Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Na terça-feira da semana passada, o noticiário destacava a avaliação feita, em reunião dos ministros do STF, da comprovação de grampos telefônicos envolvendo um membro da corte e um senador como "o fato mais grave das relações institucionais" desde a promulgação da Constituição de 1988. No mesmo dia, circulava a notícia de que o chamado "maníaco de Guarulhos" confessara, com pormenores convincentes, o assassinato de Vanessa Batista de Freitas, e éramos alertados de que três homens de condições socioeconômicas modestas estavam encarcerados pelo mesmo crime há dois anos, sob prisão preventiva que ultrapassava de muito os prazos legais, com denúncia baseada em confissão obtida sob tortura e acolhida pela Justiça, não obstante a alegação dos envolvidos, segundo os jornais, de que teriam informado repetidamente às autoridades judiciais sobre as condições em que teriam sido levados a confessar.
Na quarta-feira, matéria de Lilian Christofoleti na "Folha de S.Paulo", baseada em dados do Departamento Penitenciário Nacional e em levantamentos da CPI do Sistema Carcerário, especialmente do deputado Domingos Dutra, revelava que o país tem 9 mil presos com pena já cumprida e nada menos de 133 mil em prisão preventiva (30% da população carcerária), não raro há anos. Como comenta o deputado: "Não encontramos nenhum colarinho-branco, só ´colarinho-preto´. Muitos jovens, pobres e negros". A matéria de Christofoleti destaca, como é natural, o contraste da situação descrita com a rapidez da ação do STF, há pouco, ao libertar duas vezes, em menos de dois dias, o banqueiro Daniel Dantas.
A ordem que a Justiça deveria combater
Não há como negar a importância do caso dos grampos. É evidentemente inaceitável, seja qual for o responsável, que agentes policiais ou "arapongas" de qualquer tipo possam dedicar-se a espionar comunicações privadas com a desenvoltura que estamos observando, tanto mais se a espionagem alcança até altas autoridades. Mas pretender atribuir aos grampos a gravidade especial apontada pelos ministros do STF exige a visão paranóica sugerida em fórmulas como "relações institucionais" ou "relações entre instituições" que as notícias sobre o assunto tendem a destacar: a sugestão é, naturalmente, a de que se trataria ou de um enfrentamento entre os poderes constitucionais, com os grampos revelando disposições autoritárias do poder executivo, que agiria ilegalmente contra os outros poderes, ou, quando nada, da movimentação de atores capazes, de algum modo, de efetivamente subverter o quadro institucional.
Mas, além do fato simples de que ministros importantes do governo, segundo se informa, são também alvo dos grampos, é difícil imaginar o que o governo poderia ter a ganhar com o patrocínio de ações de espionagem como as que vieram a público. São muitas as circunstâncias a confundirem toda a história: as disputas entre facções da Polícia Federal e suas ramificações sobre a Abin; o caráter de herança de um órgão sinistro da ditadura que marca esta última e que talvez impregne em alguma medida a perspectiva de seus integrantes, especialmente dada a definição pouco clara do que de fato lhe compete; a frouxidão com que a própria Justiça tem autorizado as escutas; a animosidade de membros da PF e de juízes de primeira instância relativamente ao STF que aflorou com decisões recentes dele; o fato de que até o Congresso, como se revelou, dispõe de aparelhos de espionagem... O que vemos, tudo indica, não passa de nova face da desordem que permeia o Estado brasileiro, ou de nossas precariedades institucionais gerais. Menos mal, diante disso, que venha aparentemente prevalecendo o que caberia esperar de sensato, isto é, a mobilização dos atores decisivos dos diferentes poderes para adotar, em colaboração, as necessárias medidas corretivas.
De todo modo, as precariedades institucionais se tornam mais evidentes diante da mera coincidência da manifestação do STF sobre "o fato mais grave" com as notícias que de novo evidenciam dramaticamente o descalabro do sistema penal e penitenciário do país, a envolver pesadamente o Judiciário. Estamos diante de clara corroboração da relevância da observação a que aqui recorri anteriormente, a propósito de estudos relativos à operação da Justiça na América Latina em geral: ela aponta um Judiciário com frequência preocupado e sensível quanto à dimensão "madisoniana" dos "freios e contrapesos" e do equilíbrio entre poderes, por um lado, e, por outro, na verdade distante e largamente insensível quanto à dimensão "hobbesiana" do acesso geral dos cidadãos à garantia dos seus direitos.
