O Globo
Em 1969, um executivo anônimo de uma
fabricante de cigarros dos Estados Unidos redigiu um memorando de nove páginas
com o título “Tabagismo e Saúde: Proposta”. O problema a enfrentar era as
pessoas saberem que tabaco causa câncer. O memorando é histórico porque contém
a quase poética frase “dúvida é nosso produto”. Menos conhecida é a conclusão
do raciocínio: a dúvida é o produto porque “é o modo de estabelecer uma
controvérsia”.
Em poucas linhas, esse soldado desconhecido da guerra corporativa articulou o princípio básico do negacionismo enquanto estratégia política: produzir dúvida com o objetivo de semear, na mente do público, a falsa noção de que existe uma controvérsia legítima a debater. Da negação do aquecimento global antropogênico ao estímulo bolsonarista à hesitação vacinal, chegando até mesmo a ideologias mais antigas, como o fundamentalismo bíblico (“ensine a controvérsia!” tornou-se o grito de guerra dos criacionistas a partir da década de 1990), os defensores de ideias derrotadas pelos fatos e pela ciência parecem ter abraçado, em massa, a fabricação de dúvida como atividade principal.
Como todo produto, a dúvida fabricada
precisa ser distribuída. Tomates e geladeiras viajam por estradas e trilhos.
Dúvidas e controvérsias, pela imprensa. Mesmo neste mundo de redes sociais e
aplicativos de mensagem, os nomes e marcas reconhecidos há décadas, com
reputação consolidada, chamados de “mídia de legado”, ainda têm um poder
excepcional para gerar atenção e prestígio. O mesmo argumento será lido e
valorizado de modo diverso se aparecer no tuíte pessoal de alguém ou nas
páginas (impressas ou virtuais) de um jornal respeitado ou grande revista.
A vulnerabilidade da imprensa a
controvérsias artificiais é um fato histórico bem documentado. O jornal The New
York Times só parou de oferecer direito de réplica à indústria do cigarro em
seus textos sobre os males do tabaco no fim dos anos 1970 — 30 anos depois do
consenso científico sobre a ligação entre tabagismo e câncer ter sido
estabelecido, 15 anos depois de o governo americano emitir seu primeiro alerta
oficial aos fumantes.
Essa permeabilidade tem causas estruturais
que em geral emanam de bons princípios, aplicados de modo irrefletido ou
inocente. Liberdade de expressão muitas vezes é citada, mas não é o caso. Nenhum
jornal publica todas as cartas que recebe, nem todos os artigos que lhe são
submetidos. Curadoria de conteúdo não é “censura”.
Os princípios que, quando ingenuamente
aplicados, fazem a imprensa abrir portas aos fabricantes de dúvidas são o
equilíbrio e a informação. Se existem interesses diferentes em torno de um
tema, é preciso equilibrá-los para que a cobertura seja justa; se determinado
ponto de vista existe, é preciso informar as pessoas disso.
Equilíbrio, no entanto, é ferramenta, não
meta. Se há dúvida razoável sobre a verdade dos fatos, equilíbrio talvez seja o
melhor que se pode fazer. Mas contentar-se com ele, almejá-lo, é um erro. Como
escreve o filósofo Lee McIntyre em seu livro “Post-Truth” (“Pós-verdade”), o
meio-termo entre verdade e mentira ainda é menos que a verdade.
A informação é o fim maior, mas, para que
se realize, deve ser completa. Não basta noticiar que há quem acredite que a
Terra é plana, é necessário acrescentar que essas pessoas estão erradas — e
explicar por quê. Limitar-se a “informar” acriticamente que uma mentira existe
equivale, em termos morais e práticos, a repeti-la.
Na pandemia, setores importantes da
imprensa, confrontados por falsas controvérsias que põem vidas em risco,
aprenderam a reconhecer a armadilha e a escapar dela. É uma lição que não pode
se esgotar na emergência sanitária. A era da inocência precisa terminar. Ou
assumir-se como a era do cinismo.
*Jornalista e escritor, é ganhador do Prêmio Jabuti e editor-chefe da Revista Questão de Ciência
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