sábado, 12 de fevereiro de 2022

Pablo Ortellado: Debate precisa de equilíbrio

O Globo

A controvérsia do começo da semana sobre um episódio do podcast Flow, em que o apresentador Monark defendeu a liberdade de defender ideias nazistas e antijudaicas, mostra a dificuldade que temos tido em travar debates produtivos num ambiente capturado pelas guerras culturais.

Caso algum leitor ainda não saiba, o Flow, um dos podcasts mais ouvidos do país, recebeu na segunda-feira os deputados Kim Kataguiri e Tabata Amaral. No meio da conversa com eles, o apresentador Monark defendeu uma concepção radical de liberdade de expressão que permitiria a difusão de ideias nazistas e antijudaicas e sua organização política.

A proposta causou celeuma. Durante toda a semana, analistas e influenciadores discutiram o caso. Patrocinadores anunciaram que suspenderiam publicidade no canal, antigos entrevistados solicitaram a exclusão de seus episódios, e o apresentador terminou demitido, mesmo depois de ter pedido desculpas e alegado que estava bêbado. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro atendeu a uma solicitação da Federação Israelita e determinou que o episódio fosse retirado do ar. O Ministério Público Federal de São Paulo abriu inquérito para investigar suspeita de apologia ao nazismo.

Embora o nazismo seja um caso-limite útil para ilustrar uma defesa radical da liberdade de expressão, não é um exemplo hipotético inócuo. O nazismo foi um regime genocida que matou milhões de pessoas há menos de 80 anos. Embora os apresentadores do Flow cultivem a postura de adolescentes drogados e irresponsáveis, eles têm uma responsabilidade grande, que advém da audiência que conquistaram. Deveriam ter entendido isso quando começaram a receber presidenciáveis no programa.

Uma parte da controvérsia se deve ao fato de os limites da liberdade de expressão serem, neste momento, amplamente debatidos no Brasil. As campanhas políticas que atacaram o Congresso e o STF e defenderam uma intervenção militar e as que negaram a gravidade da Covid-19 e desestimularam a vacinação nos forçaram a reconhecer que a liberdade de expressão precisa ter os direitos humanos como limite.

Por outro lado, precisamos ponderar muito bem. A liberdade de expressão é um direito basilar numa sociedade democrática. É apenas por meio da livre expressão das ideias que conseguimos nos organizar politicamente num regime plural e desenvolver a educação, a ciência e a cultura, para ficar nas implicações mais evidentes. Estabelecer limites à liberdade de expressão é matéria delicada, que deve ser feita com mão leve, levíssima.

Será que os progressistas que querem impor sanções e limites à difusão das campanhas da direita que atacam Congresso e STF aceitariam que esses mesmos limites e sanções fossem também aplicados aos grupos revolucionários de esquerda? O pau que dá em Chico também precisa dar em Francisco.

É preciso também diferenciar a defesa de ideias que violam direitos humanos do debate sobre até que ponto as leis devem impor esses limites. Defender o nazismo e defender que o nazismo seja livremente debatido não é a mesma coisa. Quando as marchas da maconha foram proibidas pela polícia sob alegação de que faziam apologia ao crime, isso foi corretamente percebido como abuso de autoridade, já que debater se as leis devem permitir o uso de drogas não é a mesma coisa que usar drogas ou promover o uso de drogas.

A defesa de Monark de uma concepção radical de liberdade de expressão não é nem mesmo esdrúxula ou sem precedentes. Os Estados Unidos, que todos consideram uma democracia liberal, têm proteções constitucionais à liberdade de expressão tão amplas que protegem o discurso e a organização política de grupos como a Ku Klux Klan. Lá, discursos e manifestações nazistas e supremacistas brancas são indiscutivelmente constitucionais. Defender que o Brasil adote uma postura parecida com a americana não faz de ninguém um nazista.

Estamos perigosamente espremidos entre uma inação que nos deixa vulneráveis e um ativismo atabalhoado. Se, de um lado, a democracia precisa se defender do abuso da liberdade de expressão que ataca os direitos humanos, esses limites precisam ser feitos com um cuidado que o debate atual, capturado pelas guerras culturais, não parece estar sendo capaz de fazer.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A ''livre expressão de ideias'' é louvável em qualquer democracia,estimular preconceitos passa longe disso.