segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Coalizão como valor positivo para a qualidade da representação e da democracia

Um artigo do cientista político Fernando Abrucio (“Lula III e o desafio da coordenação” - Valor Econômico – 04.08.23) é o pretexto deste breve texto que comporá a coluna, neste final de semana. O artigo citado é instigante não tanto por ter trazido ao debate uma reflexão inédita. O próprio Abrucio e outros competentes observadores e estudiosos da atualidade política brasileira têm tecido, desde a montagem do atual governo, um fio analítico que o artigo reitera e sobre o qual assenta o seu argumento.  O que mais instiga é o grau de maturação e o nível de argumentação com que se expõe essa interpretação, dando acesso a uma visão mais abrangente e persuasiva da mesma, ao apresentá-la com clareza pedagógica e uma sistematicidade que desafia, com êxito, limites de espaço de uma coluna na imprensa.

Abrucio inicia formalizando a interpretação a que aludi acima. Nas palavras do autor, “O principal problema institucional brasileiro pode ser definido hoje, sinteticamente, pela palavra fragmentação, e sua solução passa pela ideia de coordenação”. Realmente, a fragmentação tem sido frequentemente posta, em análises de conjuntura e mesmo em reflexões mais abrangentes sobre o nosso sistema político, senão como um impeditivo, ao menos como um sério fator a dificultar uma governação eficaz. Assim, uma suposta (in)governabilidade, ou quase isso, seria o risco de fundo, a evitar pela coordenação.

Pela mesma lógica, a solução a ser buscada desde já - porém, conforme lúcida ponderação do próprio Abrucio, a ser obtida de maneira incremental - é o Poder Executivo recuperar esse papel coordenador e, através dele, recuperar também, a médio prazo, um incontrastável poder de agenda, condição da qual desfrutou até um passado não muito remoto. Há de se reconhecer nessa proposição, ao menos nos termos em que ela é posta no artigo que aqui se comenta, que o argumento não ignora – até sublinha – a impossibilidade de mero retorno ao padrão de relação entre poderes que vigia até o memoravelmente desastroso e definitivo (para o referido padrão) embate entre Dilma Rousseff e Eduardo Cunha. O meio termo proposto é, então, um presidencialismo de coalizão necessariamente modificado pela nova realidade, mas, ainda assim, um sistema em que o presidencialismo seja o elemento substantivo, identificador do sistema de governo, sendo adjetivo - ainda que importante - o seu caráter coalizacional.  Pelo que posso entender, seria esse o cenário de longo prazo propiciador da governabilidade almejada.

Acredito ser possível - considerando a representatividade do nosso sistema, altamente inclusivo - interpelar o diagnóstico, que vem sendo convertido em premissa, de que a fragmentação é o problema principal, para cogitar que o problema primordial, que converte a fragmentação em obstáculo como se fosse da sua própria natureza impedir o governo eficaz, seja a qualidade da representação política que se afirmou entre nós. Ela é crítica, apesar do caráter inclusivo do sistema, e isso não poderia sair grátis. Temos aqui o caso complexo de representatividade ampla convivendo com representação insatisfatória.

Fora do meu propósito, com essa suposição, trazer a debate uma antiga querela normativa sobre se num sistema democrático importa mais governabilidade ou representação. A preocupação é outra, de caráter cognitivo e pode se exprimir, coloquialmente, na pergunta sobre o que está “pegando mais” e, assim, dificultando uma percepção (dos analistas e do "grande público") mais favorável sobre a saúde do nosso sistema democrático. Se admitida a concorrência entre as duas premissas (a da fragmentação e a da qualidade da representação), um modo de evitar uma investigação acerca da precedência do ovo ou da galinha é derivar, da incerteza sobre a soberania das premissas, outras perguntas, em sequência.

Para não cair num racionalismo desarrazoado e sem senso de proporções, não seria o caso de se evitar ver a fragmentação como uma realidade patológica a ser “mudada”?  Vejo sentido em tomá-la como dado independente, ambíguo em suas implicações democráticas (torna a governação mais complexa e a representatividade mais ampla e diversa) e que só pode mudar, sem traumas regressivos, por efeito incremental de processos de interação política prática e/ou mudanças no sistema partidário via reformas eleitorais pontuais e moderadas - como a de 2017, mencionada no próprio artigo de Abrucio.

Por esse caminho de raciocínio, uma suposta recuperação, pelo Executivo, de um forte poder de agenda não seria, em vez de solução real, um atalho, remendo que conservaria parte relevante do problema? Vejo sentido em pensar que isso constrangeria a emersão de novas soluções interativas, abortaria a maturação de efeitos alcançáveis, a médio prazo, por reformas institucionais moderadas e incrementais e, por fim, reiteraria uma cultura política avessa a pactos e confiante em personalidades espaçosas.

Terceira pergunta é se há sentido em ter-se como horizonte um sistema de governo cujo desenho institucional seja tão flexível que a regra política substantiva possa ser justamente a da coalizão. É verdade que, se partimos de premissa diversa da de Abrucio, uma agenda de reformas tornar-se ainda mais obscura, ou talvez nem faça muito sentido. O próprio Abrucio, partindo da premissa que parte, deposita mais expectativas em métodos de interação política e em conteúdo de políticas do que propriamente em estipulação de novas regras. Nesse ponto, tendo a segui-lo, embora tendo em tela não uma estratégia de recuperação de protagonismo do Executivo, mas de aperfeiçoamento da interação entre os dois poderes pela redução do decisionismo e pela valorização da lógica da coalizão em ambos.

Para que o argumento da coalizão como valor positivo seja exequível, o horizonte institucional precisa de plasticidade, não de fixação, formal ou informal, de poderes de agenda dos dois Poderes aos quais, constitucionalmente, confere-se competências de governo. Uma intuição que não se deve desprezar é a de que a distribuição de poderes de agenda varie mesmo, dentro de balizas flexíveis, de acordo com a distribuição de poder político realizada a cada eleição. Se as urnas produzem convergência forte de agendas entre Legislativo e Executivo, a cooperação é a tendência e a coalizão, consequência. Se ocorre o oposto, como agora, a coalizão é uma condição para a cooperação e, no limite, para a governabilidade.

Considerada a hipótese de que a demanda primordial, decorrente do déficit democrático, é, embora sem menosprezar a da efetividade dos governos, a qualidade da representação, não seria o caso de se procurar assentar a governabilidade institucional e a estabilidade política no antigo valor da representação como expressão mais fiel possível da vontade do eleitor? Se partiu dele o imperativo de que pautas opostas de Executivo e Legislativo devam ser conciliadas, não há “regra de ouro” mais racional que produzir governos de coalizão. Essa é a criança que não pode ser atirada fora junto com um presidencialismo de coalizão que já fez água. A insistência em congelá-lo em busca de que readquira a solidez perdida pode queimar os dedos dos feiticeiros pois, como se sabe, gelo queima. Pede-se fogo brando para descongelar e aquecer a democracia, quem sabe até com fervor, mas sem fervura.

É evidente que as especulações feitas neste artigo requerem aprofundar (assim como Abrucio fez com o tema da fragmentação) o tema da (má) qualidade da representação política que temos no Brasil, refletida no agir político dos dois poderes governativos da República. De modo especial requerem dedicar esforço analítico ao que se passa e ao que se pode querer que se passe no Poder Legislativo, antes, durante e após os processos eleitorais que legitimam institucionalmente a sua composição e a ação política dos seus membros, de modo particular das suas cúpulas. A coluna tentará se debruçar sobre isso, em suas próximas edições.

*Cientista político e professor da UFBa

Nenhum comentário: