domingo, 9 de junho de 2024

Míriam Leitão - A economia como campo de luta política e humana

O Globo

A economista Maria da Conceição nunca diferenciou a economia da luta política por um Brasil pelo qual ela sempre sonhou, mais desenvolvido, democrático e mais justo. Por isso, em plenos anos de chumbo, ela acabou presa, num daqueles episódios de puro horror, praticamente sequestrada por agentes das Forças Armadas. Ela mesma conta que o então ministro Mario Henrique Simonsen atuou para libertá-la. E dizia não ter entendido sua prisão por não ser “subversiva”. Na verdade, sua coragem pessoal de dizer sempre o que pensava era mais desestabilizador para um regime ditatorial do que se ela fosse de alguma organização.

A marca maior de Maria da Conceição como economista é a sua convicção de que o Brasil precisa de um plano de desenvolvimento, industrializante, conduzido em grande parte pelo Estado, mas num contexto democrático e com ênfase na busca da justiça social. O governo militar, que ela sempre criticou com sua voz veemente e destemida, tinha planos de desenvolvimento mas era centralizador, autoritário, e concentrador de renda. Sua visão estava mais de acordo com o Plano de Metas, do governo JK, do qual participou da formulação, num governo aberto e democrático.

Conceição conhecia como poucas pessoas a dinâmica da estrutura industrial que prevaleceu no século XX. Fundadora crítica da teoria do desenvolvimento da América Latina. Professora dedicada e apaixonada, formou muita gente na economia e fora dela, inclusive os que não eram de esquerda. Escreveu um clássico: “Da substituição de importações ao capitalismo financeiro”. Outro dos seus ensaios famosos é o “Além da estagnação”, que escreveu com José Serra, no qual criticava o modelo de desenvolvimento concentrador de renda do governo militar. Como economista do desenvolvimento, era próxima de Celso Furtado, de quem era grande amiga.

É difícil definir Maria da Conceição Tavares porque ela era um monumento. Suas ideias, certas ou erradas, eram defendidas com veemência. No Plano Cruzado, se emocionou às lágrimas porque achou que estava diante de um plano que derrubava a inflação, distribuindo renda. Mas foi exatamente o excesso que acabou com o plano, ao estimular o consumo além da capacidade de produção brasileira, num país muito fechado. Foi crítica inicial do Plano Real, da mesma forma que criticou o Bolsa Família. Ela preferia que houvesse políticas sociais mais generalistas e não focadas.

Numa homenagem a ela, no IPEA, em 2010, o economista Ricardo Bielschowsky, definiu assim a professora. “Conceição é uma guerreira no front intelectual da luta política, por uma sociedade mais democrática, melhor e mais justa.” Era isso, qualquer texto sobre ela, tende a chamá-la de guerreira. Porque era assim que ela se dispunha para a vida. Talvez por isso tenha tido agora, em pleno tempo das mídias sociais, virado um sucesso com suas frases curtas, cortantes, em aulas ou entrevistas, viralizando.

Foi professora de muitos e gostava de dizer isso até quando discordava do ex-aluno instalado momentaneamente em algum cargo. Na mesma homenagem do Ipea, ela foi definida assim “mexe com a cabeça dos alunos e dos colegas economistas, obriga todo mundo a “pensar grande”.

O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, amigo pessoal de Maria da Conceição a definiu como “debatedora perspicaz, contundente, defendeu em sua vasta obra que a economia é um instrumento para melhorar socialmente e politicamente a nação. Na Cepal, desenvolveu contribuições originais para a análise das características e singularidades da economia brasileira e latino-americana”.

Maria da Conceição nasceu em Portugal e, por sorte nossa, adotou o Brasil, tornou-se brasileira, influenciou toda a formação intelectual, desde meados do século passado no Brasil. Sua paixão pelo Brasil, pelo sonho de que o país se transformasse numa grande nação desenvolvida, contaminou os jovens de diversas gerações com os quais ela conviveu. Mesmo os que se distanciaram dos métodos analíticos que ela adotava não deixaram de ser impactados pela sua força e carisma. Fez sua carreira de sucesso num universo totalmente masculino, como o dos anos 50 e 60. E por temperamento impunha-se, não pedia licença. Uma pessoa que veio para deixar um legado. E deixou. Nessa hora da despedida é difícil inclusive delimitar a dimensão e fronteira desse legado que o tempo ajudará a definir com mais precisão.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Muito bom! A colunista foi perfeita numa frase: "É difícil definir Maria da Conceição Tavares porque ela era um monumento."

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom!