O Estado de S. Paulo
Pode ser que fração relevante da montanha de
capital para aplicação em energia renovável e fixação de carbono desabe cada
vez mais por aqui. Bom? Nem sempre
A pergunta do título talvez expresse um
antigo senso comum nacional – que destoa de certos movimentos da economia.
Começando por estes: um fluxo de riqueza acumulada, na forma de capital, medido
num mínimo de US$ 2 trilhões anuais, está indo especialmente de investimentos
em carvão, gás e petróleo para aplicações basicamente em energia renovável e
fixação de carbono.
Esse fluxo tem o Brasil como um dos alvos preferenciais – o que gera um inusitado problema. O Produto Interno Bruto (PIB) do País flutua em torno de US$ 1,5 trilhão. Paira a possibilidade de uma fração relevante da montanha de capital, de magnitude maior que esse PIB, desabar cada vez mais por aqui.
Bom? Nem sempre. A visão de capital abundante
vindo de fora como ameaça tem raízes históricas profundas. A grande questão
econômica brasileira do século 20 tinha nome: “desenvolvimento”. As melhores
mentes do País quebravam a cabeça em torno do objetivo, buscando fórmulas para
reunir um mínimo de capital numa realidade na qual ele era escassíssimo.
Valia de tudo – até mesmo transformar
impostos cobrados da sociedade em capital de empresas estatais, funcionários
públicos probos em gestores de risco. Atitude realista até a multiplicação do
preço do petróleo, em 1973. Ela gerou fluxos de capitais globais muito
abundantes. A escassez terminara.
A reação brasileira à mudança foi desfrute de
regime autoritário. Tomar os recursos como empréstimo estatal, implementar com
eles um programa de investimentos que faria o “desenvolvimento” a partir do
governo, isolando o mercado interno da ameaça dos então chamados “capitais
multinacionais”. O País colecionou pobreza sozinho. Já o mundo, enriquecido
pelos negócios criados com os capitais abundantes da globalização, pouco se
lixou.
Agora há um novo fluxo de capitais globais,
uma nova oportunidade. Mas a desconfiança para planejar economia com eles é
herança que turva as percepções. Não é um problema geral. Capitais aplicados em
energia renovável, por exemplo, trafegam em ambiente acostumado ao padrão
global.
Já floresta é realidade local.
E aplicar capital na atividade de fixar
carbono nela é investimento de ponta, para criar mercado onde ele ainda não
existe. Não falta quem enxergue esse movimento como uma ameaça externa, como um
investimento destinado a impedir os negócios existentes, voltar os brasileiros
à condição de selvagens primitivos.
Será? Um modo simples de lidar com o dilema
sem ideologia é pensar a partir do território brasileiro. O Brasil país tem uma
área de 851 milhões de hectares. Como se distribuem as atividades na parte
natural desse espaço?
Começando pelo etanol – afinal, o produto
tecnológico brasileiro que marcou a entrada da natureza na produção de energia,
em escala global. A cana para a produção desse biocombustível, mais aquela
destinada ao açúcar, ocupa uma área de 8,1 milhões de hectares, ou pouco menos
de 1% do território nacional. Cabe muito mais.
Indo para o agronegócio tradicional. Toda a
produção de grãos no Brasil ocupa uma área de 77 milhões de hectares, ou 9,4%
do território. E subindo na escala: as pastagens se espalham por 156 milhões de
hectares – 18,3% do território brasileiro. Somando as duas, são 236 milhões de
hectares e 27,7% do território.
Para quem imagina que esse é o domínio da
grande propriedade, eis um dado essencial. O Brasil tem 6,4 milhões de imóveis
rurais registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR). A área total deles é de
419 milhões de hectares. Com isso, a instalação média brasileira teria 65,4
hectares. São 27 alqueires paulistas ou 13,5 mineiros.
Comparação? Nos Estados Unidos, espalhadas
por 9,38 milhões de quilômetros quadrados, existem 2,1 milhões de propriedades
rurais. Uma divisão direta daria 446 hectares por propriedade – mas as bases de
cálculo são diferentes.
Todas as instalações privadas registradas no
CAR ocupam apenas 51,4% do território nacional. Como, ainda assim, é área bem
maior que a empregada para o agronegócio como um todo, sobra uma fatia imensa,
com um mínimo calculado em 72 milhões de hectares de florestas em áreas
privadas.
E sobra ainda muita área potencial para
restaurar florestas. Apenas as áreas da pecuária identificadas com sinais de
degradação se estendiam por 82 milhões de hectares, em 2020. O País já tem um
modelo pronto e no pipeline de financiamento do BNDES, pelo qual pecuária e
árvores se combinam para chegar ao carbono neutro na atividade. E já avança
muito em rações que diminuem as emissões de metano, melhorando ainda mais as
perspectivas.
O espaço do artigo está acabando, de modo que
não vai dar para falar nos 278 milhões de hectares (33% do território) que são
florestas preservadas em áreas governamentais de conservação e reservas dos
povos originários. Nem do espaço natural remanescente – com destaque para 50
milhões de hectares de florestas em áreas sem titulação, desde os tempos pré-cabralinos.
Fica o essencial: quando se pensa em economia
de carbono neutro e nos projetos que podem ser mobilizados com os novos
capitais que se tornam disponíveis no planeta, uma soma real talvez possa ser
hipótese mais realista de planejamento do crescimento econômico que antigas
antinomias.
*Escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL)
Um comentário:
Excelente. Mas temos que lembrar que uma parte da Amazônia não é floresta, e a maior parte do cerrado e da caatinga não são floresta, da mesma forma como partes expressivas do sul do Brasil (apenas 1/3 do RS foi florestal). Ou seja, parte significativa do nosso país não era florestal, e tem pouco sentido pensar em plantar árvores nela.
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