O Globo
Após a tragédia de Moïse, deveríamos tentar
nos tornarmos aquilo que pensamos ser: um país aberto e receptivo
O brutal assassinato de Moïse Kabagambe na
orla carioca, entre outras reverberações, nos força a repensar a autoimagem que
temos sobre o Brasil. Sempre nos vimos como um país de imigrantes, receptivo à
maioria dos estrangeiros. Mas a realidade é que já não somos um país de
imigrantes e nem sempre fomos receptivos a todos os que vêm para cá.
É verdade que, historicamente, o Brasil recebeu levas de imigrantes portugueses, italianos, japoneses e sírio-libaneses, dentre outros; bem como de africanos trazidos em cativeiro para aqui. Mas, hoje em dia, nascidos no estrangeiro que vivem no Brasil são cada vez mais raros.
Os dados do Censo ajudam a ilustrar. Em 1900, pico da série histórica, 1 em cada 14 residentes no Brasil era nascido no exterior. Em 2010, apenas 1 em cada 340 residentes no Brasil era nascido no estrangeiro.
A título de comparação, segundo os dados
mais recentes, 1 a cada 7 residentes dos Estados Unidos nasceram fora do país.
Enquanto os Estados Unidos continuou a ser um país que recebe um fluxo
constante de imigrantes, no Brasil isso parou de ocorrer no começo do século
XX.
Outro fato é que nossa relação com
imigrantes nem sempre foi pacífica. Para além do cativeiro dos negros
escravizados, a política migratória brasileira já foi abertamente racista.
Em agosto de 1945, o ditador Getúlio Vargas
assinou um decreto-lei eugenista. Diz o texto: “atender-se-á, na admissão dos
imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da
população as características mais convenientes da sua ascendência europeia.”
Pense nisso: este país, que a maioria de
nós considera receptivo para estrangeiros que aqui vêm, já colocou numa lei que
imigrante bom é imigrante branco, de “ascendência europeia”. Talvez o Brasil de
fato seja receptivo ao europeu, americano ou argentino que gasta dinheiro para
passar férias em Copacabana. Para pretos e pardos, como Moïse, a história
sempre foi bem diferente.
Mas, afinal, quais são os impactos de
termos nos tornado um país fechado à imigração?
Esse tema poderia ser abordado de diversos
ângulos, como o impacto da imigração sobre a cultura, a culinária e o bem estar
que isso proporciona aos nativos. Falando do que sei, vou focar nos impactos
sobre a economia e as finanças públicas.
Imigrantes podem contribuir para o
crescimento econômico. Eles aumentam a força de trabalho; contribuem com seu
capital humano e inventividade; pagam impostos e gastam dinheiro na economia
nacional; trazem novas variedades de bens a serem ofertadas para o consumidor
local; e aumentam o produto total da economia.
Além disso, há um efeito demográfico. O
perfil etário da população brasileira vem envelhecendo, com o número de adultos
e idosos aos poucos superando o de jovens. Imigrantes recém-chegados tendem a
ser mais novos, o que pode contribuir para o retardo do envelhecimento demográfico
e de futuras reformas previdenciárias.
Mas será que eles vão “roubar empregos” dos
brasileiros? As leis de oferta e demanda não garantem que um aumento da oferta
de trabalhadores vai levar a uma queda dos salários ou a um aumento do
desemprego? Não necessariamente. Mesmo em teoria, o resultado é ambíguo:
imigrantes também aumentam a demanda por bens e serviços, o que leva a uma
maior demanda por empregos.
Empiricamente, o trabalho de David Card,
que ganhou o Nobel de Economia este ano, joga luz nessa questão. Ele analisou o
seguinte experimento natural: em 1980, Cuba liberou a saída de nacionais do
país. Em 6 meses, 125 mil cubanos chegaram nos EUA.
Esse evento aumentou a força de trabalho de
Miami em 7%. Apesar dessa grande variação, Card não encontrou nenhum efeito
sobre o nível de emprego ou salário dos nativos, dando apoio à tese de que os
efeitos da imigração sobre oferta e demanda de trabalho se cancelam. Esse
resultado gerou muito debate acadêmico. No último passo desse debate, os
economistas Michael Clemens e Jennifer Hunt confirmaram os resultados originais
com métodos modernos.
Nosso país de imigrantes já não é tão de imigrantes assim. Nem temos muito imigrantes, nem somos tão receptivos aos que vêm aqui tentar uma vida melhor. A tragédia de Moïse deveria fazer com que trabalhemos para que nossa realidade se aproxime mais daquilo que nós achamos que ela é: um país aberto e receptivo. Os ganhos econômicos associados a isso seriam só um bônus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário