carreiras é o mínimo a exigir de qualquer política de
gestão. Uma característica do serviço público é oferecer salários iniciais
superiores aos da iniciativa privada. O servidor costuma chegar ao topo em
pouco tempo e perde qualquer estímulo para se qualificar. Outra intenção
sensata do governo é reduzir o salário inicial, para tornar a carreira mais
lenta.
O governo esquece, porém, um ponto fundamental: é preciso haver mais
flexibilidade para a máquina burocrática estatal ganhar eficiência e prestar
melhores serviços. Nem são necessárias grandes mudanças. Primeiro, é positiva a
ideia de contratar funcionários por meio da CLT, como já ocorre em autarquias,
fundações e estatais. Segundo, é imprescindível regulamentar o remédio trazido
pela Constituição ao engessamento do setor público: o inciso do artigo 41
segundo o qual o servidor poderá ser demitido “mediante procedimento de
avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada
ampla defesa”. Definir como será a avaliação e sua periodicidade é vital. Para
isso, basta maioria absoluta do Senado e da Câmara.
Por fim, é preciso dar também atenção ao Projeto de Lei que acaba com os
artifícios usados para inflar os salários de procuradores, juízes, militares e
da elite do funcionalismo. Não pode existir uma reforma que deixe de lado as
categorias mais privilegiadas, habituadas a definir benesses em causa própria.
De modo geral, em vez de apostar em mudanças complexas de difícil aprovação, os parlamentares deveriam centrar foco na regulamentação da avaliação de desempenho, na demissão de servidores mal avaliados, na limitação dos supersalários e no enxugamento das carreiras de Estado. É preciso ser objetivo e tratar logo as principais questões para que a discussão sobre uma reforma tão urgente não seja mais uma vez adiada.
Taxa
de investimentos aquém do necessário limita crescimento
O Globo
Depois de subir no pós-pandemia, indicador voltou a cair em 2023 e
continua abaixo do que seria razoável
Um dos problemas crônicos da
economia brasileira é a dificuldade de ampliar os investimentos na capacidade
produtiva, condição necessária para o país ganhar produtividade e gerar mais
riqueza. Tecnicamente, o componente do PIB conhecido como Formação Bruta de
Capital patina. A mais nova radiografia do problema vem dos dados do Sistema de
Contas Nacionais, do IBGE, consolidados pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea).
Pelos últimos números do IBGE,
a taxa de investimentos estava em 16,6% no terceiro trimestre do ano passado,
quase 2 pontos percentuais abaixo dos dois anos anteriores. Para um país com as
necessidades de crescimento do Brasil, o ideal seria ao redor de 25%, mas o
máximo que os investimentos já alcançaram desde o início deste século foi 21,5%
em 2014. A curva de investimentos costuma seguir a da poupança, também aquém do
ideal.
Os investimentos líquidos —
deduzida a depreciação das instalações — até se recuperaram em 2021, depois do
baque da pandemia. Na construção de infraestrutura houve um salto de 15%,
mantendo a tendência observada em 2020, segundo escreveram os economistas José
Ronaldo de Souza Júnior e Felipe Moraes Cornelio na última Carta de Conjuntura
do Ipea. Mas a recuperação não teve fôlego. De junho a setembro de 2023 houve
apenas um efeito estatístico com a redução na depreciação de máquinas,
equipamentos e outras estruturas de produção. No penúltimo trimestre do ano, os
investimentos caíram 6,8% em relação ao trimestre anterior.
O zigue-zague é típico de um
país em que os empresários não têm confiança em ampliar os negócios. A
insegurança sobre as regras em vigor e o ambiente incerto e hostil ao capital
persistem. No final do ano, a reforma tributária surgiu como esperança de mais
estímulo aos investimentos, mas é primeiro necessário saber como ela será
regulamentada, diz Bráulio Borges, economista sênior da LCA e pesquisador
associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas
(Ibre/FGV). Só depois disso, em 2025, será possível observar os efeitos sobre
os investimentos das empresas.
Borges cita dados da
consultoria especializada Inter.B para constatar nosso atraso. Segundo ele, o
Brasil teria de investir de 3,5% a 4% do PIB ao longo de 20 anos em
infraestrutura para alcançar o padrão de países de renda per capita comparável.
Mas investe apenas entre 1,8% e 1,9%. Esse patamar insatisfatório explica a
propensão da economia brasileira a crescer a taxas baixas. Qualquer aumento no
poder aquisitivo da população esbarra nos limites de produção, e os preços
sobem — um beco cuja única saída é criar um ambiente de negócios mais
acolhedor, com menos incertezas tributárias e jurídicas, para que as empresas
tenham mais segurança na hora de destinar seu capital à expansão da capacidade
produtiva.
Viagem ao passado
Folha de S. Paulo
Com retomada de refinaria e plano de Mantega
na Vale, Lula revisita velhos erros
Uma característica de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) em seu terceiro mandato é a falta de compromisso com os fatos quando
tenta reabilitar fracassos de suas gestões anteriores, sejam obras ou pessoas.
Entre os empreendimentos, um dos mais
notórios é a desastrosa refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, exemplo completo
de mandonismo, corrupção e incompetência gerencial nas administrações petistas,
cuja construção será agora retomada pela Petrobras.
Concebida com o parceiro ideológico Hugo
Chávez para processar petróleo venezuelano, o projeto foi todo bancado pelo
Brasil. As obras consumiram US$ 18 bilhões, quase dez vezes o orçamento
original, e foram paralisadas em 2015 com a exposição dos escândalos na
Petrobras. Só a primeira unidade da refinaria foi inaugurada, em 2014.
A estatal agora promete que gastará
"apenas" mais R$ 8 bilhões para ampliar a capacidade da unidade existente
e completar a construção de outra. A promessa é elevar o processamento de 100
mil para 260 mil barris por dia de petróleo a partir de 2027, e assim reduzir a
necessidade de importação de diesel.
Lula foi ao canteiro de obras e se pôs a
proferir falsidades, entre elas a risível tese
de conspiração estrangeira contra a Petrobras e a velha
cantilena do entreguismo de elites subservientes.
Os fatos, explicitados pelo Tribunal de
Contas da União em caderno sobre o projeto lançado em 2021, são diferentes. O
que houve foi o completo estouro das contas e o comprometimento da empresa num
"ousado esquema de corrupção e desvio de recursos".
As questões de fundo, a que infelizmente o
governo não se preocupará em responder, são se faz sentido completar a
refinaria e, em caso afirmativo, se é a Petrobras a mais indicada a fazê-lo.
Dirigentes afirmam que com os recursos
adicionais o projeto será rentável. É até plausível que seja (se
desconsideradas as perdas anteriores), mas as contas precisam ser mostradas. A
mesma promessa foi feita no início do projeto e depois ficou demonstrada a
absoluta fragilidade das premissas.
É difícil acreditar que Lula e o PT tenham
aprendido algo com os erros do passado quando seu governo alimenta abertamente
o plano abilolado de conduzir
Guido Mantega, o ministro que geriu o colapso econômico de Dilma Rousseff, ao
comando da Vale —uma empresa privatizada há 27 anos, mas ainda
sob influência do Estado.
É com ideias como essas que se procura
convencer que mais um plano de política industrial, prestes a ser anunciado com
subsídios estatais e exigências de conteúdo local, evitará a repetição de
desperdícios, favorecimentos e resultados pífios do passado.
Receita psicodélica
Folha de S. Paulo
Austrália autoriza uso medicinal de MDMA e
psilocibina; Brasil segue refratário
O renascimento psicodélico, como se
convencionou chamar o retorno de
drogas alteradoras da consciência à farmacopeia psicoterápica,
torna-se realidade na Austrália. Dois pacientes receberam as primeiras
prescrições de MDMA (conhecido como ecstasy) para transtorno de estresse
pós-traumático.
Está em vigor desde julho a concessão de
licenças especiais para que psiquiatras daquele país possam receitar a droga
para essa condição, mas somente agora dois médicos pioneiros cumpriram todas as
exigências burocráticas.
Com o certificado, eles podem ainda prescrever
psilocibina (princípio ativo dos cogumelos ditos "mágicos") para
depressão.
Ambos receberam treinamento específico para
se credenciar, uma exigência da Administração de Bens Terapêuticos, órgão
equivalente à Anvisa na Austrália. O curso se deu na organização não
governamental Mind Medicine, que fez campanha pela regulamentação de
psicoterapias assistidas por substâncias psicodélicas.
Fala-se em retorno dessas drogas à medicina
porque algumas delas, LSD incluído, tiveram uso clínico nas décadas de 1950-60.