Ao cabo, somos remetidos ao sentido e ao alcance a serem atribuídos à própria idéia do aparato institucional em perspectiva política e mesmo juridicamente ambiciosa. Falei acima de desordem. Há, porém, um sentido sociologicamente denso em que o contraste entre os dois anos de prisão preventiva dos inocentes de São Paulo e a presteza da dupla libertação de Daniel Dantas pelo STF é parte da "ordem" - de uma ordem que há muito conforma a realidade brasileira. E que caberia por certo esperar que uma Justiça institucionalmente enraizada de maneira mais apropriada viesse ajudar a mudar.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Na terça-feira da semana passada, o noticiário destacava a avaliação feita, em reunião dos ministros do STF, da comprovação de grampos telefônicos envolvendo um membro da corte e um senador como "o fato mais grave das relações institucionais" desde a promulgação da Constituição de 1988. No mesmo dia, circulava a notícia de que o chamado "maníaco de Guarulhos" confessara, com pormenores convincentes, o assassinato de Vanessa Batista de Freitas, e éramos alertados de que três homens de condições socioeconômicas modestas estavam encarcerados pelo mesmo crime há dois anos, sob prisão preventiva que ultrapassava de muito os prazos legais, com denúncia baseada em confissão obtida sob tortura e acolhida pela Justiça, não obstante a alegação dos envolvidos, segundo os jornais, de que teriam informado repetidamente às autoridades judiciais sobre as condições em que teriam sido levados a confessar.
Na quarta-feira, matéria de Lilian Christofoleti na "Folha de S.Paulo", baseada em dados do Departamento Penitenciário Nacional e em levantamentos da CPI do Sistema Carcerário, especialmente do deputado Domingos Dutra, revelava que o país tem 9 mil presos com pena já cumprida e nada menos de 133 mil em prisão preventiva (30% da população carcerária), não raro há anos. Como comenta o deputado: "Não encontramos nenhum colarinho-branco, só ´colarinho-preto´. Muitos jovens, pobres e negros". A matéria de Christofoleti destaca, como é natural, o contraste da situação descrita com a rapidez da ação do STF, há pouco, ao libertar duas vezes, em menos de dois dias, o banqueiro Daniel Dantas.
A ordem que a Justiça deveria combater
Não há como negar a importância do caso dos grampos. É evidentemente inaceitável, seja qual for o responsável, que agentes policiais ou "arapongas" de qualquer tipo possam dedicar-se a espionar comunicações privadas com a desenvoltura que estamos observando, tanto mais se a espionagem alcança até altas autoridades. Mas pretender atribuir aos grampos a gravidade especial apontada pelos ministros do STF exige a visão paranóica sugerida em fórmulas como "relações institucionais" ou "relações entre instituições" que as notícias sobre o assunto tendem a destacar: a sugestão é, naturalmente, a de que se trataria ou de um enfrentamento entre os poderes constitucionais, com os grampos revelando disposições autoritárias do poder executivo, que agiria ilegalmente contra os outros poderes, ou, quando nada, da movimentação de atores capazes, de algum modo, de efetivamente subverter o quadro institucional.
Mas, além do fato simples de que ministros importantes do governo, segundo se informa, são também alvo dos grampos, é difícil imaginar o que o governo poderia ter a ganhar com o patrocínio de ações de espionagem como as que vieram a público. São muitas as circunstâncias a confundirem toda a história: as disputas entre facções da Polícia Federal e suas ramificações sobre a Abin; o caráter de herança de um órgão sinistro da ditadura que marca esta última e que talvez impregne em alguma medida a perspectiva de seus integrantes, especialmente dada a definição pouco clara do que de fato lhe compete; a frouxidão com que a própria Justiça tem autorizado as escutas; a animosidade de membros da PF e de juízes de primeira instância relativamente ao STF que aflorou com decisões recentes dele; o fato de que até o Congresso, como se revelou, dispõe de aparelhos de espionagem... O que vemos, tudo indica, não passa de nova face da desordem que permeia o Estado brasileiro, ou de nossas precariedades institucionais gerais. Menos mal, diante disso, que venha aparentemente prevalecendo o que caberia esperar de sensato, isto é, a mobilização dos atores decisivos dos diferentes poderes para adotar, em colaboração, as necessárias medidas corretivas.
De todo modo, as precariedades institucionais se tornam mais evidentes diante da mera coincidência da manifestação do STF sobre "o fato mais grave" com as notícias que de novo evidenciam dramaticamente o descalabro do sistema penal e penitenciário do país, a envolver pesadamente o Judiciário. Estamos diante de clara corroboração da relevância da observação a que aqui recorri anteriormente, a propósito de estudos relativos à operação da Justiça na América Latina em geral: ela aponta um Judiciário com frequência preocupado e sensível quanto à dimensão "madisoniana" dos "freios e contrapesos" e do equilíbrio entre poderes, por um lado, e, por outro, na verdade distante e largamente insensível quanto à dimensão "hobbesiana" do acesso geral dos cidadãos à garantia dos seus direitos.
Ao cabo, somos remetidos ao sentido e ao alcance a serem atribuídos à própria idéia do aparato institucional em perspectiva política e mesmo juridicamente ambiciosa. Falei acima de desordem. Há, porém, um sentido sociologicamente denso em que o contraste entre os dois anos de prisão preventiva dos inocentes de São Paulo e a presteza da dupla libertação de Daniel Dantas pelo STF é parte da "ordem" - de uma ordem que há muito conforma a realidade brasileira. E que caberia por certo esperar que uma Justiça institucionalmente enraizada de maneira mais apropriada viesse ajudar a mudar.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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