GLO de Lula é necessária, porém insuficiente
O Globo
Governo federal ao menos reconhece
responsabilidade pela crise de segurança. Mas resolvê-la exige mais
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfim se convenceu — ou foi convencido — de que a grave crise de segurança que o país atravessa não permite hesitação. Dias depois de afirmar que, enquanto fosse presidente, não decretaria uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) com presença das Forças Armadas, Lula anunciou um plano de segurança em que uma das principais medidas é justamente a GLO. Melhor assim. Qualquer iniciativa que possa contribuir para combater o crime organizado merece ser considerada, especialmente quando argumentos técnicos se sobrepõem aos político-ideológicos.
A GLO decretada por Lula traz um sinal de
maturidade: os militares não subirão morros nem enfrentarão o crime no corpo a
corpo, missão que já deu errado no passado. Desta vez, cumprirão seu papel de
zelar pelas fronteiras. Atuarão nos
portos do Rio, Itaguaí (RJ) e Santos (SP), além dos aeroportos de Guarulhos
(SP) e do Galeão (RJ), em conjunto com Polícia Federal (PF) e Receita
Federal. Terão prerrogativas de polícia, poderão revistar
passageiros e inspecionar aeronaves, embarcações, bagagens e contêineres. Além
disso, a Marinha intensificará o patrulhamento nas baías de Guanabara, de
Sepetiba e na parte brasileira do Lago de Itaipu. Exército e Aeronáutica
ampliarão a vigilância nas fronteiras em conjunto com PF e Polícia Rodoviária
Federal (PRF), principalmente no Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Grandes carregamentos de drogas e armas
transitam por portos e aeroportos brasileiros e apenas eventualmente são
interceptados. Costumam passar livremente pelas fronteiras. Daí a importância
de reforçar o patrulhamento. O trabalho integrado entre as diversas forças de
segurança é a melhor forma de combater as facções criminosas que controlam as
rotas do tráfico.
Tão importante quanto as ações em portos,
aeroportos e fronteiras é a ideia de criar uma força-tarefa para asfixiar
financeiramente essas organizações. A guerra contra drogas empreendida há
décadas pelas polícias estaduais não tem trazido resultados satisfatórios, e os
índices de violência se
mantêm elevados. A melhor maneira de enfraquecer o crime é cortar sua fonte de
recursos. Tal tarefa demanda investigação, tempo e dinheiro. Também depende da
integração de bases de dados coordenada por autoridades federais.
Não há dúvida de que o combate ao crime
organizado é desafiador. Ontem, no mesmo dia em que a GLO tinha início,
moradores da comunidade da Muzema, Zona Oeste do Rio, acordaram com saraivadas
de tiros disparados por milicianos e traficantes que disputam de forma
sangrenta o controle da região. Essa é a realidade.
Embora necessárias, as medidas anunciadas
pelo governo ainda são insuficientes, considerando que grupos criminosos estão
espalhados por todo o Brasil. Falta um plano de segurança que contemple o país
como um todo, integrando governos federal e estaduais. É verdade que a
segurança pública é tarefa constitucional dos estados, mas está claro que eles
não têm dado conta de enfrentar facções que usam armas de guerra e atuam
internacionalmente. A ajuda federal, dentro dos limites legais, é essencial. Ao
apresentar um plano, ainda que modesto, ao menos a União reconhece também ter
responsabilidade pela crise no país. Mas que ninguém se iluda. Para enfrentar o
poderio das organizações criminosas, será preciso muito mais que isso.
Eventos climáticos extremos exigem atenção
das empresas de eletricidade
O Globo
Falta de luz em São Paulo revela despreparo
das concessionárias para temporais e vendavais
A chuva no estado de São Paulo na última
sexta-feira provocou
a morte de sete pessoas e deixou cerca de 1 milhão de
instalações sem luz por mais de dois dias. A Região Metropolitana de São Paulo
foi a mais afetada pelos cortes. Até ontem pela manhã cerca de 500 mil unidades
consumidoras seguiam no escuro. Autoridades e representantes das empresas
responsáveis por fornecer energia atribuíam
o apagão a ventos de 100km por hora, chuva de granizo e árvores derrubadas.
Redes de distribuição ficaram comprometidas, hospitais sem energia e semáforos
desligados. Se o episódio não servir para o aprendizado, os moradores de São
Paulo e de outras cidades certamente passarão por novos apuros nas próximas
tempestades.
Eventos climáticos extremos como chuvas
torrenciais ou vendavais têm se tornado mais frequentes devido ao aquecimento
global. Como novas intempéries são uma certeza, o poder público precisa adotar
medidas preventivas. Árvores doentes ou com raízes fracas devem ser
substituídas por outras mais resistentes. A poda de galhos precisa ser mais
frequente. Na iminência das chuvas fortes, equipes de emergência precisam estar
a postos para recolher árvores caídas em poucas horas. Prefeituras de cidades
estrangeiras onde neva forte todos os anos — cidades que nem por isso param de
funcionar — podem servir de inspiração às brasileiras no método de preparo para
as emergências.
As concessionárias de energia também precisam
revisar suas práticas de segurança. Há muitos anos existe o plano de enterrar
toda a fiação em São Paulo, mas pouco foi feito. Na maior parte da cidade, as
redes de distribuição passam por postes, muitas vezes perigosamente perto das
árvores. Acidentes são previsíveis. A Prefeitura paulistana deveria reservar
parte de seu orçamento para enterrar os fios. Não será possível fazer tudo de
uma vez, mas é fundamental começar.
Outro problema tem sido o tempo de reação
diante da emergência. A Enel São
Paulo, concessionária que sofreu impacto em 2,1 milhões de instalações, está na
19ª colocação no ranking de continuidade do serviço de distribuição, organizado
pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O tempo médio de atendimento
à ocorrência de emergência foi acima de 12 horas entre fevereiro e abril deste
ano (últimos dados), ante 8,5 horas pouco mais de um ano antes. A título de
comparação, na Energisa Paraíba ou na EDP Espírito Santo, a média está abaixo
de 7 horas.
Críticos têm atribuído o desempenho ruim à
redução no quadro de pessoal depois da compra da Eletropaulo pela Enel em 2018.
Mas o debate não pode ser reduzido ao número de funcionários. A questão central
é a falta de um plano de resposta aos eventos climáticos extremos. É um
problema de gestão para o qual a empresa não parece preparada. Cabe à
autoridade reguladora cobrar dela e de todas as demais concessionárias
condições para que não se repita um apagão dessas dimensões.
Velhos desafios climáticos e financeiros
aguardam COP28
Valor Econômico
Gap de recursos entre o necessário e
disponibilidade atual é enorme
Nas vésperas da COP28, que será realizada de
30 de novembro a 12 de dezembro, em Dubai, o Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (Pnuma) divulgou sua oitava avaliação do volume de recursos
necessários para os países em desenvolvimento se adaptarem à emergência
climática. O gap de dinheiro é gigantesco: os países em desenvolvimento
precisariam investir US$ 215 bilhões por ano nesta década para enfrentar e
evitar as emergências climáticas, de acordo com os compromissos assumidos
(NDCs, na sigla em inglês). No entanto, dados mais recentes da ONU registram
que os recursos canalizados para esses objetivos diminuíram 15% em 2021, para
meros US$ 21 bilhões.
Ou seja, faltam nada menos do que US$ 194
bilhões por ano para se chegar ao patamar mínimo considerado necessário pelo
Pnuma, ou até US$ 366 bilhões em projeções mais pessimistas. O valor é inferior
à promessa muito mais modesta feita em 2021, na COP26, em Glasgow, quando os
países desenvolvidos disseram que iriam contribuir com US$ 40 bilhões por ano
até 2025 para essa finalidade.
A necessidade de recursos para enfrentar a
adaptação climática é mais do que o dobro dos US$ 100 bilhões por ano que os
países desenvolvidos prometeram mobilizar para ajudar os menos desenvolvidos, o
que foi lembrado pelo presidente Lula quando foi à COP27, há um ano, no Egito,
ainda antes da posse.