Desapareceram do receituário com a proibição no calor da guerra às drogas dos
anos 1970, contudo nos dois últimos decênios dúzias de testes clínicos vêm
demonstrando seu potencial terapêutico.
Nos Estados Unidos, onde a tal guerra
começou, MDMA passou bem por ensaios de fase 3 e teve pedido de licença
submetido à agência de fármacos FDA para tratar estresse pós-traumático
—transtorno que acomete centenas de milhares de ex-combatentes de guerras. Se
não houver percalços, a autorização pode sair ainda neste ano.
Autoridades australianas se adiantaram e,
após rever a literatura recente, concluíram pela oportunidade de permitir a
administração das duas substâncias apenas para as condições mencionadas, de
modo muito restrito. Isso porque vários dos pacientes em questão não obtêm bons
resultados com as terapias tradicionais disponíveis.
Trata-se de lógica humanitária que está longe
de encontrar guarida no Brasil. Aqui, até o uso medicinal da maconha —já com
largo emprego nos EUA e noutros países— ainda encontra barreiras ditadas mais
por ideologia e pânico moral do que por evidências.
Um campo novo se abre para a saúde mental com o uso controlado de psicodélicos. Falta ousadia, que sobra na Austrália.
A decomposição de Moro
O Estado de S. Paulo
Com aniquilação moral do ex-juiz e da Lava Jato, tem-se, como consequência, redenção moral de tantos quantos foram pilhados em falcatruas ao longo das investigações anticorrupção
No inesquecível desabafo do presidente Lula
da Silva em março do ano passado, ao comentar seus dias na prisão, havia um quê
de maldição: “Só vai estar tudo bem quando eu f… esse Moro”. Ao que parece, não
era apenas o petista que estava com essa obscena disposição de vingança contra
Sérgio Moro. O hoje (ainda) senador da República, que foi ministro da Justiça
do governo Jair Bolsonaro, juiz da Lava Jato e, nessa condição, algoz de
políticos e empresários de variados carizes, está em acelerado processo de decomposição.
Em dezembro passado, segundo se soube há
poucos dias, o ministro Dias Toffoli determinou a abertura de um inquérito no
Supremo Tribunal Federal contra Moro e algumas das estrelas do time da Lava
Jato, a pedido da Procuradoria-Geral da República, num caso de duas décadas
atrás. Eles são acusados por um empresário e ex-deputado estadual paranaense de
tê-lo obrigado a atuar como uma espécie de “agente infiltrado” para grampear
políticos e empresários. Como o inquérito corre sob sigilo, não há muitos
detalhes, mas o que veio a público é assustador – o suficiente para dizimar o
pouco que ainda restava de credibilidade de Sérgio Moro e daquele time da Lava
Jato.
A esta altura, pouco importa o desdobramento
desse caso. Pode-se dizer que a eventual comprovação de inocência de Moro e dos
demais suspeitos é irrelevante, pois o estrago para a reputação dos envolvidos
já estará feito. Não serão poucos os que aqui verão uma espécie de justiça
poética, uma vez que a Lava Jato, consciente e ativamente, usou o vazamento de
pormenores picantes das investigações como uma espécie de antecipação do
julgamento dos suspeitos, levando a opinião pública a relacioná-los implacavelmente
à corrupção e a outros crimes diversos mesmo antes de qualquer comprovação,
quase sempre com base apenas em delações e muitas vezes ao arrepio das
garantias constitucionais.
Mas o infortúnio de Sérgio Moro e do time da
Lava Jato não parece ser um fato isolado, e sim parte de uma espiral de
desmoralização total da operação que messianicamente pretendeu salvar o Brasil
da corrupção. Desde o momento em que o Supremo decidiu, entre abril e junho de
2021, desqualificar Sérgio Moro para julgar Lula da Silva, deixando o petista
livre para concorrer à Presidência, parece haver uma sistemática tentativa de
tratar a Lava Jato como essencialmente maligna e de considerar que todos os acusados
pela operação como pobres vítimas do lavajatismo.
Essa percepção foi reforçada pelo próprio
ministro Toffoli quando, ao anular as provas de inaudita corrupção obtidas a
partir da delação de executivos da
Odebrecht, qualificou a prisão de Lula como
“um dos maiores erros judiciários da história do País”, fruto de uma “armação”
da Lava Jato – cujos operadores, segundo Toffoli, tinham um “projeto de poder”,
de “conquista do Estado”, chocando o “ovo da serpente dos ataques à
democracia”. Ou seja: a Lava Jato resumia, em si mesma, tudo o que de pior
havia no País.
