segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Sergio Lamucci - As incertezas fiscais e o ciclo de queda dos juros

Valor Econômico

Se quer dar segurança ao BC na redução da Selic, o fundamental é o governo atuar para diminuir dúvidas que continuam a existir sobre as contas públicas

O novo arcabouço fiscal contribuiu para o clima de maior otimismo sobre o Brasil dos últimos meses, em combinação com a aprovação da reforma tributária pela Câmara dos Deputados, o desempenho melhor que o esperado da economia e o cenário externo mais favorável, além do bom resultado das contas externas. O dólar opera abaixo de R$ 5 há semanas, e a agência de classificação de risco Fitch elevou a nota de crédito do país de BB- para BB. No entanto, algumas incertezas importantes sobre as contas públicas continuam a existir, ainda que a nova regra tenha afastado riscos mais extremos e iminentes.

Uma redução dessas indefinições será fundamental para um ciclo sustentado de queda dos juros, iniciado na semana passada, com o corte da Selic de 13,75% para 13,25% ao ano. Se aumentarem as dúvidas sobre a trajetória das contas públicas, a percepção sobre o risco Brasil voltará a subir. Isso pressionaria indicadores como o CDS (credit default swaps, uma espécie de seguro contra calotes), os juros futuros e o câmbio, afetando as perspectivas mais favoráveis para a inflação. Num quadro como esse, o ciclo de baixa dos juros tenderia a ser mais curto e menos intenso.

Para começar, o novo arcabouço depende de aumentos expressivos de receitas para bancar o crescimento de despesas sempre acima da inflação, de 0,6% a 2,5% ao ano, e há dúvidas relevantes sobre a capacidade de o governo conseguir elevar com força a arrecadação nos próximos anos. Não será uma tarefa fácil ampliar as receitas na magnitude requerida para cumprir as metas de resultado primário, que excluem os gastos com juros. Para zerar o déficit do governo central em 2024, como pretende a equipe econômica, é necessária uma arrecadação extra de R$ 130 bilhões, dos quais boa parte depende da aprovação de mudanças na legislação que tramitam no Congresso, ou mesmo de medidas não apresentadas formalmente, como mostrou reportagem do Valor na semana passada.

Na visão dos economistas, as projeções indicadas no arcabouço para o resultado primário do governo federal deste ano e para o próximo não deverão ser cumpridas. Para 2023, a estimativa central é de um déficit de 0,5% do PIB; para 2024, a intenção é zerar o rombo. Na sexta-feira, a XP divulgou as suas novas projeções econômicas, estimando déficit de 1% do PIB para os dois anos.

Em 21 de julho, o Ministério do Planejamento divulgou o Relatório Bimestral de Avaliação de Receitas e Despesas relativo ao terceiro bimestre, elevando a previsão do déficit primário do governo central para 2023 de R$ 136,2 bilhões para R$ 145,4 bilhões, o equivalente a 1,4% do PIB, um número bem distante do rombo de 0,5% do PIB que aparece na projeção central do arcabouço - a estimativa da regra aponta um intervalo de um déficit de 0,25% a 0,75% do PIB. Em resumo, nem o próprio governo prevê que o resultado primário ficará em -0,5% do PIB neste ano - integrantes do Planejamento falam num buraco de 1% do PIB, mesmo assim maior que a projeção do arcabouço.

No seu relatório anual sobre a economia brasileira que veio a público na semana passada, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tampouco estima que o déficit primário do governo central será zerado no ano que vem. O FMI projeta um rombo de 1,3% do PIB em 2023 e de 0,8% do PIB em 2024. O resultado só volta ao azul em 2026, com um superávit de 0,3% do PIB, nas contas do Fundo.

Numa análise detalhada do arcabouço fiscal, o FMI aponta alguns problemas e faz sugestões para aperfeiçoar a nova regra. O relatório diz que o arcabouço dá sustentação à gestão da responsabilidade fiscal, mas se tornou “relativamente complexo”. A instituição aponta inconsistências internas no modelo, como limites para gastos (ainda que acima da inflação), enquanto despesas obrigatórias continuam a crescer. Há também o viés pró-cíclico, pela vinculação da expansão dos gastos à variação da receita no ano anterior. O FMI vê ainda aumento da rigidez com o novo arcabouço, uma vez que há pisos para o crescimento das despesas e para o investimento. Entre as ideias para aperfeiçoar a nova âncora fiscal, o Fundo sugere uma regra que enfrente o nível elevado dos gastos públicos como proporção do PIB, reduzindo os riscos de um ajuste fiscal apenas por meio do aumento de receitas.

No curto prazo, a possibilidade mais concreta de tornar o arcabouço mais firme é a Câmara dos Deputados derrubar mudanças introduzidas pelo Senado, como as que abrem espaço para mais despesas. Os deputados devem apreciar o projeto neste mês.

A situação fiscal do país não é dramática, mas está longe de estar equacionada. Os números mais recentes já mostram as contas públicas no terreno deficitário - o resultado do setor público consolidado, que inclui Estados, municípios e estatais não financeiras, excluindo Petrobras e Eletrobras, ficou negativo em 0,24% do PIB nos 12 meses até junho. Além disso, os dados do segundo semestre devem apontar um aumento do rombo, como indicam as projeções de bancos e consultorias do próprio governo para o desempenho do ano. A percepção sobre as contas públicas pode piorar se não ficar claro que o governo levantará as receitas conforme previsto na nova regra, colocando em risco o esforço fiscal para deter o crescimento da dívida do governo em relação ao PIB.

Um crescimento mais forte da economia em 2024 do que o projetado hoje pode gerar uma arrecadação maior, assim como a queda das despesas com juros também ajudará na dinâmica do endividamento público. Mas, se quer dar segurança ao Banco Central (BC) no processo de redução da Selic, o fundamental é o governo atuar para diminuir incertezas fiscais que permanecem, mesmo que o arcabouço fiscal tenha afastado a ameaça de cenários mais adversos.

 

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