Fonte: Gramsci e o Brasil
Em Salve Geral, Lúcia ajeita os cabelos diante do espelho, enquanto espera ser atendida pela proprietária do salão de beleza: Ruiva, advogada cafajeste, cúmplice dos criminosos, que se dispôs a ajudar seu filho. Atrás do espelho falso, Ruiva a observa. Ela é a antípoda de Lúcia, recatada mãe de família, viúva devotada ao filho, levado à prisão quase inadvertidamente, como “o estrangeiro” de Camus. Lúcia e Ruiva, a mãe apolínea e a mãe dionisíaca, miram-se na imagem invertida de si mesmas. Estão condenadas a tornarem-se a outra. A protetora, que encarna o modelo da mãe idealizada, sacrifica-se, vendendo o piano, instrumento de sua realização pessoal — profissional e narcísica. Sacrifica-se de novo pelo filho, aproximando-se do PCC, e acaba participando do círculo de reciprocidade entre presos e seus comparsas libertos, intermediando relações perigosas. Finalmente, para redimir o filho e libertá-lo (Édipo às avessas), adota nova linguagem corporal e se entrega apaixonadamente ao Outro, ao homem que reúne em si todos os signos da alteridade: um dos líderes presos da facção criminosa.
A travessia conduz Lúcia à posição de Ruiva. Fragilizada, vulnerável, Lúcia termina, involuntariamente, assumindo o lugar de quem mata. A maldição do espelho cumpre-se. A cena que sintetiza Salve Geral antecipa seu desfecho. O lugar da vulnerabilidade passa a ser ocupado por Ruiva. A metamorfose de Lúcia liberta o filho, mas, em certo sentido, também a liberta da camisa de força do arquétipo (sociocultural e psicológico) da mãe pura e piedosa, que sacrifica pelo filho o próprio desejo. Essa liberdade, mesmo precária, depende da visita ao inferno. Lúcia liberta-se de si e renuncia ao paraíso artificial de uma vida de tempos mortos e pianíssimos. Ela adere ao próprio desejo e devolve ao filho a liberdade — ainda que desidealizada, maculada com sangue.
O filme de Sérgio Rezende submete a violência ao jogo de espelhos e substitui as posturas maniqueístas e simplificadoras por uma inquietante ambiguidade, muito mais verdadeira do que as fábulas do senso comum. De que lado estão, afinal, os mocinhos? O filme derrota esse vocabulário empobrecedor e essa interpretação unilateral. A janela que se abre sobre os fenômenos da violência é especular. Quem olhar bem para si encontrará o outro indesejável. O ódio ao mal corresponde à vontade culpada de exorcizá-lo de si mesmo. Duvidemos do discurso punitivo e vingativo.
Um quadro análogo nos oferece 9mm, a extraordinária série produzida por Roberto D’Ávila, escrita sob a coordenação de Newton Cannito, sobretudo no episódio 13 —também dedicado ao dia em que São Paulo parou —, dirigido por Michael Ruman. Neste episódio também estão contemplados os vínculos familiares: a relação angustiada da inspetora Luisa com a filha distante (maternidade incompleta, portanto); a paternidade incompleta do inspetor Horácio, cujo símbolo ostensivo é a fome de amor de seu enteado, Gilson; a tardia descoberta do pai por parte do delegado Eduardo (paternidade incompleta); a orfandade do detetive 3P, criado pela tia, cujo primo é irmão incompleto e incompleto inimigo: metade parceiro, metade seu avesso. A solidão do detetive Tavares, que vive a incompletude: nega sua origem para fazer-se policial e é traído por seu grupo social de referência.
Em diálogo cruzado com temas que aludem à crise do PCC, em 2006, e à segunda parte do livro Elite da Tropa, a trama do episódio 13 de 9mm mostra a cidade beijando a lona quando policiais, liderados pelo primo corrupto de 3P, sequestram a irmã do líder do “partido” para provocar a guerra e executar criminosos. Mas o processo sai do controle e as autoridades rendem-se à negociação.
A costurar a trama, uma criança em andrajos, ferida, terrível mediadora entre domínios da cidade. Ela perambula pelas ruas desertas como sonâmbulo espectral disseminando o medo, transitando entre a fantasia paranoica, a antevisão do futuro e a condenação do passado. Esse personagem magnífico faz o papel do coro grego: vocaliza a cidade dos invisíveis. Para conter a violência foi preciso contar com um time de heróis demasiadamente humanos, marcados pela incompletude. Só assim eles poderiam frequentar o mundo das margens, dialogar com ele e “resolver” o problema. As fronteiras terminam suprimidas, as culpas distribuídas com equidade, o claro escuro maniqueísta substituído pela polifonia de responsabilidades. Em suma, leitor: você quer conhecer a violência? Comece olhando no espelho. Do lado de lá estará quem você não conhece, embora íntimo. Eis o recado de ambas as obras.
Luiz Eduardo Soares é coautor de Tropa de elite e Espírito Santo.