A julgar pelo andar da carruagem,
descobriremos em breve que nunca houve corrupção na Petrobras, que todas as
provas e confissões foram inventadas e que tudo não passou de um plano doentio
para destruir reputações e para arruinar o Brasil – como, aliás, voltou a
afirmar o presidente Lula da Silva na quinta-feira passada, quando declarou que
a Petrobras foi vítima de “mancomunação” entre a turma da Lava Jato e o governo
americano. Como escreveu a colunista Elena Landau neste jornal, “mais um pouco,
vamos ter de pagar indenização para corruptos confessos”.
Com a aniquilação moral de Sérgio Moro e da
Lava Jato, tem-se, como consequência natural, a redenção moral de tantos
quantos foram pilhados em falcatruas diversas ao longo das trepidantes
investigações anticorrupção na história recente. Ressalve-se que obviamente não
se trata de ver aí uma ação concertada entre os diversos interessados, ainda
que seja tentador ligar os pontos, mas é inevitável constatar que há poucos
insatisfeitos com o destino de Sérgio Moro – desmoralizado por Bolsonaro,
desqualificado pelo Supremo e possivelmente despejado do Congresso. Que fim
melancólico para aquele que se dispôs a ser a palmatória do mundo.
Avança no País o uso de câmeras corporais
O Estado de S. Paulo
Questionadas por quem despreza os direitos
dos cidadãos, as câmeras nos uniformes policiais são adotadas em 11 Estados,
enquanto 4 já estão adquirindo e outros 9 estudam fazê-lo
O total de câmeras corporais em uso contínuo
pelas Polícias Militares (PMs) quadruplicou nos últimos dois anos, informou
reportagem do Estadão. Um avanço tanto em número de câmeras em operação (quase
28 mil, contra cerca de 6 mil há dois anos) quanto na quantidade de Secretarias
Estaduais de Segurança Pública que as adotam – hoje são 11 Estados usando as
chamadas bodycams nos uniformes de policiais, dos quais 8 com uso permanente e
3 em fase de testes. A estes se somam 4 Estados em fase de aquisição, enquanto
outros 9 estudam adotar a tecnologia. São números auspiciosos sobre a
implementação de um programa que tem resultados positivos a apresentar, é
ancorado nas melhores evidências nacionais e internacionais e abre um novo
horizonte sobre a atividade policial e a ação das forças de segurança – mas,
apesar de tudo isso, enfrenta ataques severos por parte de autoridades e
corporações.
Digam o que disserem seus detratores, essa
inovação veio para ficar como valioso instrumento para a segurança pública e a
garantia dos direitos dos cidadãos. Mais do que uma tecnologia, é uma política
pública utilizada em diversos países – Estados Unidos, Reino Unido e Canadá
entre eles – para reduzir o uso indevido da força, melhorar a produtividade,
criar mecanismos de gestão, formação e controle da atividade policial e
assegurar meios de transparência da ação estatal nessa área. A câmera tende a
reduzir a truculência durante as abordagens policiais, contribui para a
produção de provas judiciais e para a formação dos agentes públicos e freia a
impunidade dos maus policiais, antes protegidos pela ausência de informação
detalhada de suas ações.
Os melhores resultados estão na redução da
letalidade policial. Em São Paulo, por exemplo, segundo o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública e o Unicef, houve queda de 62,7% nos óbitos decorrentes de
intervenções policiais entre 2019 e 2022. A adoção das câmeras nos uniformes
não foi o único fator, mas certamente contribuiu para reduzir as ocorrências. A
pedido do comando da PM paulista, a Fundação Getulio Vargas produziu outro
estudo apontando seu efeito direto e chegou a um número eloquente: as câmeras evitaram
104 mortes na região metropolitana em 14 meses analisados. Também reduziram em
57% o número de mortes decorrentes de ações policiais em relação a unidades
policiais onde, até aquele momento, não havia a implantação da tecnologia. Essa
mesma tendência foi constatada em Santa Catarina.
