domingo, 9 de junho de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - O desafio parlamentar e a civilização política brasileira

Passadas quase duas semanas da mais recente medição de forças entre o Poder Executivo e a maioria do Congresso, é possível pedir passagem para uma interpretação do episódio dentro de uma moldura mais ampla que a simples e imediata computação dos votos verificados na sessão do dia 28 de maio nas respectivas gavetas de derrota ou vitória do governo. É bom deixar decantar o impacto momentâneo, sem, por outro lado, subestimar a importância política de algumas decisões então tomadas.

As votações que sustentaram as decisões não encerram veredictos ou vaticínios plebiscitários sobre quem rirá por último ao vencer uma suposta contenda "entre poderes". Também não esclarecem qual dos poderes teria razão na dita contenda que, no mais das vezes, é um embate político entre governo e oposição e não um conflito institucional transcendente à política "normal".

Mas os desfechos das votações não devem ser minimizados, jogados para baixo do tapete e entregues ao esquecimento, pois sugerem certa direção que as relações entre Executivo e Legislativo vêm seguindo. Essa direção é significativa, ainda que nada tenha de definitiva, mesmo que a análise mire um horizonte relativamente curto como, por exemplo, o das próximas eleições das mesas diretoras do Congresso e, no Executivo, o da possível reformulação do ministério, após as eleições municipais deste ano.

Naquela última semana de maio, a derrubada do veto parcial do presidente Lula à legislação proibitiva das chamadas "saidinhas" de presos e a aceitação tardia do veto, também parcial, do ex-presidente Bolsonaro, à legislação que criminaliza fake news foram as decisões indicativas de derrotas mais significativas do governo. Sendo decisões sobre temas política-e/ou socialmente abrangentes e muito relevantes (a primeira para a demarcação de direitos individuais, a segunda para a lisura da competição democrática), justificam-se ambas as repercussões.

Porém, não se pode deixar de ponderar que nenhuma das duas decisões (nem cada uma das demais, naquela sessão do Congresso) traz implicações objetivas automáticas e perenes para as relações entre Executivo e Legislativo. Logo, é preciso cautela e parcimônia antes de concluir que essas votações são preditivas de outras que possam ocorrer no âmbito das referidas relações entre os poderes. Aí não há qualquer condicionamento estrutural. Nada impede que a conduta política dos atores altere, em alguma medida, o rumo de votações futuras. Claro que a medida possível da mudança não sugere uma inversão de termos, ou um cavalo de pau. Como é comum em democracias, é de se esperar que ela, a mudança, se houver, precise ser gradativa, sinuosa e até nem ouse dizer seu nome. Mas a razão prática da política tem lá seus caprichos e poderes. Felizmente, não consta que tenham sido revogados, em nosso país.

As linhas de força que dificilmente sofrerão abalo abrupto e, menos ainda, profundo, são - como dito em O Estado de São Paulo, no dia seguinte àquelas votações: “Deputados e senadores indicaram ao governo que há conversa e voto favorável quando se trata de sentar à mesa para tratar de dinheiro público. Já quando se esbarra em temas impregnados de ideologia partidária, a coisa pode ser diferente”;  ou - como  registrado, no mesmo dia, na Folha de São Paulo: "O centrão se uniu à oposição para atropelar orientações do Planalto em temas que esbarram na agenda moral e em visões populistas das políticas públicas, palanques explorados com gosto pelo bolsonarismo”.  Uma segunda observação importante, também feita na Folha, é que, na mesma sessão das derrotas do governo "após acordo entre Executivo e Legislativo para estabelecimento de um calendário próprio para o pagamento de emendas parlamentares, o Congresso manteve o veto de Lula à Lei de Diretrizes Orçamentárias".

Esses comentários presentes na imprensa são pertinentes e merecem toda a atenção, porque ajudam a ver que não houve (naquele e em outros momentos) anulação de um poder, resultando em reinado soberano para um e em terra arrasada para outro. É preciso detectar os limites além dos quais uma derrota do Executivo torna-se inevitável e as possibilidades que o governo tem de, reconhecendo e respeitando inclinações mais permanentes da maioria legislativa, evitar garrotes. Evitou, aliás, como já referido, o reestabelecimento de um cronograma de pagamentos para emendas de parlamentares.

