DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
À medida em que se aproxima a campanha eleitoral, mais evidente se torna que o eleitorado e o País precisam de uma nova pauta de discussões, para decidir sobre os nossos rumos. Uma pauta que fuja aos limites em que se tem concentrado até aqui - quem fez mais, o atual governo ou o anterior? - e busque resposta para graves questões que estão no cotidiano. A mais urgente é saber como se pretende mudar o quadro social, enfrentar a pobreza extrema e a miséria que ainda abrangem parte importante da população, embora, segundo relatório da ONU, 1,5 milhão de famílias tenham conseguido sair da pobreza extrema no campo - 4 milhões no País todo (Estado, 27/2).
Não será fácil. O próprio relatório menciona que uma nova estratégia terá de passar pelos espinhosos temas da reforma agrária e da reforma tributária. Porque a concentração de propriedades continua forte - 2,4 milhões de pequenas propriedades detêm 2,5% do "território agrícola", enquanto 47 mil grandes detêm 43%. Quanto à reforma tributária, evidencia-se a necessidade diante da informação de que as camadas mais pobres da população têm 46% de sua renda destinada ao pagamento de impostos indiretos (como o ICMS, principalmente, embutido em alimentos, roupas e outros bens essenciais), enquanto nos grupos de maior renda esse índice é de 16%. Algumas das consequências desse cenário: 37,5% das residências sofrem com "insegurança alimentar" (55% no Nordeste, 24% no Sul), quase 2% das crianças padecem de desnutrição, 21% dos brasileiros são anêmicos.
Esses dados podem ser complementados com a visão exposta em texto recente - Uma outra gestão é inevitável - dos professores Ignacy Sachs (consultor de desenvolvimento sustentável em muitos países), Carlos Lopes (subsecretário-geral da ONU) e Ladislau Dowbor (professor no Departamento de Pós-Graduação da PUC-SP). "O futuro chegou", dizem eles. "Trata-se de uma crise civilizatória." E perguntam: qual é o mínimo necessário para evitar a catástrofe e assegurar uma vida digna e sustentável, o que exige também reduzir as desigualdades, assegurar trabalho digno e corrigir prioridades? Seus números também são muito fortes: no Brasil, os 20% de maior renda na população detêm 82,7% do total, enquanto os dois terços mais pobres têm apenas 6%; em 1970, a renda média dos 20% mais ricos equivalia a 70 vezes à dos 20% mais pobres; em 1989, chegou a 140 vezes.
Para eles, mudar esse panorama exige mais democracia, mais transparência nos negócios públicos, abertura das tecnologias de informação, interatividade nas relações do governo com a sociedade. E isso passa por muitos caminhos, que incluem o "resgate da dimensão pública do Estado"; a possibilidade de avaliar resultados econômicos pela contribuição para um "desenvolvimento justo e ambientalmente sustentável"; ocupação intensiva de mão de obra, para assegurar renda básica a toda a população; redução da jornada de trabalho; mudanças na intermediação financeira, com taxação sobre transações especulativas, nova lógica tributária, taxação de grandes fortunas, imposto sobre herança; repensar a lógica orçamentária, inclusive para que se tenha uma alocação de recursos mais produtiva em termos sociais e ambientais; e - tema que anda no centro da polêmica - "democratização da comunicação".
Seja o que for que se pense sobre cada um desses temas, é indispensável que eles cheguem à mesa de discussão na campanha eleitoral. O mundo continua mergulhado em crise grave, que exigirá mudanças radicais. Vai-se continuar pelo caminho de transferir na crise recursos para o sistema financeiro - fala-se até em US$ 15 trilhões, ante US$ 21 bilhões nos programas de ajuda a países pobres - sem que se resolvam problemas como os do desemprego, da pobreza, da especulação nos mercados cambial, de ações, de alimentos? O Brasil não tem como fugir a essas questões, por sua inserção no quadro internacional. Então, a sociedade precisa saber o que se pretende fazer.