Se o volume de dinheiro necessário
impressiona, impacto ainda maior causam as vultuosas contas dos desastres
registrados pelo mundo, como secas e enchentes, cada vez mais frequentes e
violentos em consequência do aquecimento global, e que ressaltam a urgência de
providências. Estima-se que os eventos climáticos extremos custaram mais de US$
220 bilhões em 2022. Só as chuvas causadas por monções especialmente violentas
no Paquistão provocaram perdas de US$ 30 bilhões, sem falar em mais de mil
mortes.
O Pnuma alerta que a falta de recursos, de
bons planos e de implementação de medidas de adaptação obrigará mais países a
recorrerem ao novo Fundo de Perdas e Danos, destinado a ser usado quando não é
mais possível se adaptar aos efeitos climáticos, aprovado finalmente na COP27.
Esse fundo era uma demanda dos países em desenvolvimento desde a Cúpula da
Terra do Rio, de 1992. É o caso das ilhas do Pacífico que estão sob o risco de
submergirem com o aquecimento global, apesar de praticamente não emitirem poluentes.
O Paquistão, com menos de 1% das emissões globais de gases de efeito estufa,
ocupa o oitavo lugar entre os países mais ameaçados por eventos climáticos
extremos. Como disse o presidente Lula, no Egito, o 1% mais rico da população
do planeta emite 70 toneladas de CO2 per capita ao ano, enquanto os 50% mais
pobres emitem, em média, apenas uma tonelada per capita.
A criação do Fundo de Perdas e Danos acabou
sendo surpreendentemente aprovada na madrugada de 20 de novembro de 2022,
atrasando em dois dias o término da Conferência do Egito. O acordo das 198
nações participantes prevê a “criação de novos mecanismos de financiamento para
ajudar países em desenvolvimento que são particularmente vulneráveis aos
efeitos adversos das mudanças climáticas”.
A expectativa é que o acordo desse fundo seja
formalizado agora na COP28. Diante da propensão dos países industrializados de
empurrar com a barriga sua criação, o responsável pela COP28 nomeado pelos
Emirados Árabes Unidos, Sultan Al Jaber, já mandou recados salientando que
gostaria que todos se esforçassem para fechar o acordo.
Um dos principais pontos é definir as fontes
de financiamento e quem deverá contribuir. EUA e União Europeia receiam ver
mais uma conta cair nos seus colos uma vez que estão entre os maiores emissores
históricos de poluentes, e demandam a participação de países como o Brasil, a
Índia e a China. Os chineses são atualmente responsáveis por 27% de todas as
emissões planetárias, bem mais que os cerca de 12% dos americanos, que estão em
segundo lugar, mas, historicamente, são os maiores emissores.
Em reunião preliminar da área técnica ontem,
em Abu Dhabi, houve progresso em vários pontos, como a alocação dos fundos no
Banco Mundial e a determinação de que os recursos tenham fácil acesso. O ponto
mais controvertido é quais países deverão contribuir para o fundo. A solução
dada promete suscitar novas discussões ou inviabilizar a proposta, uma vez que
todos, países ricos e em desenvolvimento, são “instados a contribuir em bases
voluntárias”. O representante dos EUA já disse que o documento não era de consenso
(Valor, 6/11).
Chegar a um acordo definitivo para o Fundo de
Perdas e Danos não será o único desafio da COP28. Será ainda preciso superar a
tendência dos árabes de atenuar as críticas aos combustíveis fósseis. Não ajuda
o fato de a COP28 será realizada no país que, com 10 milhões de habitantes,
está em sexto lugar no ranking dos maiores emissores per capita de CO2 do
mundo; e que será presidida pelo CEO da estatal ADNOC, a 11ª maior produtora de
petróleo e gás do mundo.
Apagão climático
Folha de S. Paulo
Caos após tempestade em SP exige ações
rápidas e duradouras para fenômenos naturais
A região metropolitana de São Paulo começou a
semana com pelo menos
500 mil endereços comerciais e residenciais sem energia elétrica. Em
algum momento do fim de semana, cerca de 4,2 milhões de domicílios no estado
ficaram sem luz. Os apagões chegaram a durar quase três dias para muitas
pessoas.