São evidências nada triviais, mas ao que
parece ainda insuficientes para convencer tanto o governador Tarcísio de
Freitas quanto o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, que volta
e meia ou minimizam um programa bem-sucedido ou sugerem mudanças para
desidratá-lo. O governador chegou a questioná-lo com todas as letras. Os
números mencionados acima informam o contrário. E episódios ruidosos como a
Operação Escudo, realizada no ano passado, também desabonam o injustificado
ceticismo do governador. Com quase 30 mortes em 40 dias, foi a operação
policial mais letal do Estado desde o massacre do Carandiru, em 1992, com
suspeitas de abuso e de execução sumária por parte da polícia. E ninguém sabe
ao certo o que ocorreu porque os policiais não estavam usando as câmeras
corporais ou mantinham seus equipamentos desligados.
Ou seja, seu uso é também uma forma de
proteger policiais contra falsas acusações. Também assegura a possibilidade de
reconhecer boas práticas e reduzir a violência sofrida pelos próprios
policiais, além de fortalecer a prova produzida por eles. Eis aí um ponto
fundamental: com câmeras em uniformes, população e policiais são beneficiados e
protegidos. Diferentemente do que pensam alguns, a medida vai muito além de
comprar câmeras e acoplá-las aos uniformes. Há um longo trabalho em
infraestrutura, treinamento, convencimento interno das corporações,
compartilhamento seguro de evidências e alteração dos currículos na formação
policial.
No limite, todos ganham. Ou quase todos.
Perde quem acredita em operações espetaculosas, em baixa necessidade de
inteligência e investigação e nas ilusões armadas como o caminho mais adequado
para enfrentar a violência.
Os dilemas da China
O Estado de S. Paulo
População em queda e PIB com crescimento
modesto acendem alertas para a economia mundial
A população da China encolheu em 2023, pelo
segundo ano consecutivo, e está em franco processo de envelhecimento, segundo
dados oficiais de Pequim. A redução, em apenas um ano, de 2 milhões de
habitantes, o equivalente a todos os moradores de Manaus (AM), pode parecer
efêmera diante do contingente total de 1,4 bilhão de chineses – o segundo maior
dentre todos os países. Mas, ao contrário, o dado dispara mais um alarme para a
economia mundial. À persistente queda populacional somam-se as incertezas sobre
a retomada do crescimento econômico em patamares sustentáveis. Trata-se de
dilemas de difícil solução.
O cenário preocupante na China tende a puxar
para baixo as previsões de desempenho da economia global nesta e nas próximas
décadas. Terá repercussão, em particular, para o Brasil. Os resultados
positivos na balança comercial e parte significativa do Produto Interno Bruto
(PIB) tornaram-se dependentes da demanda chinesa nos últimos anos e assim podem
se manter.
O crescimento econômico da China de 5,2% em
2023, pouco acima da estimativa de Pequim, não chega a trazer conforto.
Escamoteia o fato de ter sido calculado sobre a base fraca do ano anterior e,
certamente, traz ajustes nada transparentes para adequar-se às expectativas do
mercado – uma prática comum em tempos bicudos. Fato é que a crise do setor
imobiliário, uma das principais alavancas da atividade chinesa, e os efeitos da
pandemia de covid19 sobre a atividade não foram ainda contornados.
Os dilemas do crescimento econômico baixo e
da população em declínio e em acelerado processo de envelhecimento não são
desprezíveis. Significam que a força de trabalho chinesa sofrerá recuos mais
robustos do que os já observados nos últimos anos. A solução exige uma política
agressiva – e custosa – de aumento da produtividade, ainda em patamares pífios
quando comparada à das principais economias mundiais. Porém, o país hesita em
investir em mecanismos inovadores no grosso de sua indústria manufatureira, ancorada
na ainda abundante oferta de mão de obra com pouca qualificação.
Pequim certamente tem ciência de seus
desafios. Mas insiste no estímulo ao crescimento da natalidade, como se fosse
uma panaceia. Desconsidera o contexto de elevado custo de vida para sua
crescente população urbana neste período pós-pandemia. O fim da opressiva
política de “um só filho”, mantida a ferro e fogo pelo governo chinês por 35
anos, não trouxe os resultados esperados nos últimos oito anos.
Não se espera pausa – muito menos recuo – na tendência de redução da população enquanto o governo de Xi Jinping não entregar melhores condições de vida aos chineses. Do crescimento vigoroso e da melhor partilha de seus benefícios depende também a sobrevivência do próprio regime. O pacto social na China é, sem dúvida, assegurado pelo extraordinário poder de coerção do Estado. Mas, em um território gigantesco, com 1,4 bilhão de habitantes, a passividade requer ganho econômico como contrapartida.