O correspondente deste jornal Jamil Chade mostrou há poucas semanas (18/2) o quanto a recessão econômica contribuiu para que os países mais ricos não cumprissem seus compromissos de aumentar a ajuda aos mais pobres. A promessa era de que chegariam a 0,51% do seu produto bruto anual este ano. Mas ficarão longe disso. E pode-se acrescentar que já nos compromissos que assumiram na Agenda 21 global, em 1992, esses países se haviam comprometido a passar a ajuda de 0,36% do produto bruto para 0,70%, de modo a completar, na época, US$ 120 bilhões anuais; hoje, estamos com um sexto desse valor. Só Grã-Bretanha, Irlanda, Espanha e Bélgica foram além do compromisso atual.
E o quadro poderá agravar-se ainda mais, a julgar pelos relatórios que a ONU está divulgando sobre a situação dos alimentos e da fome no mundo, já que o preço dos produtos dobrou entre 2002 e 2008; mesmo descontada a inflação, o aumento real foi de 64%, com efeitos dramáticos nos segmentos mais pobres de cada país e, principalmente, nas nações de menor renda. Mesmo que se consigam algumas soluções, elas não poderão concentrar-se no campo da produção e do consumo. A Organização para a Alimentação e a Agricultura, da ONU, prevê, por exemplo, que para atender à demanda de carne no mundo a produção terá de passar dos 228 milhões de toneladas/ano atuais para 463 milhões; com isso, a população bovina iria de 1,5 bilhão de cabeças para 2,6 bilhões; a de ovelhas e cabras, de 1,7 bilhão para 2,7 bilhões. Como se fará isso sem uma sobrecarga ainda maior nos recursos naturais, cujo uso já está uns 30% além da capacidade de reposição do planeta?
As questões estão todas entrelaçadas, das que envolvem a macroeconomia aos dramas da pobreza. O eleitorado precisa saber o que cada candidato tem a dizer.
Washington Novaes é jornalista
À medida em que se aproxima a campanha eleitoral, mais evidente se torna que o eleitorado e o País precisam de uma nova pauta de discussões, para decidir sobre os nossos rumos. Uma pauta que fuja aos limites em que se tem concentrado até aqui - quem fez mais, o atual governo ou o anterior? - e busque resposta para graves questões que estão no cotidiano. A mais urgente é saber como se pretende mudar o quadro social, enfrentar a pobreza extrema e a miséria que ainda abrangem parte importante da população, embora, segundo relatório da ONU, 1,5 milhão de famílias tenham conseguido sair da pobreza extrema no campo - 4 milhões no País todo (Estado, 27/2).
Não será fácil. O próprio relatório menciona que uma nova estratégia terá de passar pelos espinhosos temas da reforma agrária e da reforma tributária. Porque a concentração de propriedades continua forte - 2,4 milhões de pequenas propriedades detêm 2,5% do "território agrícola", enquanto 47 mil grandes detêm 43%. Quanto à reforma tributária, evidencia-se a necessidade diante da informação de que as camadas mais pobres da população têm 46% de sua renda destinada ao pagamento de impostos indiretos (como o ICMS, principalmente, embutido em alimentos, roupas e outros bens essenciais), enquanto nos grupos de maior renda esse índice é de 16%. Algumas das consequências desse cenário: 37,5% das residências sofrem com "insegurança alimentar" (55% no Nordeste, 24% no Sul), quase 2% das crianças padecem de desnutrição, 21% dos brasileiros são anêmicos.
