A presidente Dilma Rousseff já enfrentava uma crise em sua base aliada antes de tomar a decisão de trocar os líderes do governo no Senado e na Câmara dos Deputados. Um manifesto de reclamações sobre o tratamento dado por ela aos aliados, elaborado por parlamentares do PMDB com o conhecimento de Michel Temer, tinha tido a adesão de políticos de outros partidos e, até mesmo, a simpatia de deputados do PT. Agora, com o anúncio da bancada do PR de que abandonou a coalizão no Senado, a crise parece apontar para riscos mais sérios.
O encolhimento da maioria que apoia o governo não é apenas uma ameaça retórica, ele já está acontecendo. Há quem diga que o choro da presidente na cerimônia de posse de Marcelo Crivella no Ministério da Pesca foi uma demonstração de que ela sentiu o golpe. Mas o cenário já tinha sido previsto há mais tempo por críticos da presidente, os quais, independentemente de pertencerem ou não à oposição, chamaram a atenção para características do seu desempenho que seriam fontes potenciais de desastres futuros.
Vista como pessoa de personalidade dura e extremamente exigente com seus colaboradores, Dilma tem sido considerada inapta para a negociação política. E, como sugeriu José Sarney, ela pode ter-se tornado amarga devido às suas experiências na luta contra a ditadura, tornando suas boas qualidades técnicas algo antagônico às virtudes políticas que se esperam de quem tem de administrar uma coalizão tão grande e complexa.
Assim, dadas as singularidades de sua condução política, Dilma estaria protagonizando um governo incapaz de proporcionar a si mesmo a articulação necessária para a aprovação de seus projetos. Descoordenado e lento para reagir às expectativas dos sócios do condomínio político que dirige, o governo foi derrotado no Senado na indicação de Bernardo Figueiredo para a Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT) e, para evitar novos reveses, adiou as votações da Lei Geral da Copa e do Código Florestal, cuja condução na Câmara pelo ex-líder Cândido Vaccarezza teria desagradado a presidente.
Mas, afora a hipótese de agravamentos mais sérios da situação, e considerando que a economia do País está apoiada no consumo de amplas camadas da população relativamente satisfeitas, o quadro não anuncia uma tragédia imediata, embora tampouco possa ser visto como normal. O fato de o governo ter perdido, em pouco mais de um ano, 12 ministros sugere que há algo de estrutural na natureza da crise, e não apenas circunstâncias conjunturais.
Uma das interpretações da crise nos jornais sugere que Dilma protagoniza o papel de Dama de Ferro fora do contexto. No lugar de jogo de cintura para negociar, ela opõe o pulso firme da sua vontade, menosprezando e desafiando as raposas que tem ao seu redor, mas, por isso mesmo, se arriscando a criar um cenário parecido ao que levou Margaret Thatcher a renunciar depois de 11 anos no poder. A advertência de Fernando Collor de Mello para que a presidente reabra o diálogo com as forças do Congresso sugere isso: "Digo com a experiência de quem desconheceu a importância fundamental do Senado e da Câmara para o processo democrático e a governabilidade. O resultado foi meu impeachment". É uma impressionante confissão de responsabilidade pelo próprio fracasso político - mas também é uma ameaça.
Enquanto a saída de tal cenário levaria a uma mudança radical de conduta da presidente, uma interpretação alternativa sugere, pelo contrário, que Dilma não está fazendo mais do que ampliar seu espaço de manobra em um governo que necessita aprofundar sua natureza republicana. Há uma contradição evidente na caracterização de um governante que, para ampliar o seu espaço de ação, precisa se insurgir contra sua própria composição. Mas as demissões de ministros e a substituição de líderes herdados do governo anterior indicariam que, a despeito dos riscos, Dilma está finalmente montando a própria equipe de governo, "coesa e forte", como ela disse no Dia Internacional da Mulher.
Nem sempre fica claro, contudo, quanto as dificuldades atuais da presidente derivam da modalidade de presidencialismo vigente no País. Dadas as características do sistema político, a formação de coalizões majoritárias se dá pela agregação de forças partidárias que indicam quem vai compor o ministério. O poder de nomear é da presidente, mas o jogo supõe que os partidos apontam quem consideram ter força política - a despeito de sua competência técnica - para ocupar a função, às vezes ao arrepio das dívidas que tenham com a Justiça ou a sociedade. Ministérios são vistos quase como partes inarredáveis do condomínio governamental, sem compromisso com o programa de governo.
Some-se a isso o apetite voraz de um partido como o PT que, abusando do conceito de hegemonia, quer manter sob seu controle praticamente todas as áreas estratégicas do governo federal. Nessas circunstâncias, uma coalizão formada por cerca de 80% dos membros do Congresso Nacional, em lugar de facilitar a tarefa governativa de uma líder relativamente neófita como a presidente Dilma, usa e abusa da chantagem política em troca de sua lealdade. A crise atual, então, pode estar revelando simplesmente a tentativa - algo ingênua - da presidente de impor novos padrões de conduta política em um meio ambiente que não quer e não foi desenhado para isso. Uma saída desse dilema envolveria reintroduzir na agenda política do país o tema das reformas institucionais destinadas a aperfeiçoar a democracia.
José Álvaro Moisés é cientista político, diretor do núcleo de pesquisa de políticas públicas da USP, autor de Democracia, confiança - por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas (EDUSP)
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
Nenhum comentário:
Postar um comentário