Esse é e deverá ser o jogo até 2026. E continuará sendo depois (não importa quem vença as eleições presidenciais), se a direita vencer de novo as eleições para o Congresso. Se isso ocorrer, será de direita a inclinação da legislatura seguinte. Mudanças poderão vir se seus adversários avançarem em obter apoio do eleitorado nas eleições legislativas. E o esperado é que, vindo, sejam mudanças incrementais, salvo se um inesperado tufão operasse uma transformação repentina nas crenças, valores e/ou interesses dos eleitores. Como é improvável e trocar de povo não é possível – nem desejável por quem tem uma visão democrática da política - é preciso caminhar de acordo com o passo da procissão que segura o andor.

Sabemos que as coisas não se resolvem apenas com afirmações gerais, como as que foram feitas acima. Há aspectos particulares que envolvem algumas instituições e atores políticos, colocando questões práticas que condicionam e orientam suas ações.  Um desses aspectos, de grande importância, é a relação entre ministros do governo e as bancadas dos seus partidos.

A dinâmica dessa relação, funcionando com maior ou menor sintonia e unidade, não depende tanto do partido ser da direita conservadora mais tradicional, do centrão, do centro democrático ou de alguma esquerda, as quatro zonas em que se situa a chamada base governista, no espectro político. Depende mais do partido (núcleo dirigente, líder ou chefe) e/ou de quem o representa no ministério ter influência, ou não, sobre ao menos dois tipos de decisões governamentais:  as que afetam políticas públicas de interesse dos parlamentares e suas bases e as que orientam a liberação de recursos de emendas. Em outras palavras, ministros, dirigentes partidários e lideranças parlamentares que têm poder junto ao governo têm, por consequência, mais influência sobre suas bancadas. Compreender isso é fundamental para não diagnosticar o fato de haver alinhamento ou rebeldia de parlamentares cujos partidos integram a base do governo, ou que lhe façam oposição, só em termos de juízos morais ou de regras e princípios normativos fixos sobre disciplina partidária.

Tal como se dão as relações entre parlamentar, partido e governo no contexto brasileiro, se o partido governista, ou seu ministro, de fato tiver prestígio junto a quem está no topo (mais que ninguém, o presidente da República), tornará mais eficaz a ação de suas lideranças no Legislativo e, consequentemente, orientará melhor sua bancada no sentido da unidade da base governista. Do mesmo modo, se líderes partidários da oposição entram em negociação com o presidente a ponto de serem ou indicarem ministros, o governo pescar votos no Legislativo entre as bancadas de partidos que, a princípio, lhe seriam hostis é mais provável do que se tal negociação não ocorresse. O preço, no caso de haver, é a maior miscigenação das políticas que delineiam o perfil político e mesmo ideológico do governo. Isso não é, em si, bom ou mau, mas a distinção precisa ser compreendida sem causar espanto.

Sem dúvida, um problema é não haver, hoje, na relação entre o governo e o parlamento brasileiro, recentemente empoderado, um centro de gravidade fixo, como bem apontou o cientista político Sergio Abranches em recente entrevista ('O presidencialismo de coalizão chegou ao pior dos mundos" - G1, 31.05.24). Esse é um problema distinto do de não haver centro como posição política ou ideológica relevante, problema que só se resolve através das urnas. Já a ausência de um centro-eixo como força institucional de atração e moderação, pode inspirar mudanças de regras do sistema político para cria-lo, como sugere o próprio Abranches. Mas é discutível até que ponto essa mudança é condição necessária, imperativa, ou bastante, para evitar o efeito centrífugo. Trata-se, também, de uma questão de escolha política estratégica, por parte de atores relevantes, como o Presidente, as cúpulas das casas legislativas e os principais partidos políticos. Em suma, o cenário revela, também, um problema de liderança.

O centro de gravidade falta, primeiro, porque, no caso do Congresso, o alinhamento principal das bancadas é fisiológico (internamente também e não só na relação com o Executivo), em vez de se orientar primordialmente por pautas políticas. Não à toa crescem, na opinião pública, sentimentos de mal estar e aversão, amparados em farta evidência de que a chamada pequena política - inevitável e mesmo indispensável à operacionalidade de parlamentos, em democracias - rebaixou-se a ponto de ameaçar aproximar-se de sua nêmesis, tal como ocorreu durante o ápice da Operação Lava-Jato.

A imprudente indiferença de muitos senadores e deputados para com a necessidade de controle das finanças públicas - uma convicção muitas vezes afirmada como diretriz macropolítica pelo próprio Legislativo - gera uma contradição flagrante entre discurso e prática. Parece que boa parte da chamada classe política, entregue ao escrutínio ultra-individualista dos interesses de cada agente, imagina escapar da rejeição eleitoral através de uma microfísica governada pelo manejo paroquial de emendas parlamentares, ao qual se soma a associação pragmática do parlamentar a alguma liderança plebiscitária. A resultante só pode ser a centrifugação política.