Os custos de um mundo em conflito
Correio Braziliense
Depois de todos os encargos impostos pela
pandemia da covid, apostava-se em condições melhores para a economia mundial,
mas todo esse quadro benigno tende a se desintegrar ante os conflitos
geopolíticos
Depois de todos os encargos impostos pela
pandemia da covid — milhões de vidas perdidas, inflação em disparada e juros
nas alturas —, apostava-se em condições melhores para a economia mundial e, por
consequência, para a população. Com as cadeias de suprimentos globais
normalizadas e os preços para empresas e consumidores acomodados, criou-se uma
enorme expectativa em torno de um movimento geral de redução do custo do
dinheiro. Mas todo esse quadro benigno tende a se desintegrar ante os conflitos
geopolíticos que têm se espalhado feito rastilho de pólvora por várias regiões
do planeta. As consequências, dizem especialistas, podem sem dramáticas.
O foco de maior atenção está no Mar Vermelho,
por onde transitam 12% do comércio mundial. Trata-se da principal rota de
mercadorias entre a Europa e a Ásia, mais precisamente, a China. Diante dos
ataques dos houthis do Iêmen às embarcações que por ali transitam, as grandes
transportadoras estão sendo obrigadas a buscar alternativas, como o Cabo da Boa
Esperança, no sul da África, o que provocou um salto nos fretes marítimos.
Todos se lembram que apenas o encalhe de um navio, o Ever Given, em 2021, no Canal
de Suez, por alguns dias, já foi suficiente para acender o sinal de alerta no
sistema de logística global. Agora, a preocupação ganhou contornos muito
maiores.
Mesmo estando em uma localização
privilegiada, podendo suprir, sem transtornos, o leste dos Estados Unidos, o
norte da Europa e a África, o Brasil tende a pagar um preço alto pelos
conflitos que ameaçam tomar conta do Oriente Médio e de parte da Ásia. O país é
um grande exportador de proteínas animais para as nações árabes, que consomem
29,4% da produção nacional. No ano passado, foram vendidas para o Oriente Médio
1,5 milhão de toneladas desses produtos, por US$ 3,1 bilhões. Além de a
propagação de guerras pôr em risco o comércio com a região, há a elevação nos
valores cobrados pelas transportadoras. As sobretaxas chegam a US$ 1,5 mil
por contêiner embarcado.
Não só. Como os cargueiros estão tendo de
percorrer caminhos mais longos, o número de embarcações disponíveis tenderá a
diminuir, já que vão demorar mais tempo para chegar aos destinos. Isso joga por
terra a projeção de que, em 2024, haveria sobras de navios para o comércio
internacional, empurrando os preços dos fretes para baixo. O resultado será uma
economia global mais fraca, com inversão para cima da curva de inflação e
adiamento da tão esperada queda das taxas de juros nos Estados Unidos e na Europa.
O afrouxamento da política monetária é vital para que as nações desenvolvidas
não descambem para a recessão, uma ameaça latente.
Todo esse cenário nebuloso ocorre num momento
em que não há lideranças capazes de comandar um entendimento pela paz. Os
Estados Unidos estão entrando em um complicadíssimo processo eleitoral. A
Europa está fragmentada e perdeu parte de sua relevância diplomática. De outro
lado, há países como Rússia e Irã para os quais o tensionamento geopolítico é
estratégico para acentuar as divisões. Os custos das incertezas recaem sobre
todos, e o Brasil não está imune, dada a dependência da cadeia global de
suprimentos, escancarada pela crise sanitária provocada pelo novo coronavírus.
Em meio a esses conflitos, há os efeitos das mudanças climáticas. O Canal do Panamá, por onde passam 6% do comércio mundial, enfrenta a maior seca da história. Apenas 24 embarcações estão sendo autorizadas a cruzá -lo por dia. A alternativa de muitas empresas tem sido recorrer a outros modais de transportes, como o aéreo e o ferroviário, a custos mais elevados. Tudo isso confirma tempos complicados para o mundo, que arcará com uma fatura alta. Nesse contexto, resta ao Brasil fazer o dever de casa e reduzir ao máximo os riscos internos. Será o caminho mais indicado para amenizar as turbulências externas que estão por vir.
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