- O Estado de S. Paulo
No dia 18 de dezembro, em sua diplomação, a presidente Dilma fez um discurso em que denunciou as condições patrimonialistas vigentes no Brasil. O que talvez Dilma não tivesse percebido é que seu primeiro mandato contribuiu substancialmente para essa característica de governo que ela mesma critica.
Dilma definiu patrimonialismo como o regime “cujo traço mais marcante é a não dissolução plena dos laços nocivos entre o que é público e o que é privado”. Enfim, a presidente criticou a enorme confusão que prevalece por aqui entre o interesse público e o interesse privado. Daí a corrupção, todas as formas de apropriação dos recursos públicos para proveito próprio e o avanço sobre a máquina do Estado.
No seu discurso de posse, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, apanhou o mote da presidente para avisar que, entre os objetivos da nova política econômica, está o de erradicar o jogo patrimonialista desenvolvido pela equipe anterior e colocar em marcha “a antítese do sistema patrimonialista (que) é a impessoalidade nos negócios do Estado”.
Dilma e Levy puseram o dedo na ferida e, se for levado em prática, o recado terá consequência. Mas, antes, é preciso entender melhor o que é patrimonialismo e como se manifesta no Brasil.
A confusão entre os interesses de Estado e os interesses privados (das pessoas, das famílias, etc.) é fonte de crises políticas em todos os tempos. O primeiro a tratar do assunto foi Sófocles (século 5.º antes de Cristo), que expôs os conflitos entre público e privado no texto, sempre encenado, da tragédia Antígona.
Mas o primeiro grande pensador da Ciência Política a desenvolver o conceito de patrimonialismo como forma de governo foi Max Weber, em seu clássico Economia e Sociedade. Um tanto simplificadamente, é o tipo de governo e de dominação em que o dirigente toma como seus os recursos do Estado e os distribui entre os subordinados tanto para garantir apoio (legitimidade), como para governar por meio deles.
No Brasil, a partir dos anos 30 apareceram pensadores que se propuseram a estudar as nossas origens e características para entender por que somos como somos e buscar caminhos para nos livrar de heranças funestas, de maneira a nos tornarmos uma sociedade moderna.
Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil (1936), descreve como o caráter patrimonialista da administração pública brasileira deformou e segue deformando as relações de poder. Impede o reconhecimento do mérito como critério de escolha dos funcionários públicos e se torna o principal entrave para a eficiência do Estado. As nomeações não são feitas a partir da capacidade do funcionário, mas de acordo com as relações familiares e trocas de favores. A rigor, a administração nessas relações de poder não é assunto público; não passa de interesse particular, nem sempre disfarçado. Nesse caso, o funcionário nunca admite que está desviando verbas. Ao contrário, parte do princípio de que, se ele está lá, é porque vem cumprindo as regras do jogo. Entre elas, está o direito de tirar proveito próprio dos recursos do Estado, sem medo de ser feliz.
O estudioso que mais aprofundou as análises sobre a origem e metamorfoses das relações patrimonialistas de poder no Brasil foi Raimundo Faoro na sua obra clássica de 1958, Os donos do poder.
Ele mostra que tudo começou lá atrás, em Portugal, quando a coroa portuguesa ainda procurava controlar a aristocracia local. Foi a dinastia de Avis que buscou o apoio dos senhores de terras e os transformou em nobres, com o objetivo de garantir a administração do Estado, por meio de distribuição de títulos e de terras. A casa de Bragança ampliou essas práticas, transformou a administração pública em ramificações de negócios próprios do rei. Daí a importância do estatuto dos monopólios que passaram a ser administrados por concessões.
Com a descoberta do Brasil, os reis de Portugal ganharam um problemão: como administrar essa imensidão e como combater os predadores. A solução foi a criação das capitanias gerais hereditárias, transferidas a sesmeiros que, na condição de capitães gerais, exerciam o poder político e conduziam os monopólios.
Ao longo de toda a Colonização, dos reinados e dos Impérios, o modelo básico persistiu, embora com transmutações. Os traços básicos, alguns já residuais e outros consolidados, persistem na República. O pistolão, a carteirada, o tráfico de influência e o aparelhamento das repartições para proveito dos grupos influentes seguem fazendo estragos na administração pública e, pior do que isso, formatam a política econômica do governo. É sobre isso que será a Coluna de amanhã.
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