Em Salve Geral, Lúcia ajeita os cabelos diante do espelho, enquanto espera ser atendida pela proprietária do salão de beleza: Ruiva, advogada cafajeste, cúmplice dos criminosos, que se dispôs a ajudar seu filho. Atrás do espelho falso, Ruiva a observa. Ela é a antípoda de Lúcia, recatada mãe de família, viúva devotada ao filho, levado à prisão quase inadvertidamente, como “o estrangeiro” de Camus. Lúcia e Ruiva, a mãe apolínea e a mãe dionisíaca, miram-se na imagem invertida de si mesmas. Estão condenadas a tornarem-se a outra. A protetora, que encarna o modelo da mãe idealizada, sacrifica-se, vendendo o piano, instrumento de sua realização pessoal — profissional e narcísica. Sacrifica-se de novo pelo filho, aproximando-se do PCC, e acaba participando do círculo de reciprocidade entre presos e seus comparsas libertos, intermediando relações perigosas. Finalmente, para redimir o filho e libertá-lo (Édipo às avessas), adota nova linguagem corporal e se entrega apaixonadamente ao Outro, ao homem que reúne em si todos os signos da alteridade: um dos líderes presos da facção criminosa.
A travessia conduz Lúcia à posição de Ruiva. Fragilizada, vulnerável, Lúcia termina, involuntariamente, assumindo o lugar de quem mata. A maldição do espelho cumpre-se. A cena que sintetiza Salve Geral antecipa seu desfecho. O lugar da vulnerabilidade passa a ser ocupado por Ruiva. A metamorfose de Lúcia liberta o filho, mas, em certo sentido, também a liberta da camisa de força do arquétipo (sociocultural e psicológico) da mãe pura e piedosa, que sacrifica pelo filho o próprio desejo. Essa liberdade, mesmo precária, depende da visita ao inferno. Lúcia liberta-se de si e renuncia ao paraíso artificial de uma vida de tempos mortos e pianíssimos. Ela adere ao próprio desejo e devolve ao filho a liberdade — ainda que desidealizada, maculada com sangue.
O filme de Sérgio Rezende submete a violência ao jogo de espelhos e substitui as posturas maniqueístas e simplificadoras por uma inquietante ambiguidade, muito mais verdadeira do que as fábulas do senso comum. De que lado estão, afinal, os mocinhos? O filme derrota esse vocabulário empobrecedor e essa interpretação unilateral. A janela que se abre sobre os fenômenos da violência é especular. Quem olhar bem para si encontrará o outro indesejável. O ódio ao mal corresponde à vontade culpada de exorcizá-lo de si mesmo. Duvidemos do discurso punitivo e vingativo.
Um quadro análogo nos oferece 9mm, a extraordinária série produzida por Roberto D’Ávila, escrita sob a coordenação de Newton Cannito, sobretudo no episódio 13 —também dedicado ao dia em que São Paulo parou —, dirigido por Michael Ruman. Neste episódio também estão contemplados os vínculos familiares: a relação angustiada da inspetora Luisa com a filha distante (maternidade incompleta, portanto); a paternidade incompleta do inspetor Horácio, cujo símbolo ostensivo é a fome de amor de seu enteado, Gilson; a tardia descoberta do pai por parte do delegado Eduardo (paternidade incompleta); a orfandade do detetive 3P, criado pela tia, cujo primo é irmão incompleto e incompleto inimigo: metade parceiro, metade seu avesso. A solidão do detetive Tavares, que vive a incompletude: nega sua origem para fazer-se policial e é traído por seu grupo social de referência.
Em diálogo cruzado com temas que aludem à crise do PCC, em 2006, e à segunda parte do livro Elite da Tropa, a trama do episódio 13 de 9mm mostra a cidade beijando a lona quando policiais, liderados pelo primo corrupto de 3P, sequestram a irmã do líder do “partido” para provocar a guerra e executar criminosos. Mas o processo sai do controle e as autoridades rendem-se à negociação.
A costurar a trama, uma criança em andrajos, ferida, terrível mediadora entre domínios da cidade. Ela perambula pelas ruas desertas como sonâmbulo espectral disseminando o medo, transitando entre a fantasia paranoica, a antevisão do futuro e a condenação do passado. Esse personagem magnífico faz o papel do coro grego: vocaliza a cidade dos invisíveis. Para conter a violência foi preciso contar com um time de heróis demasiadamente humanos, marcados pela incompletude. Só assim eles poderiam frequentar o mundo das margens, dialogar com ele e “resolver” o problema. As fronteiras terminam suprimidas, as culpas distribuídas com equidade, o claro escuro maniqueísta substituído pela polifonia de responsabilidades. Em suma, leitor: você quer conhecer a violência? Comece olhando no espelho. Do lado de lá estará quem você não conhece, embora íntimo. Eis o recado de ambas as obras.
Luiz Eduardo Soares é coautor de Tropa de elite e Espírito Santo.
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