O Globo
Já está na praça “Milicianos”, o
livro-reportagem de Rafael Soares, repórter especial do GLOBO. Vai à categoria
do “tem de ler”, prateleira Malu Gaspar, ademais editado em altíssimo nível.
Demonstração vigorosa-corajosa-rigorosa das possibilidades do jornalismo quando
investido de fôlego. Lembrança também de quanto é decisivo valorizar e proteger
o arriscado jornalismo dedicado às cidades — ao local. (Lembrança inútil, para
a festa no palácio.)
E então me recordo de “Os porões da contravenção”, de Chico Otavio e Aloy Jupiara, volume cuja leitura combinada à da obra de Soares explica — fundamenta — por que não haverá mais meios estaduais, com polícias Militar e Civil, para sequer enxugar o gelo da segurança pública no Rio de Janeiro. (Está no ar, no Globoplay, a série “Vale o escrito”; sobre a guerra contínua — guerra miliciana — entre bicheiros no estado. Capitão Guimarães, o que decerto tomou Niterói com versos, citando Shakespeare.)
Já era, o Rio tocado por claudios-castros e
sob o signo de um sergio-cabral permanente. Agora — faz tempo — é narcomilícia,
o efeito Ecko; o problema posto, imposto, como questão nacional, de fronteira,
matéria suprapartidária, para 30 anos de gestão contínua de inteligência. A
outra questão sendo se temos estadistas à altura do desafio. Não temos,
dino-propaganda à parte.
“Milicianos” é aula de Rio de Janeiro, de
como se decompõem — dissolvida a Liga da Justiça, fluente o intercâmbio entre
práticas milicianas e traficantes, esmagados os comandos vermelhos — os limites
entre zonas Oeste e Norte quando o assunto é progresso do corpo miliciano. Aula
de Brasil — já que o armamento infinito não é produzido dentro das divisas
fluminenses. Sem exagero: a obra jornalística deste 2023, desde já peça de
referência a quem queira estudar “como agentes formados para combater o crime passaram
a matar a serviço dele”.
Como? As respostas estão todas nas 317
páginas. Tudo a começar sob lógica patrimonialista derivada da compreensão de
que batalhões e delegacias, cuidando de áreas disputadas por grupos traficantes
e milicianos, seriam também plataformas oportunistas — estratégicas — para
exercício pervertido de poder.
É o caso da Patamo 500, entre 1997 e 2003;
que, a partir do 9º Batalhão de Polícia Militar (Rocha Miranda, Zona Norte),
ofereceu patrulha — carta branca — a que Ronnie Lessa pudesse desenvolver
Ronnie Lessa. Sob o comando de Cláudio Luiz Silva de Oliveira. Não reconheceu?
O caveira preso por ordenar a execução, em 2011, da juíza Patrícia Acioli.
Evoluções.
O subtítulo é preciso: “Como agentes formados
para combater o crime passaram a matar a serviço dele”. E o produto entrega o
que apregoa. Prova que o Estado do Rio de Janeiro, para muito além da histórica
corrupção nos poderes eleitos, prepara e entrega, com baixíssima resistência,
mão de obra especializada — de armeiros meticulosos a assassinos profissionais
— a toda modalidade de organização criminosa, inclusive internacional.
Faz toda a diferença — algo já desenvolvido
no podcast “Pistoleiros” — o autor haver se dedicado ao percurso dos
indivíduos. É o pulo do gato. Em vez de mais um estudo panorâmico sobre a
constituição das milícias, uma investigação original pormenorizada acerca de
personagens cujas dinâmicas, para além de encarnar a evolução das organizações
criminosas, evidenciam padrões.
O matador de aluguel Adriano da Nóbrega,
criador do Escritório do Crime, nunca foi caso isolado. Trajetórias como a
dele, ex-policial raramente incomodado, exigiam o trabalho de formiguinha,
perfeccionista, que Soares empreendeu. Um olhar sobre a multiplicação de
policiais, a multiplicação de batorés, que foram promovidos, condecorados e
bonificados — pelo Estado — enquanto, sob o Estado, faziam segurança de
criminosos, traficavam armas e matavam a mando.
Outro padrão. Agentes de segurança estatais
que, de colaboradores de traficantes, bicheiros e grupos paramilitares, avançam
para se tornar sócios das organizações criminosas — e finalmente chefes
milicianos, donos de territórios eles mesmos, não raro assassinos daqueles que
os haviam arregimentando em busca de proteção. Capitão Adriano de novo.
Corrompido para proteger o filho de bicheirão, afinal senhor do grupo de
extermínio que mataria o antigo patrão.
Padrões desafiadores à ideia de República.
Nenhum maior que o da demora, para não escrever negação, do Estado em punir os
seus — até que não sejam mais seus. Até que matem uma juíza, uma vereadora.
Fica ruim para Ministério Público e Judiciário também. Ronnie Lessa, acusado de
ser o assassino de Marielle Franco, tendo contra si denúncias que iam de
torturas a homicídios, passou anos e anos sem ser investigado a valer. Até se
tornar sócio de Rogério de Andrade. Evoluções.
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