As votações que sustentaram as decisões não
encerram veredictos ou vaticínios plebiscitários sobre quem rirá por último ao
vencer uma suposta contenda "entre poderes". Também não esclarecem
qual dos poderes teria razão na dita contenda que, no mais das vezes, é um
embate político entre governo e oposição e não um conflito institucional
transcendente à política "normal".
Mas os desfechos das votações não devem ser minimizados, jogados para baixo do tapete e entregues ao esquecimento, pois sugerem certa direção que as relações entre Executivo e Legislativo vêm seguindo. Essa direção é significativa, ainda que nada tenha de definitiva, mesmo que a análise mire um horizonte relativamente curto como, por exemplo, o das próximas eleições das mesas diretoras do Congresso e, no Executivo, o da possível reformulação do ministério, após as eleições municipais deste ano.
Naquela última semana de maio, a derrubada
do veto parcial do presidente Lula à legislação proibitiva das chamadas
"saidinhas" de presos e a aceitação tardia do veto, também parcial,
do ex-presidente Bolsonaro, à legislação que criminaliza fake news foram
as decisões indicativas de derrotas mais significativas do governo. Sendo
decisões sobre temas política-e/ou socialmente abrangentes e muito relevantes (a
primeira para a demarcação de direitos individuais, a segunda para a lisura da
competição democrática), justificam-se ambas as repercussões.
Porém, não se pode deixar de ponderar que
nenhuma das duas decisões (nem cada uma das demais, naquela sessão do
Congresso) traz implicações objetivas automáticas e perenes para as relações
entre Executivo e Legislativo. Logo, é preciso cautela e parcimônia antes de concluir
que essas votações são preditivas de outras que possam ocorrer no âmbito das
referidas relações entre os poderes. Aí não há qualquer condicionamento
estrutural. Nada impede que a conduta política dos atores altere, em alguma
medida, o rumo de votações futuras. Claro que a medida possível da mudança não
sugere uma inversão de termos, ou um cavalo de pau. Como é comum em
democracias, é de se esperar que ela, a mudança, se houver, precise ser
gradativa, sinuosa e até nem ouse dizer seu nome. Mas a razão prática da
política tem lá seus caprichos e poderes. Felizmente, não consta que tenham
sido revogados, em nosso país.
As linhas de força que dificilmente
sofrerão abalo abrupto e, menos ainda, profundo, são - como dito em O Estado
de São Paulo, no dia seguinte àquelas votações: “Deputados e senadores
indicaram ao governo que há conversa e voto favorável quando se trata de sentar
à mesa para tratar de dinheiro público. Já quando se esbarra em temas
impregnados de ideologia partidária, a coisa pode ser diferente”; ou - como registrado, no mesmo dia, na Folha de São
Paulo: "O centrão se uniu à oposição para atropelar orientações do
Planalto em temas que esbarram na agenda moral e em visões populistas das
políticas públicas, palanques explorados com gosto pelo bolsonarismo”. Uma segunda observação importante, também
feita na Folha, é que, na mesma sessão das derrotas do governo "após
acordo entre Executivo e Legislativo para estabelecimento de um calendário
próprio para o pagamento de emendas parlamentares, o Congresso manteve o veto
de Lula à Lei de Diretrizes Orçamentárias".
Esses comentários presentes na imprensa são
pertinentes e merecem toda a atenção, porque ajudam a ver que não houve
(naquele e em outros momentos) anulação de um poder, resultando em reinado
soberano para um e em terra arrasada para outro. É preciso detectar os limites
além dos quais uma derrota do Executivo torna-se inevitável e as possibilidades
que o governo tem de, reconhecendo e respeitando inclinações mais permanentes
da maioria legislativa, evitar garrotes. Evitou, aliás, como já referido, o
reestabelecimento de um cronograma de pagamentos para emendas de parlamentares.
Esse é e deverá ser o jogo até 2026. E
continuará sendo depois (não importa quem vença as eleições presidenciais), se
a direita vencer de novo as eleições para o Congresso. Se isso ocorrer, será de
direita a inclinação da legislatura seguinte. Mudanças poderão vir se seus
adversários avançarem em obter apoio do eleitorado nas eleições legislativas. E
o esperado é que, vindo, sejam mudanças incrementais, salvo se um inesperado
tufão operasse uma transformação repentina nas crenças, valores e/ou interesses
dos eleitores. Como é improvável e trocar de povo não é possível – nem desejável
por quem tem uma visão democrática da política - é preciso caminhar de acordo
com o passo da procissão que segura o andor.
Sabemos que as coisas não se resolvem
apenas com afirmações gerais, como as que foram feitas acima. Há aspectos
particulares que envolvem algumas instituições e atores políticos, colocando
questões práticas que condicionam e orientam suas ações. Um desses aspectos, de grande importância, é
a relação entre ministros do governo e as bancadas dos seus partidos.
A dinâmica dessa relação, funcionando com
maior ou menor sintonia e unidade, não depende tanto do partido ser da direita
conservadora mais tradicional, do centrão, do centro democrático ou de alguma
esquerda, as quatro zonas em que se situa a chamada base governista, no
espectro político. Depende mais do partido (núcleo dirigente, líder ou chefe)
e/ou de quem o representa no ministério ter influência, ou não, sobre ao menos dois
tipos de decisões governamentais: as que
afetam políticas públicas de interesse dos parlamentares e suas bases e as que
orientam a liberação de recursos de emendas. Em outras palavras, ministros,
dirigentes partidários e lideranças parlamentares que têm poder junto ao
governo têm, por consequência, mais influência sobre suas bancadas. Compreender
isso é fundamental para não diagnosticar o fato de haver alinhamento ou
rebeldia de parlamentares cujos partidos integram a base do governo, ou que lhe
façam oposição, só em termos de juízos morais ou de regras e princípios
normativos fixos sobre disciplina partidária.
Tal como se dão as relações entre
parlamentar, partido e governo no contexto brasileiro, se o partido governista,
ou seu ministro, de fato tiver prestígio junto a quem está no topo (mais que
ninguém, o presidente da República), tornará mais eficaz a ação de suas
lideranças no Legislativo e, consequentemente, orientará melhor sua bancada no
sentido da unidade da base governista. Do mesmo modo, se líderes partidários da
oposição entram em negociação com o presidente a ponto de serem ou indicarem
ministros, o governo pescar votos no Legislativo entre as bancadas de partidos
que, a princípio, lhe seriam hostis é mais provável do que se tal negociação
não ocorresse. O preço, no caso de haver, é a maior miscigenação das políticas que
delineiam o perfil político e mesmo ideológico do governo. Isso não é, em si,
bom ou mau, mas a distinção precisa ser compreendida sem causar espanto.
Sem dúvida, um problema é não haver, hoje,
na relação entre o governo e o parlamento brasileiro, recentemente empoderado,
um centro de gravidade fixo, como bem apontou o cientista político Sergio
Abranches em recente entrevista ('O presidencialismo de coalizão chegou ao pior
dos mundos" - G1, 31.05.24). Esse é um problema distinto do de não haver
centro como posição política ou ideológica relevante, problema que só se
resolve através das urnas. Já a ausência de um centro-eixo como força
institucional de atração e moderação, pode inspirar mudanças de regras do
sistema político para cria-lo, como sugere o próprio Abranches. Mas é
discutível até que ponto essa mudança é condição necessária, imperativa, ou
bastante, para evitar o efeito centrífugo. Trata-se, também, de uma questão de
escolha política estratégica, por parte de atores relevantes, como o
Presidente, as cúpulas das casas legislativas e os principais partidos
políticos. Em suma, o cenário revela, também, um problema de liderança.
O centro de gravidade falta, primeiro,
porque, no caso do Congresso, o alinhamento principal das bancadas é
fisiológico (internamente também e não só na relação com o Executivo), em vez
de se orientar primordialmente por pautas políticas. Não à toa crescem, na
opinião pública, sentimentos de mal estar e aversão, amparados em farta
evidência de que a chamada pequena política - inevitável e mesmo indispensável
à operacionalidade de parlamentos, em democracias - rebaixou-se a ponto de
ameaçar aproximar-se de sua nêmesis, tal como ocorreu durante o ápice da Operação
Lava-Jato.
A imprudente indiferença de muitos senadores
e deputados para com a necessidade de controle das finanças públicas - uma
convicção muitas vezes afirmada como diretriz macropolítica pelo próprio
Legislativo - gera uma contradição flagrante entre discurso e prática. Parece
que boa parte da chamada classe política, entregue ao escrutínio ultra-individualista
dos interesses de cada agente, imagina escapar da rejeição eleitoral através de
uma microfísica governada pelo manejo paroquial de emendas parlamentares, ao
qual se soma a associação pragmática do parlamentar a alguma liderança
plebiscitária. A resultante só pode ser a centrifugação política.
