O Globo
Esse é um governo que viola regras não
escritas, ignora decisões judiciais e não parece muito preocupado com
liberdades civis
Na semana passada, a OpenAI assinou seu primeiro grande contrato com o governo americano. É um contrato de desenvolvimento de modelos avançados de inteligência artificial para o Departamento de Defesa com teto fixado em US$ 200 milhões. Na madrugada entre sábado e domingo, os Estados Unidos usaram a bomba mais potente de seu arsenal, excluindo as nucleares. Não foi uma, foram 14. Fizeram um ataque que George W. Bush, Barack Obama e Joe Biden poderiam ter feito, tiveram a possibilidade de fazer, as razões para fazer e que, no fim, não fizeram. Uma notícia parece não ter nada a ver com a outra. Mas tem.
O risco na decisão de Donald Trump é
muito simples: a inteligência americana e a israelense estarem erradas. A
primeira não anteviu o 11 de Setembro e garantiu que o Iraque tinha armas de
destruição em massa. Erros catastróficos. A segunda não viu o Hamas organizar
o pior pogrom desde a Segunda Guerra. Erro catastrófico. São, sim, algumas das
agências de inteligência mais capazes do planeta. Mas erram; e erram muito
feio.
Não há qualquer dúvida de que o Irã havia
enriquecido urânio a 60%. Isso foi medido por técnicos da Agência Internacional
de Energia Atômica nos laboratórios bombardeados no fim de semana. Para
produção de energia ou uso civil, não há nenhuma razão de enriquecer além de
20%. O Irã diz que enriqueceu nesse nível por acidente. Acredita quem quiser
ser bobo. Para levar a 90%, com o equipamento que o Irã tinha em mãos, é coisa
de duas a três semanas. É nesse nível que se produz armamento nuclear.
As agências de inteligência têm certeza de
que sabem onde estava o urânio do Irã, onde estavam as centrífugas. Se
estiverem erradas e houver um quarto laboratório secreto, com equipamento e
urânio enriquecido o bastante, o risco de o regime dos aiatolás decidir que
precisa dessas armas acabou de ir lá para cima. O governo daquela ditadura,
neste momento, está acuado. Em seu ponto de maior fragilidade.
O problema da decisão de Trump é que ela é
incoerente. Ele se elegeu falando no fim de guerras externas como a do Iraque.
Não é que seja ideológico demais — é o contrário. Num governo que mistura o
velho Partido Republicano neoconservador, com sede de intervenções externas, e
a extrema direita nativista, que fala em América Primeiro, expulsão de
imigrantes e fechamento de fronteiras comerciais, ele oscila. Trump não tem uma
visão ideológica do mundo, no sentido de que vai de um lado ao outro, às vezes
parece, dependendo de quem entrou no Salão Oval naquela tarde. É imprevisível,
toma decisões sem método. Já sabíamos que era capaz de aumentar e diminuir
tarifas comerciais aleatoriamente, pondo em risco a economia mundial. Agora
sabemos que pode decidir em três dias fazer um ataque que mesmo o mais belicoso
ex-presidente americano dos últimos 50 anos achou prudente evitar.
A decisão de ataque pode se provar correta,
no fim. Mas foi sustentada por uma aposta temerária. Neste momento, Elon Musk deve
estar lá na Califórnia arrancando os poucos cabelos que ainda tem de raiva por
a OpenAI, empresa que fundou e com que rompeu, ter ganhado o primeiro contrato
pesado de IA do governo americano. Mas esse contrato não foi para o
Departamento de Educação, de Saúde ou mesmo de Estado. Foi para o Pentágono.
Para as Forças Armadas. No release da empresa, está sublinhado que o objetivo é
melhorar a burocracia interna e que os princípios da companhia não serão
violados. Pode ser.
Não há regras claras para uso de IA na
maioria dos setores. E, como muitos dos projetos militares são, por natureza,
secretos, será preciso confiar apenas na palavra da OpenAI de que seus
princípios foram respeitados. Mesmo dentro da empresa, poucos funcionários
terão acesso às decisões. Em vários experimentos com jogos de guerra, em que
IAs são convidadas a tomar decisões militares em certos cenários, foi detectado
que seu viés tende a ser escalar conflitos.
Não é só isso. IAs como as que temos hoje são
uma ferramenta formidável para controle populacional, previsão de comportamento
humano futuro. Podem identificar detalhes a respeito de cada um de nós que nem
sequer imaginamos. Esse é um governo que viola regras não escritas, ignora
decisões judiciais e não parece muito preocupado com liberdades civis. E botará
a melhor companhia de IA do planeta para desenvolver IA militar.
Quem não estiver preocupado é porque não
entendeu alguma coisa.
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