quinta-feira, 18 de julho de 2019

Sérgio Rodrigues: De esquerda, a Flip?

- Folha de S. Paulo

A bolha que eu vi em Paraty foi a da democracia, da arte e da civilização

A Flip é de esquerda, decreta o consenso formado após a 17ª edição da festa literária, restando decidir se isso a torna boa, como bastião de resistência a um governo reacionário, ou má, como bolha em que os intelectuais se escondem do “Brasil real”.

Estive lá este ano —como estive na maioria das Flips, inclusive como mediador (2004) e autor convidado (2009)— e discordo. Deixemos de lado a guinada que a programação oficial, hoje apenas uma entre as muitas atrações do evento, deu em 2017 rumo às irreprimíveis questões identitárias, que são “de esquerda” por uma razão mais tática que estrutural.

Será mesmo de esquerda um festival que já nasceu carimbado como convescote da elite? Que glorifica o mercado editorial? Que custa uma nota em hospedagem e costuma ter convidados estrangeiros —sobretudo europeus— como estrelas?

“É a esquerda-caviar”, insistirão. O clichê também não serve. Amassar numa geleia esquerdista autocongratulatória escritores como J.M. Coetzee, Tom Stoppard, Christopher Hitchens, Lobo Antunes e Fernando Henrique Cardoso é, para dizer o mínimo, não entender o que eles dizem.

Quem reduz a Flip a terra encantada de uma esquerda alienada da realidade brasileira se engana sobre a Flip e sobre o Brasil. Ela se situa inevitavelmente à parte por ser uma festa de livros num país semianalfabeto. Mas só é “de esquerda” na cabeça de quem assim classifica Reinaldo Azevedo, a Globo, a Veja e toda a imprensa mundial.

Antibolsonarista, sim. É engraçado que se queixem de falta de representatividade na Flip os apoiadores de um governo tão abertamente hostil à educação e às artes. Deviam primeiro escrever um livro, um só, que os tornasse dignos de um convite.

Se estivesse vivo, o grande intelectual direitista José Guilherme Merquior (1941-1991) seria presença obrigatória em Paraty. Eu sou um que correria para garantir ingresso. E ficaria furioso se algum esquerdista primitivo tentasse impedi-lo de falar.

O problema é que terraplanistas, milicianos, negadores de fatos históricos e exterminadores de florestas não têm vez ali. Normal: também não se veem poetas de panturrilha tatuada e tradutores carecas de Homero nas feiras de armas patrocinadas pela Taurus. Por que o país da Taurus seria o real e o da Flip, o falso?

Não é que a polaridade esquerda-direita já não faça sentido. É que hoje os eixos principais do debate são outros: democracia-autoritarismo, ciência-misticismo, razão-irracionalidade, liberdade-censura, arte-filistinismo, civilização-barbárie. Essa pauta precisa estar —estaremos fritos se não estiver— acima das ideologias.

Quando, de forma organizada e fascista, infernizou em 2013 a vida da ativista cubana Yoani Sánchez em sua visita ao Brasil, a esquerda petista se perfilou ao lado do autoritarismo, da censura e da barbárie. Em Paraty, esse papel coube às duas dúzias que boicotaram com fogos e música alta a fala de Glenn Greenwald do outro lado do rio Perequê.

O problema parece estar se agravando. Na terça-feira (16), em Jaraguá do Sul (SC), um abaixo-assinado e algumas ameaças de violência levaram os organizadores de uma feira literária a cancelar o convite aos perigosos “esquerdistas” Miriam Leitão e Sérgio Abranches.

Sim, eu vi uma bolha em Paraty, mas não foi a da esquerda. Foi a da democracia, da ciência, da razão, da liberdade, da arte e da civilização. Quem quer deixar o Brasil fora disso?

*Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

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