Tudo isso se explica na microfísica dos
interesses. O que resta entender melhor é como a centrifugação interessaria a
núcleos duros da elite política. É um paradoxo desconcertante. Terão sido esses
núcleos duros convertidos em líquido, ou aterrados, ou fagocitados, pela
polarização extrema? Para adotar essa distopia como norte da reflexão sobre a
política brasileira é indispensável ver o atestado de óbito da elite política.
Mas ele é negado a cada dois anos, pela sua reprodução sustentável, graças à manutenção
histórica de um alto índice de participação eleitoral e à consistente
institucionalização de eleições e partidos. Há mais mistérios envolvidos, a
pedir pesquisa, do que a imaginação normativa pode supor sobre o que deveriam
ser uma elite política "séria e decente" e um "verdadeiro"
parlamento.
O centro de gravidade falta também por
causa do Poder Executivo, porque ele não se organiza como coalizão política,
que foi uma clara indicação do resultado do segundo turno das eleições
presidenciais. Foi montado e funciona como um governo de Lula e seu partido,
com alianças ad hoc com algumas cúpulas de partidos e com várias
personalidades individuais. Esse é um tema recorrente nesta coluna e não é
possível, neste artigo, tratá-lo detidamente, mais uma vez. Cabe reafirmar
apenas a interpretação de que o presidente parece não ter se conformado até
hoje com o fato de não ter vencido as eleições no primeiro turno. Embora a área
econômica adote uma racionalidade positiva de coalizão, o conjunto da ópera
ecoa uma ficção, como se os apoios que Lula recebeu no segundo turno fossem
moralmente compulsórios e seu governo fosse - e esta afirmação está virando jargão
da esquerda que declara o governo como objeto em disputa - a "última
fronteira da civilização". Não é,
nem poderia ser.
O que essa auto-imputação solene quer mesmo
dizer? Que nossa sustentabilidade, como sociedade civilizada, depende do atual
governo (ou do governante) ser poupado de conviver com uma oposição
legítima? De que tipo de civilização se
fala, afinal?
Um governo, qualquer que seja, não pode ter
esse papel, numa sociedade democrática. Esse papel é das instituições em seu
conjunto. O poder executivo de governar, embora seja relevantíssimo, é apenas
uma dessas instituições. É ao Judiciário, aliás, que a nossa Constituição -
expressão política do nosso marco civilizatório - destina a missão de derradeiro
guardião. Além dos poderes institucionais do
Estado, no plano da sociedade a ciência, como inteligência e a cultura - tanto
a letrada quanto a popular - são marcos civilizatórios mais efetivos do que
qualquer governo. Ora, se não há hoje alternativa eleitoral competitiva para
presidente, além de Lula e Bolsonaro, isso não significa que se deva converter essa constatação
conjuntural em justificativa para afirmação tão dramática, grandiloquente e
pretensiosa.
No fundo, despida dessas vestes retóricas,
aparece uma posição política - que é legítima, como vontade de uma maioria
plural, para ocupar o Executivo e é minoritária no Legislativo, com quem,
também legitimamente, o governo precisa ser compartilhado. Maioria que, ao não
se organizar efetivamente como coalizão, suscita um efeito centrífugo análogo
ao da pequena política do Legislativo.
Se políticas de varejo dão-se nos dois
poderes e em ambos têm predominado, em ambos também subsistem estratégias e
posições políticas gerais. No Congresso
- e não só no governo - há preferências de atacado que convivem e negociam com
o varejo. São exemplos delas a orientação pró mercado e as pautas conservadoras
em costumes. Nenhum governo, de Lula ou de qualquer outro, evita derrotas
quando desafia esses dois pilares de atacado. Para mudar esses pilares só há um
caminho: as urnas nas eleições legislativas. Nenhum salvador da pátria no
Planalto resolverá isso. Em eleições proporcionais, o populismo de esquerda é
impotente, embora insistente. O de direita opera mais facilmente a correlação
entre atacado e varejo, transitando do extremismo ao pragmatismo. Para
enfrentar isso, não é pragmatismo que falta, porque ele há de sobra, na
esquerda, no centro e na centro-direita. O que falta é uma política democrática
que não crie um abismo entre esse pragmatismo necessário e a retórica política
e ideológica. Nesse desencontro mora a demagogia, com ela o descrédito e, daí,
o perigo.
*Cientista político e professor da UFBa
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