Folha de S. Paulo
Na crise de consenso das classes dirigentes,
o que se defende com estatuto ministerial é o status-quo bem-nutrido contra a
imprevisibilidade dos precarizados de tudo
"As pessoas ficam, as instituições
passam." Este penoso ato falho do procurador-geral da República em seu discurso de
despedida no STF pode trazer alguma luz também para as ruminações do ministro
da Defesa sobre a relutância de militares em saírem de cena. Na insuperável autoapoteose
do procurador, o silêncio vestiu capa de super-herói. Se houvesse algum grau de
realidade, não faltariam, num ambiente próprio a latinórios, interjeições do
tipo "valete et plaudite!" (amém!, assim seja!). O protocolo, porém,
foi sóbrio.
Ato falho é uma espécie de fala silenciada, que transparece num equívoco e pode resultar em acerto. Décadas atrás, já pública a intenção da ditadura de devolver o poder aos civis, determinado ministro militar declarou na tevê que "sim, era hora de voltar à caverna". Lapso de língua, inequívoco ato falho freudiano, sujeito a interpretação diversa daquela em que incorreu o procurador.
Esse tipo de deslize, que a psicanálise
circunscreve ao singular, ganha alcance coletivo quando o falante se faz
porta-voz involuntário de algo mais amplo. Individualmente, a interpretação
mostra que o desejo do procurador não era realmente despedir-se. Seu silêncio,
amortecedor segundo ele, teria sido o fiel da balança democrática. Mas o desejo
de permanecer era conjunturalmente afim ao estado de espírito do grupo militar
refratário ao resultado das urnas, conforme o ministro da Defesa.
Questão aberta é a natureza desse grupo:
clubes, oficiais de pijamas, colegas de caserna, trambiqueiros, esparsos
brucutus na ativa. Numa republiqueta de meia-sola, isso periga constituir
esfera de ação superior à da fala. Num país continental, uma das maiores
economias do mundo, pagando em dia a dívida externa, a coisa muda de figura. Em
suma, não há golpe de Estado sem consentimento americano. Foi assim em 64 no Brasil, assim foi em 73 no Chile.
Mas há subgolpes (em 68, um deles) e sempre em suspenso a ameaça de rupturas
democráticas. A velha guarda palaciana, que pontua a história do país com
intervenções, acha-se dona da bola. Na dividida se conhece o ciúme do jogador.
Uma queda de braços: guerra mesmo não há, o ministro da Defesa é árbitro
conciliador em campo, administrando humores e negociando orçamentos.
Na crise orgânica de consenso das classes
dirigentes, o que realmente se defende com estatuto ministerial é o status-quo
bem-nutrido contra a imprevisibilidade dos precarizados de tudo. Daí não sai
desenvolvimento nacional pacífico. A verdadeira paz passa hoje por formas
moleculares de uma guerra social, da qual, em seu silêncio operativo, nada
parecem saber ministros e generais. Uma coisa apenas é certa em golpismos e
atos falhos: os donos da bola fazem o diabo para permanecer no gramado.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor,
entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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