Na capital, uma tempestade com ventos de mais
de 100 km/h desencadeou o caos que se seguiu, levando moradores e comerciantes
de muitos bairros a perder toneladas de alimentos refrigerados e, aos milhares,
a conexão via internet com o resto do mundo.
As rajadas excepcionais também arrancaram a
tampa que encobria duas limitações estruturais da maior metrópole do país: São
Paulo revelou-se despreparada para eventos climáticos que podem se tornar cada
vez mais radicais e constantes; e convive com um problema bilionário, de
difícil solução, que emaranha fios elétricos e de internet a suas árvores.
Desta vez, a tempestade não atingiu somente
moradores das periferias, que sofrem há anos com enchentes e a morosidade
municipal e estadual para solucionar o problema. Ela castigou milhões de
pessoas em bairros ricos e de classe média, com grande repercussão. A reação
dos responsáveis, no entanto, leva a crer que São Paulo pode ser obrigada a se
acostumar a isso.
A prefeitura paulistana e a Enel,
concessionária italiana que atende a capital e 23 municípios da região
metropolitana, deram respostas práticas lentas ao ocorrido, e insatisfatórias
visando o futuro.
A cidade tem cerca de 750 mil postes e, sob
responsabilidade da Enel, 43 mil km de fios. Só 6% são enterrados, e estima-se
em R$ 170 bilhões o investimento necessário para completar este trabalho.
O resto da fiação disputa o espaço aéreo com
galhos e árvores que carecem de um
programa mais robusto da prefeitura para podas e, em alguns
casos, cortes radicais.
Falta ainda mais fiscalização municipal
contra fiações irregulares, geralmente de internet, que sobrecarregam o cipoal
de cabos e equipamentos pendurados nos postes. Só 92 multas foram aplicadas
contra esse tipo de infração em 2022, somando menos de R$ 100 mil.
Com as falhas na prevenção e no
reestabelecimento da rede, é preciso agora que se cobre do órgão regulador um
plano de longo prazo, que reúna concessionária e prefeitura. Essa
responsabilidade é da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São
Paulo (Arsesp), que tem delegação da agência federal, a Aneel, para
supervisionar 14 concessionárias.
O tempo vai demonstrando que eventos
climáticos extremos serão cada vez mais frequentes, e que é preciso estar
preparado. Fornecer luz e água é o mínimo que se espera.
Perda de ritmo
Folha de S. Paulo
Perspectiva para o emprego reforça
necessidade de ajustar contas para baixar juros
O ritmo de geração de vagas e queda na
desocupação neste ano indica, até aqui, que a situação do mercado de trabalho
não é negativa. O quadro, no entanto, pode ser menos promissor adiante, com a
esperada perda de vigor da economia.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad), do IBGE, a taxa de
desemprego fechou o terceiro trimestre em 7,7%, uma queda relevante
frente à observada no mesmo período de 2022 (8,7%).
Enquanto isso, ainda persiste certa retomada
dos rendimentos, que crescem 4,2% na comparação com igual período do ano
passado. A massa de renda, que multiplica os salários pela população ocupada,
do mesmo modo, expandiu-se 5%.
Mas os dados mascaram uma situação menos
exuberante. A criação de novos postos de trabalho perdeu ritmo no trimestre,
depois de longo período de dinamismo.
A geração de vagas formais ainda é positiva,
pouco acima de 200 mil postos mensais em agosto e setembro —o que se traduz em
menos de 100 mil quando considerada a sazonalidade. Mas a velocidade em relação
a 2022 é bem menor.
Ao mesmo tempo, a taxa de participação na
força de trabalho ainda se encontra em nível inferior ao que vigorava antes da
pandemia —61,8%, ante 63,8%. Em outras palavras, se o contingente todo de
trabalhadores inativos voltasse a procurar emprego, a taxa de desocupação seria
próxima a 10%.
Ainda há, em tese, grande subutilização de
mão de obra, o que poderia facilitar a continuidade do crescimento não
inflacionário da economia. As razões para a baixa participação, por outro lado,
podem incluir a expansão de programas de renda básica, que elevam o salário de
referência.