Esses dados podem ser complementados com a visão exposta em texto recente - Uma outra gestão é inevitável - dos professores Ignacy Sachs (consultor de desenvolvimento sustentável em muitos países), Carlos Lopes (subsecretário-geral da ONU) e Ladislau Dowbor (professor no Departamento de Pós-Graduação da PUC-SP). "O futuro chegou", dizem eles. "Trata-se de uma crise civilizatória." E perguntam: qual é o mínimo necessário para evitar a catástrofe e assegurar uma vida digna e sustentável, o que exige também reduzir as desigualdades, assegurar trabalho digno e corrigir prioridades? Seus números também são muito fortes: no Brasil, os 20% de maior renda na população detêm 82,7% do total, enquanto os dois terços mais pobres têm apenas 6%; em 1970, a renda média dos 20% mais ricos equivalia a 70 vezes à dos 20% mais pobres; em 1989, chegou a 140 vezes.
Para eles, mudar esse panorama exige mais democracia, mais transparência nos negócios públicos, abertura das tecnologias de informação, interatividade nas relações do governo com a sociedade. E isso passa por muitos caminhos, que incluem o "resgate da dimensão pública do Estado"; a possibilidade de avaliar resultados econômicos pela contribuição para um "desenvolvimento justo e ambientalmente sustentável"; ocupação intensiva de mão de obra, para assegurar renda básica a toda a população; redução da jornada de trabalho; mudanças na intermediação financeira, com taxação sobre transações especulativas, nova lógica tributária, taxação de grandes fortunas, imposto sobre herança; repensar a lógica orçamentária, inclusive para que se tenha uma alocação de recursos mais produtiva em termos sociais e ambientais; e - tema que anda no centro da polêmica - "democratização da comunicação".
Seja o que for que se pense sobre cada um desses temas, é indispensável que eles cheguem à mesa de discussão na campanha eleitoral. O mundo continua mergulhado em crise grave, que exigirá mudanças radicais. Vai-se continuar pelo caminho de transferir na crise recursos para o sistema financeiro - fala-se até em US$ 15 trilhões, ante US$ 21 bilhões nos programas de ajuda a países pobres - sem que se resolvam problemas como os do desemprego, da pobreza, da especulação nos mercados cambial, de ações, de alimentos? O Brasil não tem como fugir a essas questões, por sua inserção no quadro internacional. Então, a sociedade precisa saber o que se pretende fazer.
O correspondente deste jornal Jamil Chade mostrou há poucas semanas (18/2) o quanto a recessão econômica contribuiu para que os países mais ricos não cumprissem seus compromissos de aumentar a ajuda aos mais pobres. A promessa era de que chegariam a 0,51% do seu produto bruto anual este ano. Mas ficarão longe disso. E pode-se acrescentar que já nos compromissos que assumiram na Agenda 21 global, em 1992, esses países se haviam comprometido a passar a ajuda de 0,36% do produto bruto para 0,70%, de modo a completar, na época, US$ 120 bilhões anuais; hoje, estamos com um sexto desse valor. Só Grã-Bretanha, Irlanda, Espanha e Bélgica foram além do compromisso atual.
E o quadro poderá agravar-se ainda mais, a julgar pelos relatórios que a ONU está divulgando sobre a situação dos alimentos e da fome no mundo, já que o preço dos produtos dobrou entre 2002 e 2008; mesmo descontada a inflação, o aumento real foi de 64%, com efeitos dramáticos nos segmentos mais pobres de cada país e, principalmente, nas nações de menor renda. Mesmo que se consigam algumas soluções, elas não poderão concentrar-se no campo da produção e do consumo. A Organização para a Alimentação e a Agricultura, da ONU, prevê, por exemplo, que para atender à demanda de carne no mundo a produção terá de passar dos 228 milhões de toneladas/ano atuais para 463 milhões; com isso, a população bovina iria de 1,5 bilhão de cabeças para 2,6 bilhões; a de ovelhas e cabras, de 1,7 bilhão para 2,7 bilhões. Como se fará isso sem uma sobrecarga ainda maior nos recursos naturais, cujo uso já está uns 30% além da capacidade de reposição do planeta?
As questões estão todas entrelaçadas, das que envolvem a macroeconomia aos dramas da pobreza. O eleitorado precisa saber o que cada candidato tem a dizer.
Washington Novaes é jornalista
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