terça-feira, 7 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

GLO de Lula é necessária, porém insuficiente

O Globo

Governo federal ao menos reconhece responsabilidade pela crise de segurança. Mas resolvê-la exige mais

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfim se convenceu — ou foi convencido — de que a grave crise de segurança que o país atravessa não permite hesitação. Dias depois de afirmar que, enquanto fosse presidente, não decretaria uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) com presença das Forças Armadas, Lula anunciou um plano de segurança em que uma das principais medidas é justamente a GLO. Melhor assim. Qualquer iniciativa que possa contribuir para combater o crime organizado merece ser considerada, especialmente quando argumentos técnicos se sobrepõem aos político-ideológicos.

A GLO decretada por Lula traz um sinal de maturidade: os militares não subirão morros nem enfrentarão o crime no corpo a corpo, missão que já deu errado no passado. Desta vez, cumprirão seu papel de zelar pelas fronteiras. Atuarão nos portos do Rio, Itaguaí (RJ) e Santos (SP), além dos aeroportos de Guarulhos (SP) e do Galeão (RJ), em conjunto com Polícia Federal (PF) e Receita Federal. Terão prerrogativas de polícia, poderão revistar passageiros e inspecionar aeronaves, embarcações, bagagens e contêineres. Além disso, a Marinha intensificará o patrulhamento nas baías de Guanabara, de Sepetiba e na parte brasileira do Lago de Itaipu. Exército e Aeronáutica ampliarão a vigilância nas fronteiras em conjunto com PF e Polícia Rodoviária Federal (PRF), principalmente no Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Grandes carregamentos de drogas e armas transitam por portos e aeroportos brasileiros e apenas eventualmente são interceptados. Costumam passar livremente pelas fronteiras. Daí a importância de reforçar o patrulhamento. O trabalho integrado entre as diversas forças de segurança é a melhor forma de combater as facções criminosas que controlam as rotas do tráfico.

Tão importante quanto as ações em portos, aeroportos e fronteiras é a ideia de criar uma força-tarefa para asfixiar financeiramente essas organizações. A guerra contra drogas empreendida há décadas pelas polícias estaduais não tem trazido resultados satisfatórios, e os índices de violência se mantêm elevados. A melhor maneira de enfraquecer o crime é cortar sua fonte de recursos. Tal tarefa demanda investigação, tempo e dinheiro. Também depende da integração de bases de dados coordenada por autoridades federais.

Não há dúvida de que o combate ao crime organizado é desafiador. Ontem, no mesmo dia em que a GLO tinha início, moradores da comunidade da Muzema, Zona Oeste do Rio, acordaram com saraivadas de tiros disparados por milicianos e traficantes que disputam de forma sangrenta o controle da região. Essa é a realidade.

Embora necessárias, as medidas anunciadas pelo governo ainda são insuficientes, considerando que grupos criminosos estão espalhados por todo o Brasil. Falta um plano de segurança que contemple o país como um todo, integrando governos federal e estaduais. É verdade que a segurança pública é tarefa constitucional dos estados, mas está claro que eles não têm dado conta de enfrentar facções que usam armas de guerra e atuam internacionalmente. A ajuda federal, dentro dos limites legais, é essencial. Ao apresentar um plano, ainda que modesto, ao menos a União reconhece também ter responsabilidade pela crise no país. Mas que ninguém se iluda. Para enfrentar o poderio das organizações criminosas, será preciso muito mais que isso.

Eventos climáticos extremos exigem atenção das empresas de eletricidade

O Globo

Falta de luz em São Paulo revela despreparo das concessionárias para temporais e vendavais

A chuva no estado de São Paulo na última sexta-feira provocou a morte de sete pessoas e deixou cerca de 1 milhão de instalações sem luz por mais de dois dias. A Região Metropolitana de São Paulo foi a mais afetada pelos cortes. Até ontem pela manhã cerca de 500 mil unidades consumidoras seguiam no escuro. Autoridades e representantes das empresas responsáveis por fornecer energia atribuíam o apagão a ventos de 100km por hora, chuva de granizo e árvores derrubadas. Redes de distribuição ficaram comprometidas, hospitais sem energia e semáforos desligados. Se o episódio não servir para o aprendizado, os moradores de São Paulo e de outras cidades certamente passarão por novos apuros nas próximas tempestades.

Eventos climáticos extremos como chuvas torrenciais ou vendavais têm se tornado mais frequentes devido ao aquecimento global. Como novas intempéries são uma certeza, o poder público precisa adotar medidas preventivas. Árvores doentes ou com raízes fracas devem ser substituídas por outras mais resistentes. A poda de galhos precisa ser mais frequente. Na iminência das chuvas fortes, equipes de emergência precisam estar a postos para recolher árvores caídas em poucas horas. Prefeituras de cidades estrangeiras onde neva forte todos os anos — cidades que nem por isso param de funcionar — podem servir de inspiração às brasileiras no método de preparo para as emergências.

As concessionárias de energia também precisam revisar suas práticas de segurança. Há muitos anos existe o plano de enterrar toda a fiação em São Paulo, mas pouco foi feito. Na maior parte da cidade, as redes de distribuição passam por postes, muitas vezes perigosamente perto das árvores. Acidentes são previsíveis. A Prefeitura paulistana deveria reservar parte de seu orçamento para enterrar os fios. Não será possível fazer tudo de uma vez, mas é fundamental começar.

Outro problema tem sido o tempo de reação diante da emergência. A Enel São Paulo, concessionária que sofreu impacto em 2,1 milhões de instalações, está na 19ª colocação no ranking de continuidade do serviço de distribuição, organizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O tempo médio de atendimento à ocorrência de emergência foi acima de 12 horas entre fevereiro e abril deste ano (últimos dados), ante 8,5 horas pouco mais de um ano antes. A título de comparação, na Energisa Paraíba ou na EDP Espírito Santo, a média está abaixo de 7 horas.

Críticos têm atribuído o desempenho ruim à redução no quadro de pessoal depois da compra da Eletropaulo pela Enel em 2018. Mas o debate não pode ser reduzido ao número de funcionários. A questão central é a falta de um plano de resposta aos eventos climáticos extremos. É um problema de gestão para o qual a empresa não parece preparada. Cabe à autoridade reguladora cobrar dela e de todas as demais concessionárias condições para que não se repita um apagão dessas dimensões.

Velhos desafios climáticos e financeiros aguardam COP28

Valor Econômico

Gap de recursos entre o necessário e disponibilidade atual é enorme

Nas vésperas da COP28, que será realizada de 30 de novembro a 12 de dezembro, em Dubai, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) divulgou sua oitava avaliação do volume de recursos necessários para os países em desenvolvimento se adaptarem à emergência climática. O gap de dinheiro é gigantesco: os países em desenvolvimento precisariam investir US$ 215 bilhões por ano nesta década para enfrentar e evitar as emergências climáticas, de acordo com os compromissos assumidos (NDCs, na sigla em inglês). No entanto, dados mais recentes da ONU registram que os recursos canalizados para esses objetivos diminuíram 15% em 2021, para meros US$ 21 bilhões.

Ou seja, faltam nada menos do que US$ 194 bilhões por ano para se chegar ao patamar mínimo considerado necessário pelo Pnuma, ou até US$ 366 bilhões em projeções mais pessimistas. O valor é inferior à promessa muito mais modesta feita em 2021, na COP26, em Glasgow, quando os países desenvolvidos disseram que iriam contribuir com US$ 40 bilhões por ano até 2025 para essa finalidade.

A necessidade de recursos para enfrentar a adaptação climática é mais do que o dobro dos US$ 100 bilhões por ano que os países desenvolvidos prometeram mobilizar para ajudar os menos desenvolvidos, o que foi lembrado pelo presidente Lula quando foi à COP27, há um ano, no Egito, ainda antes da posse.

Se o volume de dinheiro necessário impressiona, impacto ainda maior causam as vultuosas contas dos desastres registrados pelo mundo, como secas e enchentes, cada vez mais frequentes e violentos em consequência do aquecimento global, e que ressaltam a urgência de providências. Estima-se que os eventos climáticos extremos custaram mais de US$ 220 bilhões em 2022. Só as chuvas causadas por monções especialmente violentas no Paquistão provocaram perdas de US$ 30 bilhões, sem falar em mais de mil mortes.

O Pnuma alerta que a falta de recursos, de bons planos e de implementação de medidas de adaptação obrigará mais países a recorrerem ao novo Fundo de Perdas e Danos, destinado a ser usado quando não é mais possível se adaptar aos efeitos climáticos, aprovado finalmente na COP27. Esse fundo era uma demanda dos países em desenvolvimento desde a Cúpula da Terra do Rio, de 1992. É o caso das ilhas do Pacífico que estão sob o risco de submergirem com o aquecimento global, apesar de praticamente não emitirem poluentes. O Paquistão, com menos de 1% das emissões globais de gases de efeito estufa, ocupa o oitavo lugar entre os países mais ameaçados por eventos climáticos extremos. Como disse o presidente Lula, no Egito, o 1% mais rico da população do planeta emite 70 toneladas de CO2 per capita ao ano, enquanto os 50% mais pobres emitem, em média, apenas uma tonelada per capita.

A criação do Fundo de Perdas e Danos acabou sendo surpreendentemente aprovada na madrugada de 20 de novembro de 2022, atrasando em dois dias o término da Conferência do Egito. O acordo das 198 nações participantes prevê a “criação de novos mecanismos de financiamento para ajudar países em desenvolvimento que são particularmente vulneráveis aos efeitos adversos das mudanças climáticas”.

A expectativa é que o acordo desse fundo seja formalizado agora na COP28. Diante da propensão dos países industrializados de empurrar com a barriga sua criação, o responsável pela COP28 nomeado pelos Emirados Árabes Unidos, Sultan Al Jaber, já mandou recados salientando que gostaria que todos se esforçassem para fechar o acordo.

Um dos principais pontos é definir as fontes de financiamento e quem deverá contribuir. EUA e União Europeia receiam ver mais uma conta cair nos seus colos uma vez que estão entre os maiores emissores históricos de poluentes, e demandam a participação de países como o Brasil, a Índia e a China. Os chineses são atualmente responsáveis por 27% de todas as emissões planetárias, bem mais que os cerca de 12% dos americanos, que estão em segundo lugar, mas, historicamente, são os maiores emissores.

Em reunião preliminar da área técnica ontem, em Abu Dhabi, houve progresso em vários pontos, como a alocação dos fundos no Banco Mundial e a determinação de que os recursos tenham fácil acesso. O ponto mais controvertido é quais países deverão contribuir para o fundo. A solução dada promete suscitar novas discussões ou inviabilizar a proposta, uma vez que todos, países ricos e em desenvolvimento, são “instados a contribuir em bases voluntárias”. O representante dos EUA já disse que o documento não era de consenso (Valor, 6/11).

Chegar a um acordo definitivo para o Fundo de Perdas e Danos não será o único desafio da COP28. Será ainda preciso superar a tendência dos árabes de atenuar as críticas aos combustíveis fósseis. Não ajuda o fato de a COP28 será realizada no país que, com 10 milhões de habitantes, está em sexto lugar no ranking dos maiores emissores per capita de CO2 do mundo; e que será presidida pelo CEO da estatal ADNOC, a 11ª maior produtora de petróleo e gás do mundo.

Apagão climático

Folha de S. Paulo

Caos após tempestade em SP exige ações rápidas e duradouras para fenômenos naturais

A região metropolitana de São Paulo começou a semana com pelo menos 500 mil endereços comerciais e residenciais sem energia elétrica. Em algum momento do fim de semana, cerca de 4,2 milhões de domicílios no estado ficaram sem luz. Os apagões chegaram a durar quase três dias para muitas pessoas.

Na capital, uma tempestade com ventos de mais de 100 km/h desencadeou o caos que se seguiu, levando moradores e comerciantes de muitos bairros a perder toneladas de alimentos refrigerados e, aos milhares, a conexão via internet com o resto do mundo.

As rajadas excepcionais também arrancaram a tampa que encobria duas limitações estruturais da maior metrópole do país: São Paulo revelou-se despreparada para eventos climáticos que podem se tornar cada vez mais radicais e constantes; e convive com um problema bilionário, de difícil solução, que emaranha fios elétricos e de internet a suas árvores.

Desta vez, a tempestade não atingiu somente moradores das periferias, que sofrem há anos com enchentes e a morosidade municipal e estadual para solucionar o problema. Ela castigou milhões de pessoas em bairros ricos e de classe média, com grande repercussão. A reação dos responsáveis, no entanto, leva a crer que São Paulo pode ser obrigada a se acostumar a isso.

A prefeitura paulistana e a Enel, concessionária italiana que atende a capital e 23 municípios da região metropolitana, deram respostas práticas lentas ao ocorrido, e insatisfatórias visando o futuro.

A cidade tem cerca de 750 mil postes e, sob responsabilidade da Enel, 43 mil km de fios. Só 6% são enterrados, e estima-se em R$ 170 bilhões o investimento necessário para completar este trabalho.

O resto da fiação disputa o espaço aéreo com galhos e árvores que carecem de um programa mais robusto da prefeitura para podas e, em alguns casos, cortes radicais.

Falta ainda mais fiscalização municipal contra fiações irregulares, geralmente de internet, que sobrecarregam o cipoal de cabos e equipamentos pendurados nos postes. Só 92 multas foram aplicadas contra esse tipo de infração em 2022, somando menos de R$ 100 mil.

Com as falhas na prevenção e no reestabelecimento da rede, é preciso agora que se cobre do órgão regulador um plano de longo prazo, que reúna concessionária e prefeitura. Essa responsabilidade é da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), que tem delegação da agência federal, a Aneel, para supervisionar 14 concessionárias.

O tempo vai demonstrando que eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes, e que é preciso estar preparado. Fornecer luz e água é o mínimo que se espera.

Perda de ritmo

Folha de S. Paulo

Perspectiva para o emprego reforça necessidade de ajustar contas para baixar juros

O ritmo de geração de vagas e queda na desocupação neste ano indica, até aqui, que a situação do mercado de trabalho não é negativa. O quadro, no entanto, pode ser menos promissor adiante, com a esperada perda de vigor da economia.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, a taxa de desemprego fechou o terceiro trimestre em 7,7%, uma queda relevante frente à observada no mesmo período de 2022 (8,7%).

Enquanto isso, ainda persiste certa retomada dos rendimentos, que crescem 4,2% na comparação com igual período do ano passado. A massa de renda, que multiplica os salários pela população ocupada, do mesmo modo, expandiu-se 5%.

Mas os dados mascaram uma situação menos exuberante. A criação de novos postos de trabalho perdeu ritmo no trimestre, depois de longo período de dinamismo.

A geração de vagas formais ainda é positiva, pouco acima de 200 mil postos mensais em agosto e setembro —o que se traduz em menos de 100 mil quando considerada a sazonalidade. Mas a velocidade em relação a 2022 é bem menor.

Ao mesmo tempo, a taxa de participação na força de trabalho ainda se encontra em nível inferior ao que vigorava antes da pandemia —61,8%, ante 63,8%. Em outras palavras, se o contingente todo de trabalhadores inativos voltasse a procurar emprego, a taxa de desocupação seria próxima a 10%.

Ainda há, em tese, grande subutilização de mão de obra, o que poderia facilitar a continuidade do crescimento não inflacionário da economia. As razões para a baixa participação, por outro lado, podem incluir a expansão de programas de renda básica, que elevam o salário de referência.