De todo modo, a economia parece perder ritmo,
algo que em breve deverá atingir o trabalho. Dados preliminares, como a
sondagem de serviços, sugerem retração no PIB do terceiro trimestre, passado o
impacto da safra recorde.
A arrecadação de impostos mostra estagnação,
com a queda real de 0,34% em setembro, ante o mesmo mês de 2022. Trata-se da
quarta baixa consecutiva, o que recomenda prudência na gestão dos gastos ainda
não vista até aqui.
Tudo isso deveria nortear o governo a reforçar o ajuste fiscal e manter compromisso com a meta de restaurar saldos positivos nas contas. Seria, assim, facilitada a aceleração na queda dos juros, ação mais eficaz para evitar um quadro social e econômico adverso.
A volta do ‘gasto é vida’
O Estado de S. Paulo
Ao mandar ministros gastarem em obras, Lula
explicita visão populista contra a responsabilidade fiscal e mina as poucas
alternativas que Haddad tem para reduzir rombo das contas
Se ainda havia alguma dúvida sobre a
convicção do governo a respeito da necessidade de cumprir a meta fiscal no ano
que vem, o presidente da República terminou de desfazê-la na semana passada. Em
uma reunião com ministros da área de infraestrutura, Lula da Silva deu um passo
além no processo de desgaste a que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem
sido submetido desde que sua promessa de cumprir a meta de déficit zero em 2024
foi solenemente desmoralizada pelo timoneiro petista, no dia 27 de outubro.
“Para quem está na Fazenda, dinheiro bom é
dinheiro no Tesouro. Mas, para quem está na Presidência, dinheiro bom é
dinheiro transformado em obras”, disse Lula. O presidente orientou ainda que os
ministros não deixassem “sobrar dinheiro que está previsto para ser investido”.
A frase de Lula não tem nada de acidental. Em
tese, os recursos reservados no Orçamento têm mesmo de ser aplicados nas obras
a que se destinam. O Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do relatório
Fiscobras, já identificou que problemas de fluxo de caixa explicam boa parte
dos milhares de obras paradas no País.
Não é, no entanto, a esse problema crônico
que o presidente fez referência na semana passada. Lula, na verdade, atacou as
poucas ações que o ministro Haddad tem à mão para conter a sangria do gasto
público e tentar se aproximar da meta fiscal: os empoçamentos e os
contingenciamentos.
Quando um país não arrecada o suficiente para
dar conta de seus gastos, é preciso aumentar impostos ou reduzir custos. O
impasse em torno dessa questão é que Lula é contra qualquer tipo de corte de
despesas, enquanto o Congresso se recusa a aprovar medidas que aumentem as
receitas da União.
Nesse contexto, o déficit zero é uma
impossibilidade matemática, mas o ministro tem algumas cartas na manga às quais
recorrer para melhorar um pouco o resultado primário, como o empoçamento e o
contingenciamento.
O empoçamento se dá quando o Orçamento
reserva, a uma determinada área, uma quantidade de recursos maior que sua
capacidade de gerenciá-la. A “poupança” gerada pelo empoçamento acaba por ser
redistribuída no fim do ano ou contribui para um melhor resultado fiscal.
Outro artifício utilizado pelo governo é o
contingenciamento de despesas discricionárias. Como não é possível bloquear o
pagamento de salários dos servidores e dos benefícios previdenciários, o
Executivo corta gastos não obrigatórios, entre os quais investimentos e emendas
parlamentares.
O Congresso logo percebeu que o cumprimento
da meta dependeria do bloqueio de despesas. Assim, decidiu se antecipar e
limitou os contingenciamentos a, no máximo, 25% das despesas discricionárias.
Com atraso, Lula agora também se volta contra essas medidas, cobrando dos
ministros que encontrem formas de torrar toda verba antes que ela empoce e
fique sujeita a ser contingenciada.
O pedido de Lula não é uma defesa da melhoria
da execução do gasto público, da realização de investimentos prioritários para
a população ou de um esforço para evitar o aumento do estoque de obras
paralisadas. É um boicote público às poucas escolhas que Haddad ainda tem para
reduzir o déficit público, independentemente das consequências nefastas que
essa gastança possa causar na inflação, nos juros e na economia.
O pior é que o presidente nem faz questão de
disfarçar sua única e verdadeira preocupação: a eleição de 2026. Ao instar os
ministros a serem os “melhores gastadores”, Lula disse que, “se os ministros
forem bem, o Brasil vai bem, e eu e o Alckmin (Geraldo Alckmin,
vice-presidente) vamos bem, e se vocês não fizerem direito, o Brasil vai mal, e
eu e o Alckmin vamos mal”.
Longe de ser uma expressão mal colocada, a
frase traduz com exatidão a visão populista de um presidente da República que
confunde o desempenho do País com seu sucesso eleitoral. É, nada mais, nada
menos, que a versão atualizada da famosa frase da ex-presidente Dilma Rousseff,
para quem “gasto é vida”.
Cada vez mais desacreditada, a meta fiscal
permanece a mesma, ao menos oficialmente. Desta vez, Haddad deixou a reunião
ministerial sem falar com a imprensa. Tampouco teria o que dizer.
A renitência da escravidão moderna
O Estado de S. Paulo
Nunca se resgataram tantos brasileiros em
condições análogas à de escravo como neste ano. É ultrajante à dignidade do
País ainda haver cidadãos submetidos a essa desumanidade
É ultrajante à dignidade do País ainda haver,
em pleno século 21, cidadãos submetidos à desumanidade do trabalho análogo à
escravidão. O dado é alarmante: do início do ano até 3 de outubro, 2.592
pessoas – média de quase dez por dia – foram resgatadas de seus cativeiros
laborais pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), órgão vinculado ao
Ministério do Trabalho. O número, recorde para o período nos últimos dez anos,
foi publicado pelo jornal Valor há alguns dias.
À medida que o Brasil prospera social e
economicamente em algumas frentes, malgrado persistir uma brutal desigualdade
que leva muitos brasileiros a serem tratados, na prática, como cidadãos de
segunda classe, outras porções do País insistem em se manter aferradas ao
atraso, como se o transcurso do tempo e os avanços civilizatórios que
beneficiaram muitos brasileiros simplesmente não existissem para alguns de seus
concidadãos.
Quase três décadas se passaram desde a
criação do GEFM e de outros mecanismos de fiscalização das condições de
trabalho no Brasil. Sem dúvida, houve muitos e importantes avanços nesse
período. Contudo, a despeito dos esforços para dar fim à infâmia, o trabalho em
condições análogas à de escravo é uma realidade impossível de ser ignorada no
País. Persiste como um tumor que teima em se espalhar pelo tecido social.
Combater esse flagelo, que há muito deveria ter sido erradicado, exigirá do
governo e da sociedade um exame crítico e corajoso para reconhecer suas causas
e apontar soluções definitivas.
Este jornal jamais deixaria de contribuir
para esse esforço coletivo, pois, afinal, a luta pelo fim da escravidão no
Brasil é uma de suas causas fundantes, assim como a instauração do regime
republicano e a defesa inarredável das leis e da liberdade em suas múltiplas
dimensões.
Por mais desenvolvido que seja o aparato
estatal para o combate ao trabalho análogo à escravidão, ele pouco servirá para
erradicar o problema enquanto persistirem no País as condições para que muitas
pessoas socialmente vulneráveis sejam vítimas em potencial das armadilhas dos
exploradores de mão de obra. Só haverá menos gente submetida a essa forma de
escravidão moderna quando o governo se dedicar com afinco ao provimento dos
meios para que cada indivíduo seja capaz de se desenvolver e prosperar.
Concretamente, está-se falando da oferta de
educação pública de qualidade, sobretudo educação básica, para todos os
cidadãos. Está-se falando de acesso à saúde e ao saneamento básico. Ademais, é
papel do governo estimular a criação de um ambiente econômico que incentive a
geração de empregos de qualidade, os únicos capazes de propiciar uma renda
mínima para que os cidadãos tenham o direito de viver uma vida digna. A
precariedade é terreno fértil para a exploração. E, enquanto houver indivíduos
com acesso limitado a esses recursos essenciais, a vulnerabilidade de muitos
deles ao trabalho análogo à escravidão persistirá.
Essa indecência já não cabia no Brasil de
outrora e, definitivamente, não cabe no Brasil de 2023. No entanto, ainda são
frequentes os relatos de condições desumanas de trabalho, de jornadas
exaustivas e de falta de remuneração justa, além de violações dos direitos
humanos mais básicos. Os resultados obtidos pelo GEFM nesses quase 30 anos de
atuação falam por si sós, aí estão para demonstrar que parcela significativa da
população ainda sofre sob o jugo da exploração laboral por absoluta escassez de
alternativas não hostis.
É fundamental ressaltar que o avanço da
fiscalização e do combate a esse tipo de crime é um passo essencial para o
progresso civilizatório do País. Entretanto, esse avanço, sozinho, não é
suficiente. A luta contra o trabalho análogo à escravidão deve ser acompanhada
por esforços substanciais em outras áreas.
Já passou da hora de acabar com o flagelo da
escravidão moderna, longe de estar circunscrito aos rincões mais remotos do
País. O desenvolvimento humano no Brasil não será completo enquanto essa chaga
estiver aberta.
Temporal de omissões
O Estado de S. Paulo
O caos provocado pelo apagão em 4,2 milhões
de imóveis em São Paulo não pode mais se repetir
Foi preciso o caos pairar sobre São Paulo e
municípios da região metropolitana para as autoridades públicas e
concessionárias de serviços públicos acordarem para os efeitos da mudança do
clima sobre a população que deveriam bem atender. O temporal do último dia 3
provocou 7 mortes no Estado e deixou 4,2 milhões de imóveis sem energia
elétrica, boa parte por mais de 50 horas. No primeiro dia útil desta semana,
500 mil residências e prédios comerciais ainda permaneciam no escuro. Os ventos
de 100 km/h e as chuvas de sexta-feira certamente surpreenderam a população
atingida. Mas não poderiam jamais ter pegado o poder público e as prestadoras
de serviços de calças curtas.
A situação caótica nos últimos dias em São
Paulo denuncia a ausência de planejamento e de mecanismos de prevenção e de
adaptação da infraestrutura de energia aos efeitos de eventos climáticos que,
como bem se sabe há pelo menos duas décadas, tendem a se tornar cada vez mais
frequentes e agressivos. Pode soar surreal o fato de a queda de centenas de
árvores – sempre bem-vindas em uma capital de concreto e asfalto – ter
provocado um apagão de proporção jamais experimentada na capital paulista e nas
cidades vizinhas. Porém, diante da omissão escancarada das prefeituras e das
concessionárias de energia, é factível dizer que o cenário de caos urbano
estava pronto, à espera de uma tempestade.
A dimensão do sofrimento imposto por essa
negligência à população é inimaginável. Não se trata apenas de casas iluminadas
por velas e de lojas, geladeiras desligadas e prestadores de serviços com as
portas arriadas durante dias. A falta de energia impôs riscos adicionais ao
trânsito, inviabilizou o uso de aparelhos médicos em residências, impediu o
teletrabalho e afetou a comunicação. Três dias depois do temporal, parte das
creches e escolas municipais não abriu as portas, e 125 árvores caídas
atrapalhavam a retomada do fornecimento de energia.
A falta de preparo e rapidez na resposta
acentuou o drama de milhões de moradores da região mais densamente povoada do
País. Deixou estampada a falta de coordenação entre as prefeituras da Grande
São Paulo e as concessionárias de energia para restaurar a normalidade. Expôs
igualmente a urgência de melhor preparo da Defesa Civil, do Corpo de Bombeiros
e da Polícia Militar para o enfrentamento de desastres climáticos.
Embora um plano de mitigação e adaptação a mudanças climáticas, o PanClima SP, adormeça nas gavetas da administração paulistana desde 2021, apenas ontem o prefeito Ricardo Nunes tomou a iniciativa de se reunir com representantes das concessionárias de energia para esboçar ações preventivas. Para ser otimista, melhor tarde do que nunca. Se soluções há muito adotadas, como o enterramento de fiações elétricas, continuam vetadas por seus custos, há de se buscar alternativas. Sobretudo, há de se alertar a população sobre fenômenos climáticos extremos a caminho e preparar-se para protegê-la. O caos vivido em São Paulo não pode se repetir. Que seja o último.
O cuidar precisa ser valorizado
Correio Braziliense
mulher é submetida a um esforço bem superior
ao do homem, que, em média, dispensa 11,7 horas semanais para a casa, enquanto
ela dedica 21,3 horas às tarefas domésticas e aos cuidados de familiares
O tema da redação do Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) 2023 — Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho
de cuidado realizado pela mulher no Brasil — impôs uma reflexão sobre uma
realidade que afeta fortemente o universo feminino, mas que, ao longo do tempo,
foi naturalizada. A tripla jornada ficou na lista do fato consumado, com todos
os danos que representa à saúde física, mental e emocional das mulheres. Ela
cuida da casa, dos filhos, do marido e vai para o trabalho, onde exerce sua profissão,
garante a própria renda, autonomia financeira e colabora com orçamento
doméstico.
A mulher é submetida a um esforço bem
superior ao do homem, que, em média, dispensa 11,7 horas semanais para a casa,
enquanto ela dedica 21,3 horas às tarefas domésticas e aos cuidados de
familiares, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad)
Contínua 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa
jornada diária é bem mais exaustiva, considerando o recorte raça/cor. O estudo
mostra que as pretas têm mais tarefas (97,7%), superando as pardas (91,9%) e as
brancas (90,5%).
Colocar o problema como tema da redação do
Enem foi festejado pela secretária Nacional de Cuidados e Família, do
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome
(MDS), a socióloga Laís Abramo. “É uma realidade para a qual não se presta
muita atenção, há uma naturalização de que a tarefa de cuidar das pessoas é
algo que compete às mulheres, algo que se entende como uma natureza feminina”,
declarou, em entrevista à Agência Brasil.
O equivocado entendimento é, em boa medida,
mais um efeito colateral do machismo e forma de retirar dos homens
responsabilidades que devem ser compartilhadas. Cuidar dos filhos, dos idosos
enfermos, manter limpa a moradia em que todos vivem, entre outras tarefas
domésticas, são atividades coletivas — ou pelo menos deveriam ser, uma vez que
todos convivem e usufruem do mesmo espaço.
Essa mesma compreensão extrapola o ambiente
doméstico e chega aos espaços de trabalho, onde a remuneração das mulheres é
sempre inferior à dos homens, mesmo que ambos tenham a mesma formação
profissional. Ainda que ela tenha capacitação e experiência superiores à do
homem, quase sempre, não é merecedora de uma remuneração maior. Uma das
motivações está associada ao próprio cuidar, que poderia comprometer o seu
desempenho profissional. Além disso, as profissões associadas ao “cuidar” são
as que mais atraem mulheres. Assistência social, psicologia, enfermagem,
pedagogia, advocacia, fisioterapia estão entre as favoritas.
O cuidar doméstico, quando não compartilhado,
é prejudicial à mulher, que não é remunerada pela sua dedicação. Ela perde a
oportunidade de conquistar outros espaços, desenvolver sua capacidade cognitiva
e usufruir de uma carreira rentável, o que a torna dependente do companheiro,
ou de outro familiar, para suprir suas necessidades pessoais. Isso fortalece o
estereótipo de que ela é incapaz. A desconstrução desse modelo preconceituoso
passa pela construção de políticas públicas voltadas ao cuidar, como reconhece
a secretária Laís Abrama.
O tema motivou debates em vários países, principalmente na América Latina. Em Bogotá, os colombianos experimentam os Quarteirões do Cuidado. São espaços públicos com lavanderias coletivas, cozinhas solidárias e restaurantes populares que amenizam o esforço despendido no trabalho de cuidar. No próximo ano, o governo federal deverá propor marco normativo que reconheça o direito ao cuidado e os direitos de quem cuida. Uma iniciativa importante na esteira que leva à equidade e à paridade de gênero.
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