Tudo isso se explica na microfísica dos interesses. O que resta entender melhor é como a centrifugação interessaria a núcleos duros da elite política. É um paradoxo desconcertante. Terão sido esses núcleos duros convertidos em líquido, ou aterrados, ou fagocitados, pela polarização extrema? Para adotar essa distopia como norte da reflexão sobre a política brasileira é indispensável ver o atestado de óbito da elite política. Mas ele é negado a cada dois anos, pela sua reprodução sustentável, graças à manutenção histórica de um alto índice de participação eleitoral e à consistente institucionalização de eleições e partidos. Há mais mistérios envolvidos, a pedir pesquisa, do que a imaginação normativa pode supor sobre o que deveriam ser uma elite política "séria e decente" e um "verdadeiro" parlamento.

O centro de gravidade falta também por causa do Poder Executivo, porque ele não se organiza como coalizão política, que foi uma clara indicação do resultado do segundo turno das eleições presidenciais. Foi montado e funciona como um governo de Lula e seu partido, com alianças ad hoc com algumas cúpulas de partidos e com várias personalidades individuais. Esse é um tema recorrente nesta coluna e não é possível, neste artigo, tratá-lo detidamente, mais uma vez. Cabe reafirmar apenas a interpretação de que o presidente parece não ter se conformado até hoje com o fato de não ter vencido as eleições no primeiro turno. Embora a área econômica adote uma racionalidade positiva de coalizão, o conjunto da ópera ecoa uma ficção, como se os apoios que Lula recebeu no segundo turno fossem moralmente compulsórios e seu governo fosse - e esta afirmação está virando jargão da esquerda que declara o governo como objeto em disputa - a "última fronteira da civilização".  Não é, nem poderia ser.

O que essa auto-imputação solene quer mesmo dizer? Que nossa sustentabilidade, como sociedade civilizada, depende do atual governo (ou do governante) ser poupado de conviver com uma oposição legítima?  De que tipo de civilização se fala, afinal?

Um governo, qualquer que seja, não pode ter esse papel, numa sociedade democrática. Esse papel é das instituições em seu conjunto. O poder executivo de governar, embora seja relevantíssimo, é apenas uma dessas instituições. É ao Judiciário, aliás, que a nossa Constituição - expressão política do nosso marco civilizatório - destina a missão de derradeiro guardião. Além dos poderes institucionais do Estado, no plano da sociedade a ciência, como inteligência e a cultura - tanto a letrada quanto a popular - são marcos civilizatórios mais efetivos do que qualquer governo. Ora, se não há hoje alternativa eleitoral competitiva para presidente, além de Lula e Bolsonaro, isso não significa que se deva converter essa constatação conjuntural em justificativa para afirmação tão dramática, grandiloquente e pretensiosa.

No fundo, despida dessas vestes retóricas, aparece uma posição política - que é legítima, como vontade de uma maioria plural, para ocupar o Executivo e é minoritária no Legislativo, com quem, também legitimamente, o governo precisa ser compartilhado. Maioria que, ao não se organizar efetivamente como coalizão, suscita um efeito centrífugo análogo ao da pequena política do Legislativo.

Se políticas de varejo dão-se nos dois poderes e em ambos têm predominado, em ambos também subsistem estratégias e posições políticas gerais.  No Congresso - e não só no governo - há preferências de atacado que convivem e negociam com o varejo. São exemplos delas a orientação pró mercado e as pautas conservadoras em costumes. Nenhum governo, de Lula ou de qualquer outro, evita derrotas quando desafia esses dois pilares de atacado. Para mudar esses pilares só há um caminho: as urnas nas eleições legislativas. Nenhum salvador da pátria no Planalto resolverá isso. Em eleições proporcionais, o populismo de esquerda é impotente, embora insistente. O de direita opera mais facilmente a correlação entre atacado e varejo, transitando do extremismo ao pragmatismo. Para enfrentar isso, não é pragmatismo que falta, porque ele há de sobra, na esquerda, no centro e na centro-direita. O que falta é uma política democrática que não crie um abismo entre esse pragmatismo necessário e a retórica política e ideológica. Nesse desencontro mora a demagogia, com ela o descrédito e, daí, o perigo.

*Cientista político e professor da UFBa

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