O tema mais importante da obra de Roberto da Matta é o caráter hierárquico da sociedade brasileira. Nosso maior antropólogo em atividade celebrizou esse fato na frase: "Você sabe com quem está falando?" É frase clássica utilizada para "dar uma carteirada". Alguém importante, com uma credencial elevada ou com parentes e amigos em cargos de alto nível, recorre ao você sabe com quem está falando para escapar de uma multa ou punição.
Nos anos 70, quando pela primeira vez Da Matta escreveu sobre o tema, a utilização do recurso hierárquico, vamos chamá-lo assim, era mais ostensiva. Ele continua presente em nossa vida, muitas vezes de maneira mitigada. Alguém pode se vestir melhor para participar de uma reunião. Em comparação com os demais participantes, a pessoa mais bem vestida poderá estar transmitindo o recado de que ela está acima dos demais.
Um elemento interessante da noção de hierarquia, cada macaco no seu galho, para falar de forma popular, é que dessa noção se pode deduzir muitos outros acontecimentos de nossa sociedade. Em setembro de 2007 no Rio, os ministros Pedro Brito (Portos) e Márcio Fortes (Cidades), além do secretário estadual de Transportes, Júlio Lopes, estavam em um trem metropolitano numa viagem inaugural de um determinado trajeto, quando o trem foi alvejado por balas dos traficantes do morro do Jacarezinho. Havia também outras pessoas no trem, pessoas comuns.
Na ocasião, diante do fato, o governador Sérgio Cabral determinou que a polícia atuasse "de maneira enérgica diante da ousadia dos criminosos". Além disso, um dos chefes de polícia do Estado do Rio afirmou que os bandidos só atiraram no trem porque não sabiam que ali estavam autoridades.
Pois é, os bandidos não são bobos. Uma coisa é um trem só com pessoas comuns, outra, muito diferente, é um trem com algumas autoridades. Os bandidos sabem que no Brasil pessoas diferentes têm tratamentos diferentes. Dependendo da origem social de cada um, o tratamento é completamente diverso. Os bandidos sabem que a polícia vai ser enérgica caso um trem com autoridades seja alvejado, e não agirá caso um trem com pessoas comuns apenas seja alvo de disparos de armas de fogo.
Peço ao leitor que faça o seguinte exercício: coloque no Google as palavras "traficantes, tiros, trem". Haverá várias notícias de tiros em trens. Em nenhuma a polícia entrará no morro do qual saíram os tiros, mas ela entrou quando havia ministros no trem. Entrou, agiu e uma pessoa morreu.
Vamos agora refletir: conferimos tratamento diferenciado a uma pessoa quando sabemos que ela é importante? Um tratamento positivamente diferenciado? E quando temos a informação, muitas vezes dada pelas vestimentas e marcas do tempo na face e nos dentes, de que a pessoa é pobre ou vem de estratos sociais mais baixos, esse tratamento é negativamente diferenciado?
Um observador brasileiro, do mercado financeiro, disse-me uma vez que as roupas de grife, como as camisas Ralf Lauren e Tommy, são menos usadas e valorizadas por seus pares americanos do que entre os brasileiros.
Não é o caso dessas marcas, mas o Brasil é mestre em transformar o que é de massa nos Estados Unidos em premium no Brasil. Isso ocorre com os automóveis, algumas franquias de restaurantes e outros bens ou serviços que lá são acessíveis a toda a classe média.
Isso também acontece nos esportes. Quem entra em uma megaloja de esportes nos EUA vai se espantar com o fato de a maior área da loja ser dedicada ao golfe. Lá há centenas de campos públicos. Público lá não é sinônimo de gratuito, mas com certeza de algo pago e acessível a todos. Senão todos, a maioria pode pagar. Uma taqueira de golfe usada no Brasil custa R$ 1.700; uma nova nos Estados Unidos, US$ 200. Converta-se as moedas e ver-se-á onde o esporte é popular.
É possível popularizar o golfe no Brasil. Sim, é. Mas a interpretação damattiana do Brasil nos levará à conclusão de que quando o golfe for popularizado haverá outro esporte a ser utilizado como elemento de hierarquização das pessoas.
Quando pensamos sobre os programas sociais no Brasil somos levados a avaliá-los também sob essa ótica. Há coisas para pobres e coisas que não são para pobres? Quem conhece São Paulo já teve a chance de ver, ao menos por fora, os prédios do Projeto Cingapura. Muitos deles ficam em um lugar de péssima qualidade habitacional, à beira das marginais. Além disso, os apartamentos, muitas vezes denominados de unidades habitacionais, são muito pequenos.
Trata-se de algo para pobre. Afinal, as pessoas que foram para aquelas residências moravam em outras muito piores, em uma favela, denominada pelo IBGE de aglomerado urbano subnormal. Elas devem dar graças a Deus: saíram do subnormal e foram para o normal. Ademais, pagaram pouco ou nada por isso e, como diz o ditado, a cavalo dado não se olham os dentes.
Sabemos das imensas carências do Brasil. Sabemos das limitações orçamentárias. Sabemos da necessidade de gerar superávit que tanto limita vários investimentos, em particular os sociais. A questão é outra. É possível que a nossa sociedade passe a chamar todo mundo por você, em vez de diferenciar entre quem deve ser tratado por você e aqueles aos quais devemos dispensar o tratamento de senhor? É possível que seja elaborado um programa habitacional no qual os locais escolhidos para a construção das moradias populares (essa expressão tem conotação pejorativa?) seja mais ou menos equivalente ao de onde moram os não pobres?
A solução habitacional americana é cheia de defeitos, o mais relevante de todos diz respeito à total dependência em relação ao automóvel. Tudo é espalhado, tudo é esparramado. Assim, para fazer qualquer tipo de compra, ter acesso a qualquer tipo de serviço, somente de carro. Nem a bicicleta é viável.
Do lado das virtudes, destaca-se o aspecto geral da ocupação territorial residencial: tudo é muito parecido, praticamente igual. É óbvio que há bairros pobres e ricos, mas a diferença entre eles não é grande. Mais do que isso, os bairros pobres são dignos e não estão na periferia da periferia. Os pobres têm carro e acesso aos mesmos lugares que os não pobres. Lá, quem realmente é pobre mora no centro das cidades, nas "inner cities", uma minoria.
Precisamos ser criativos. Nossos políticos e decisores públicos, eleitos e não eleitos, deveriam abandonar as fórmulas antigas e procurar saídas novas e originais. Praticamente 60% dos brasileiros preferem morar em uma casa que não seja muito boa, mas em um lugar que seja bom, ao passo que 36% prefere uma casa boa em um lugar que não seja muito bom. Vejamos como será o desenrolar do programa recém-lançado pelo governo federal. Vejamos que terrenos serão reservados aos pobres. Vejamos se serão terrenos de pobres, como sempre, ou se haverá realmente áreas dignas com moradias dignas.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).
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