sábado, 12 de fevereiro de 2022

Carlos Góes: Brasil, país de imigrantes

O Globo

Após a tragédia de Moïse, deveríamos tentar nos tornarmos aquilo que pensamos ser: um país aberto e receptivo

O brutal assassinato de Moïse Kabagambe na orla carioca, entre outras reverberações, nos força a repensar a autoimagem que temos sobre o Brasil. Sempre nos vimos como um país de imigrantes, receptivo à maioria dos estrangeiros. Mas a realidade é que já não somos um país de imigrantes e nem sempre fomos receptivos a todos os que vêm para cá.

É verdade que, historicamente, o Brasil recebeu levas de imigrantes portugueses, italianos, japoneses e sírio-libaneses, dentre outros; bem como de africanos trazidos em cativeiro para aqui. Mas, hoje em dia, nascidos no estrangeiro que vivem no Brasil são cada vez mais raros.

Os dados do Censo ajudam a ilustrar. Em 1900, pico da série histórica, 1 em cada 14 residentes no Brasil era nascido no exterior. Em 2010, apenas 1 em cada 340 residentes no Brasil era nascido no estrangeiro.

A título de comparação, segundo os dados mais recentes, 1 a cada 7 residentes dos Estados Unidos nasceram fora do país. Enquanto os Estados Unidos continuou a ser um país que recebe um fluxo constante de imigrantes, no Brasil isso parou de ocorrer no começo do século XX.

Outro fato é que nossa relação com imigrantes nem sempre foi pacífica. Para além do cativeiro dos negros escravizados, a política migratória brasileira já foi abertamente racista.

Em agosto de 1945, o ditador Getúlio Vargas assinou um decreto-lei eugenista. Diz o texto: “atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da população as características mais convenientes da sua ascendência europeia.”

Pense nisso: este país, que a maioria de nós considera receptivo para estrangeiros que aqui vêm, já colocou numa lei que imigrante bom é imigrante branco, de “ascendência europeia”. Talvez o Brasil de fato seja receptivo ao europeu, americano ou argentino que gasta dinheiro para passar férias em Copacabana. Para pretos e pardos, como Moïse, a história sempre foi bem diferente.

Mas, afinal, quais são os impactos de termos nos tornado um país fechado à imigração?

Esse tema poderia ser abordado de diversos ângulos, como o impacto da imigração sobre a cultura, a culinária e o bem estar que isso proporciona aos nativos. Falando do que sei, vou focar nos impactos sobre a economia e as finanças públicas.

Imigrantes podem contribuir para o crescimento econômico. Eles aumentam a força de trabalho; contribuem com seu capital humano e inventividade; pagam impostos e gastam dinheiro na economia nacional; trazem novas variedades de bens a serem ofertadas para o consumidor local; e aumentam o produto total da economia.

Além disso, há um efeito demográfico. O perfil etário da população brasileira vem envelhecendo, com o número de adultos e idosos aos poucos superando o de jovens. Imigrantes recém-chegados tendem a ser mais novos, o que pode contribuir para o retardo do envelhecimento demográfico e de futuras reformas previdenciárias.

Mas será que eles vão “roubar empregos” dos brasileiros? As leis de oferta e demanda não garantem que um aumento da oferta de trabalhadores vai levar a uma queda dos salários ou a um aumento do desemprego? Não necessariamente. Mesmo em teoria, o resultado é ambíguo: imigrantes também aumentam a demanda por bens e serviços, o que leva a uma maior demanda por empregos.

Empiricamente, o trabalho de David Card, que ganhou o Nobel de Economia este ano, joga luz nessa questão. Ele analisou o seguinte experimento natural: em 1980, Cuba liberou a saída de nacionais do país. Em 6 meses, 125 mil cubanos chegaram nos EUA.

Esse evento aumentou a força de trabalho de Miami em 7%. Apesar dessa grande variação, Card não encontrou nenhum efeito sobre o nível de emprego ou salário dos nativos, dando apoio à tese de que os efeitos da imigração sobre oferta e demanda de trabalho se cancelam. Esse resultado gerou muito debate acadêmico. No último passo desse debate, os economistas Michael Clemens e Jennifer Hunt confirmaram os resultados originais com métodos modernos.

Nosso país de imigrantes já não é tão de imigrantes assim. Nem temos muito imigrantes, nem somos tão receptivos aos que vêm aqui tentar uma vida melhor. A tragédia de Moïse deveria fazer com que trabalhemos para que nossa realidade se aproxime mais daquilo que nós achamos que ela é: um país aberto e receptivo. Os ganhos econômicos associados a isso seriam só um bônus.

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