De todo modo, a economia parece perder ritmo, algo que em breve deverá atingir o trabalho. Dados preliminares, como a sondagem de serviços, sugerem retração no PIB do terceiro trimestre, passado o impacto da safra recorde.

A arrecadação de impostos mostra estagnação, com a queda real de 0,34% em setembro, ante o mesmo mês de 2022. Trata-se da quarta baixa consecutiva, o que recomenda prudência na gestão dos gastos ainda não vista até aqui.

Tudo isso deveria nortear o governo a reforçar o ajuste fiscal e manter compromisso com a meta de restaurar saldos positivos nas contas. Seria, assim, facilitada a aceleração na queda dos juros, ação mais eficaz para evitar um quadro social e econômico adverso.

A volta do ‘gasto é vida’

O Estado de S. Paulo

Ao mandar ministros gastarem em obras, Lula explicita visão populista contra a responsabilidade fiscal e mina as poucas alternativas que Haddad tem para reduzir rombo das contas

Se ainda havia alguma dúvida sobre a convicção do governo a respeito da necessidade de cumprir a meta fiscal no ano que vem, o presidente da República terminou de desfazê-la na semana passada. Em uma reunião com ministros da área de infraestrutura, Lula da Silva deu um passo além no processo de desgaste a que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem sido submetido desde que sua promessa de cumprir a meta de déficit zero em 2024 foi solenemente desmoralizada pelo timoneiro petista, no dia 27 de outubro.

“Para quem está na Fazenda, dinheiro bom é dinheiro no Tesouro. Mas, para quem está na Presidência, dinheiro bom é dinheiro transformado em obras”, disse Lula. O presidente orientou ainda que os ministros não deixassem “sobrar dinheiro que está previsto para ser investido”.

A frase de Lula não tem nada de acidental. Em tese, os recursos reservados no Orçamento têm mesmo de ser aplicados nas obras a que se destinam. O Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do relatório Fiscobras, já identificou que problemas de fluxo de caixa explicam boa parte dos milhares de obras paradas no País.

Não é, no entanto, a esse problema crônico que o presidente fez referência na semana passada. Lula, na verdade, atacou as poucas ações que o ministro Haddad tem à mão para conter a sangria do gasto público e tentar se aproximar da meta fiscal: os empoçamentos e os contingenciamentos.

Quando um país não arrecada o suficiente para dar conta de seus gastos, é preciso aumentar impostos ou reduzir custos. O impasse em torno dessa questão é que Lula é contra qualquer tipo de corte de despesas, enquanto o Congresso se recusa a aprovar medidas que aumentem as receitas da União.

Nesse contexto, o déficit zero é uma impossibilidade matemática, mas o ministro tem algumas cartas na manga às quais recorrer para melhorar um pouco o resultado primário, como o empoçamento e o contingenciamento.

O empoçamento se dá quando o Orçamento reserva, a uma determinada área, uma quantidade de recursos maior que sua capacidade de gerenciá-la. A “poupança” gerada pelo empoçamento acaba por ser redistribuída no fim do ano ou contribui para um melhor resultado fiscal.

Outro artifício utilizado pelo governo é o contingenciamento de despesas discricionárias. Como não é possível bloquear o pagamento de salários dos servidores e dos benefícios previdenciários, o Executivo corta gastos não obrigatórios, entre os quais investimentos e emendas parlamentares.

O Congresso logo percebeu que o cumprimento da meta dependeria do bloqueio de despesas. Assim, decidiu se antecipar e limitou os contingenciamentos a, no máximo, 25% das despesas discricionárias. Com atraso, Lula agora também se volta contra essas medidas, cobrando dos ministros que encontrem formas de torrar toda verba antes que ela empoce e fique sujeita a ser contingenciada.

O pedido de Lula não é uma defesa da melhoria da execução do gasto público, da realização de investimentos prioritários para a população ou de um esforço para evitar o aumento do estoque de obras paralisadas. É um boicote público às poucas escolhas que Haddad ainda tem para reduzir o déficit público, independentemente das consequências nefastas que essa gastança possa causar na inflação, nos juros e na economia.

O pior é que o presidente nem faz questão de disfarçar sua única e verdadeira preocupação: a eleição de 2026. Ao instar os ministros a serem os “melhores gastadores”, Lula disse que, “se os ministros forem bem, o Brasil vai bem, e eu e o Alckmin (Geraldo Alckmin, vice-presidente) vamos bem, e se vocês não fizerem direito, o Brasil vai mal, e eu e o Alckmin vamos mal”.

Longe de ser uma expressão mal colocada, a frase traduz com exatidão a visão populista de um presidente da República que confunde o desempenho do País com seu sucesso eleitoral. É, nada mais, nada menos, que a versão atualizada da famosa frase da ex-presidente Dilma Rousseff, para quem “gasto é vida”.

Cada vez mais desacreditada, a meta fiscal permanece a mesma, ao menos oficialmente. Desta vez, Haddad deixou a reunião ministerial sem falar com a imprensa. Tampouco teria o que dizer.

A renitência da escravidão moderna

O Estado de S. Paulo

Nunca se resgataram tantos brasileiros em condições análogas à de escravo como neste ano. É ultrajante à dignidade do País ainda haver cidadãos submetidos a essa desumanidade

É ultrajante à dignidade do País ainda haver, em pleno século 21, cidadãos submetidos à desumanidade do trabalho análogo à escravidão. O dado é alarmante: do início do ano até 3 de outubro, 2.592 pessoas – média de quase dez por dia – foram resgatadas de seus cativeiros laborais pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho. O número, recorde para o período nos últimos dez anos, foi publicado pelo jornal Valor há alguns dias.

À medida que o Brasil prospera social e economicamente em algumas frentes, malgrado persistir uma brutal desigualdade que leva muitos brasileiros a serem tratados, na prática, como cidadãos de segunda classe, outras porções do País insistem em se manter aferradas ao atraso, como se o transcurso do tempo e os avanços civilizatórios que beneficiaram muitos brasileiros simplesmente não existissem para alguns de seus concidadãos.

Quase três décadas se passaram desde a criação do GEFM e de outros mecanismos de fiscalização das condições de trabalho no Brasil. Sem dúvida, houve muitos e importantes avanços nesse período. Contudo, a despeito dos esforços para dar fim à infâmia, o trabalho em condições análogas à de escravo é uma realidade impossível de ser ignorada no País. Persiste como um tumor que teima em se espalhar pelo tecido social. Combater esse flagelo, que há muito deveria ter sido erradicado, exigirá do governo e da sociedade um exame crítico e corajoso para reconhecer suas causas e apontar soluções definitivas.

Este jornal jamais deixaria de contribuir para esse esforço coletivo, pois, afinal, a luta pelo fim da escravidão no Brasil é uma de suas causas fundantes, assim como a instauração do regime republicano e a defesa inarredável das leis e da liberdade em suas múltiplas dimensões.

Por mais desenvolvido que seja o aparato estatal para o combate ao trabalho análogo à escravidão, ele pouco servirá para erradicar o problema enquanto persistirem no País as condições para que muitas pessoas socialmente vulneráveis sejam vítimas em potencial das armadilhas dos exploradores de mão de obra. Só haverá menos gente submetida a essa forma de escravidão moderna quando o governo se dedicar com afinco ao provimento dos meios para que cada indivíduo seja capaz de se desenvolver e prosperar.

Concretamente, está-se falando da oferta de educação pública de qualidade, sobretudo educação básica, para todos os cidadãos. Está-se falando de acesso à saúde e ao saneamento básico. Ademais, é papel do governo estimular a criação de um ambiente econômico que incentive a geração de empregos de qualidade, os únicos capazes de propiciar uma renda mínima para que os cidadãos tenham o direito de viver uma vida digna. A precariedade é terreno fértil para a exploração. E, enquanto houver indivíduos com acesso limitado a esses recursos essenciais, a vulnerabilidade de muitos deles ao trabalho análogo à escravidão persistirá.

Essa indecência já não cabia no Brasil de outrora e, definitivamente, não cabe no Brasil de 2023. No entanto, ainda são frequentes os relatos de condições desumanas de trabalho, de jornadas exaustivas e de falta de remuneração justa, além de violações dos direitos humanos mais básicos. Os resultados obtidos pelo GEFM nesses quase 30 anos de atuação falam por si sós, aí estão para demonstrar que parcela significativa da população ainda sofre sob o jugo da exploração laboral por absoluta escassez de alternativas não hostis.

É fundamental ressaltar que o avanço da fiscalização e do combate a esse tipo de crime é um passo essencial para o progresso civilizatório do País. Entretanto, esse avanço, sozinho, não é suficiente. A luta contra o trabalho análogo à escravidão deve ser acompanhada por esforços substanciais em outras áreas.

Já passou da hora de acabar com o flagelo da escravidão moderna, longe de estar circunscrito aos rincões mais remotos do País. O desenvolvimento humano no Brasil não será completo enquanto essa chaga estiver aberta.

Temporal de omissões

O Estado de S. Paulo

O caos provocado pelo apagão em 4,2 milhões de imóveis em São Paulo não pode mais se repetir

Foi preciso o caos pairar sobre São Paulo e municípios da região metropolitana para as autoridades públicas e concessionárias de serviços públicos acordarem para os efeitos da mudança do clima sobre a população que deveriam bem atender. O temporal do último dia 3 provocou 7 mortes no Estado e deixou 4,2 milhões de imóveis sem energia elétrica, boa parte por mais de 50 horas. No primeiro dia útil desta semana, 500 mil residências e prédios comerciais ainda permaneciam no escuro. Os ventos de 100 km/h e as chuvas de sexta-feira certamente surpreenderam a população atingida. Mas não poderiam jamais ter pegado o poder público e as prestadoras de serviços de calças curtas.

A situação caótica nos últimos dias em São Paulo denuncia a ausência de planejamento e de mecanismos de prevenção e de adaptação da infraestrutura de energia aos efeitos de eventos climáticos que, como bem se sabe há pelo menos duas décadas, tendem a se tornar cada vez mais frequentes e agressivos. Pode soar surreal o fato de a queda de centenas de árvores – sempre bem-vindas em uma capital de concreto e asfalto – ter provocado um apagão de proporção jamais experimentada na capital paulista e nas cidades vizinhas. Porém, diante da omissão escancarada das prefeituras e das concessionárias de energia, é factível dizer que o cenário de caos urbano estava pronto, à espera de uma tempestade.

A dimensão do sofrimento imposto por essa negligência à população é inimaginável. Não se trata apenas de casas iluminadas por velas e de lojas, geladeiras desligadas e prestadores de serviços com as portas arriadas durante dias. A falta de energia impôs riscos adicionais ao trânsito, inviabilizou o uso de aparelhos médicos em residências, impediu o teletrabalho e afetou a comunicação. Três dias depois do temporal, parte das creches e escolas municipais não abriu as portas, e 125 árvores caídas atrapalhavam a retomada do fornecimento de energia.

A falta de preparo e rapidez na resposta acentuou o drama de milhões de moradores da região mais densamente povoada do País. Deixou estampada a falta de coordenação entre as prefeituras da Grande São Paulo e as concessionárias de energia para restaurar a normalidade. Expôs igualmente a urgência de melhor preparo da Defesa Civil, do Corpo de Bombeiros e da Polícia Militar para o enfrentamento de desastres climáticos.

