Abrucio inicia formalizando a interpretação a que aludi acima. Nas palavras do autor, “O principal problema institucional brasileiro pode ser definido hoje, sinteticamente, pela palavra fragmentação, e sua solução passa pela ideia de coordenação”. Realmente, a fragmentação tem sido frequentemente posta, em análises de conjuntura e mesmo em reflexões mais abrangentes sobre o nosso sistema político, senão como um impeditivo, ao menos como um sério fator a dificultar uma governação eficaz. Assim, uma suposta (in)governabilidade, ou quase isso, seria o risco de fundo, a evitar pela coordenação.
Pela mesma lógica, a solução a ser buscada
desde já - porém, conforme lúcida ponderação do próprio Abrucio, a ser obtida
de maneira incremental - é o Poder Executivo recuperar esse papel coordenador e,
através dele, recuperar também, a médio prazo, um incontrastável poder de
agenda, condição da qual desfrutou até um passado não muito remoto. Há de se
reconhecer nessa proposição, ao menos nos termos em que ela é posta no artigo
que aqui se comenta, que o argumento não ignora – até sublinha – a
impossibilidade de mero retorno ao padrão de relação entre poderes que vigia
até o memoravelmente desastroso e definitivo (para o referido padrão) embate
entre Dilma Rousseff e Eduardo Cunha. O meio termo proposto é, então, um
presidencialismo de coalizão necessariamente modificado pela nova realidade,
mas, ainda assim, um sistema em que o presidencialismo seja o elemento substantivo,
identificador do sistema de governo, sendo adjetivo - ainda que importante - o seu
caráter coalizacional. Pelo que posso
entender, seria esse o cenário de longo prazo propiciador da governabilidade
almejada.
Acredito ser possível - considerando a
representatividade do nosso sistema, altamente inclusivo - interpelar o diagnóstico,
que vem sendo convertido em premissa, de que a fragmentação é o problema principal,
para cogitar que o problema primordial, que converte a fragmentação em
obstáculo como se fosse da sua própria natureza impedir o governo eficaz, seja a
qualidade da representação política que se afirmou entre nós. Ela é crítica,
apesar do caráter inclusivo do sistema, e isso não poderia sair grátis. Temos
aqui o caso complexo de representatividade ampla convivendo com representação
insatisfatória.
Fora do meu propósito, com essa suposição,
trazer a debate uma antiga querela normativa sobre se num sistema democrático
importa mais governabilidade ou representação. A preocupação é outra, de
caráter cognitivo e pode se exprimir, coloquialmente, na pergunta sobre o que
está “pegando mais” e, assim, dificultando uma percepção (dos analistas e do
"grande público") mais favorável sobre a saúde do nosso sistema
democrático. Se admitida a concorrência entre as duas premissas (a da
fragmentação e a da qualidade da representação), um modo de evitar uma
investigação acerca da precedência do ovo ou da galinha é derivar, da incerteza
sobre a soberania das premissas, outras perguntas, em sequência.
Para não cair num racionalismo desarrazoado
e sem senso de proporções, não seria o caso de se evitar ver a fragmentação
como uma realidade patológica a ser “mudada”? Vejo sentido em tomá-la como dado independente,
ambíguo em suas implicações democráticas (torna a governação mais complexa e a representatividade
mais ampla e diversa) e que só pode mudar, sem traumas regressivos, por efeito
incremental de processos de interação política prática e/ou mudanças no sistema
partidário via reformas eleitorais pontuais e moderadas - como a de 2017,
mencionada no próprio artigo de Abrucio.
Por esse caminho de raciocínio, uma suposta
recuperação, pelo Executivo, de um forte poder de agenda não seria, em vez de
solução real, um atalho, remendo que conservaria parte relevante do problema?
Vejo sentido em pensar que isso constrangeria a emersão de novas soluções interativas,
abortaria a maturação de efeitos alcançáveis, a médio prazo, por reformas
institucionais moderadas e incrementais e, por fim, reiteraria uma cultura
política avessa a pactos e confiante em personalidades espaçosas.
Terceira pergunta é se há sentido em ter-se
como horizonte um sistema de governo cujo desenho institucional seja tão
flexível que a regra política substantiva possa ser justamente a da coalizão. É
verdade que, se partimos de premissa diversa da de Abrucio, uma agenda de
reformas tornar-se ainda mais obscura, ou talvez nem faça muito sentido. O
próprio Abrucio, partindo da premissa que parte, deposita mais expectativas em
métodos de interação política e em conteúdo de políticas do que propriamente em
estipulação de novas regras. Nesse ponto, tendo a segui-lo, embora tendo em
tela não uma estratégia de recuperação de protagonismo do Executivo, mas de
aperfeiçoamento da interação entre os dois poderes pela redução do decisionismo
e pela valorização da lógica da coalizão em ambos.
Para que o argumento da coalizão como valor
positivo seja exequível, o horizonte institucional precisa de plasticidade, não
de fixação, formal ou informal, de poderes de agenda dos dois Poderes aos quais,
constitucionalmente, confere-se competências de governo. Uma intuição que não
se deve desprezar é a de que a distribuição de poderes de agenda varie mesmo,
dentro de balizas flexíveis, de acordo com a distribuição de poder político
realizada a cada eleição. Se as urnas produzem convergência forte de agendas
entre Legislativo e Executivo, a cooperação é a tendência e a coalizão, consequência.
Se ocorre o oposto, como agora, a coalizão é uma condição para a cooperação e,
no limite, para a governabilidade.
Considerada a hipótese de que a demanda primordial,
decorrente do déficit democrático, é, embora sem menosprezar a da
efetividade dos governos, a qualidade da representação, não seria o caso de se
procurar assentar a governabilidade institucional e a estabilidade política no
antigo valor da representação como expressão mais fiel possível da vontade do
eleitor? Se partiu dele o imperativo de que pautas opostas de Executivo e
Legislativo devam ser conciliadas, não há “regra de ouro” mais racional que produzir
governos de coalizão. Essa é a criança que não pode ser atirada fora junto com
um presidencialismo de coalizão que já fez água. A insistência em
congelá-lo em busca de que readquira a solidez perdida pode queimar os dedos
dos feiticeiros pois, como se sabe, gelo queima. Pede-se fogo brando para descongelar
e aquecer a democracia, quem sabe até com fervor, mas sem fervura.
É evidente que as especulações feitas neste
artigo requerem aprofundar (assim como Abrucio fez com o tema da fragmentação) o
tema da (má) qualidade da representação política que temos no Brasil, refletida
no agir político dos dois poderes governativos da República. De modo especial
requerem dedicar esforço analítico ao que se passa e ao que se pode querer que
se passe no Poder Legislativo, antes, durante e após os processos eleitorais
que legitimam institucionalmente a sua composição e a ação política dos seus
membros, de modo particular das suas cúpulas. A coluna tentará se debruçar
sobre isso, em suas próximas edições.
*Cientista político e professor da UFBa
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