Embora um plano de mitigação e adaptação a mudanças climáticas, o PanClima SP, adormeça nas gavetas da administração paulistana desde 2021, apenas ontem o prefeito Ricardo Nunes tomou a iniciativa de se reunir com representantes das concessionárias de energia para esboçar ações preventivas. Para ser otimista, melhor tarde do que nunca. Se soluções há muito adotadas, como o enterramento de fiações elétricas, continuam vetadas por seus custos, há de se buscar alternativas. Sobretudo, há de se alertar a população sobre fenômenos climáticos extremos a caminho e preparar-se para protegê-la. O caos vivido em São Paulo não pode se repetir. Que seja o último.

O cuidar precisa ser valorizado

Correio Braziliense

mulher é submetida a um esforço bem superior ao do homem, que, em média, dispensa 11,7 horas semanais para a casa, enquanto ela dedica 21,3 horas às tarefas domésticas e aos cuidados de familiares

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023 — Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil — impôs uma reflexão sobre uma realidade que afeta fortemente o universo feminino, mas que, ao longo do tempo, foi naturalizada. A tripla jornada ficou na lista do fato consumado, com todos os danos que representa à saúde física, mental e emocional das mulheres. Ela cuida da casa, dos filhos, do marido e vai para o trabalho, onde exerce sua profissão, garante a própria renda, autonomia financeira e colabora com orçamento doméstico.

A mulher é submetida a um esforço bem superior ao do homem, que, em média, dispensa 11,7 horas semanais para a casa, enquanto ela dedica 21,3 horas às tarefas domésticas e aos cuidados de familiares, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa jornada diária é bem mais exaustiva, considerando o recorte raça/cor. O estudo mostra que as pretas têm mais tarefas (97,7%), superando as pardas (91,9%) e as brancas (90,5%).

Colocar o problema como tema da redação do Enem foi festejado pela secretária Nacional de Cuidados e Família, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), a socióloga Laís Abramo. “É uma realidade para a qual não se presta muita atenção, há uma naturalização de que a tarefa de cuidar das pessoas é algo que compete às mulheres, algo que se entende como uma natureza feminina”, declarou, em entrevista à Agência Brasil.

O equivocado entendimento é, em boa medida, mais um efeito colateral do machismo e forma de retirar dos homens responsabilidades que devem ser compartilhadas. Cuidar dos filhos, dos idosos enfermos, manter limpa a moradia em que todos vivem, entre outras tarefas domésticas, são atividades coletivas — ou pelo menos deveriam ser, uma vez que todos convivem e usufruem do mesmo espaço.

Essa mesma compreensão extrapola o ambiente doméstico e chega aos espaços de trabalho, onde a remuneração das mulheres é sempre inferior à dos homens, mesmo que ambos tenham a mesma formação profissional. Ainda que ela tenha capacitação e experiência superiores à do homem, quase sempre, não é merecedora de uma remuneração maior. Uma das motivações está associada ao próprio cuidar, que poderia comprometer o seu desempenho profissional. Além disso, as profissões associadas ao “cuidar” são as que mais atraem mulheres. Assistência social, psicologia, enfermagem, pedagogia, advocacia, fisioterapia estão entre as favoritas.

O cuidar doméstico, quando não compartilhado, é prejudicial à mulher, que não é remunerada pela sua dedicação. Ela perde a oportunidade de conquistar outros espaços, desenvolver sua capacidade cognitiva e usufruir de uma carreira rentável, o que a torna dependente do companheiro, ou de outro familiar, para suprir suas necessidades pessoais. Isso fortalece o estereótipo de que ela é incapaz. A desconstrução desse modelo preconceituoso passa pela construção de políticas públicas voltadas ao cuidar, como reconhece a secretária Laís Abrama.

O tema motivou debates em vários países, principalmente na América Latina. Em Bogotá, os colombianos experimentam os Quarteirões do Cuidado. São espaços públicos com lavanderias coletivas, cozinhas solidárias e restaurantes populares que amenizam o esforço despendido no trabalho de cuidar. No próximo ano, o governo federal deverá propor marco normativo que reconheça o direito ao cuidado e os direitos de quem cuida. Uma iniciativa importante na esteira que leva à equidade e à paridade de gênero.

 

 

 

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