Martin Wolf
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Os EUA estão presos entre o medo das elites ante a possibilidade de falências e o repúdio popular aos resgates
Os Estados Unidos são a Rússia? A pergunta parece provocativa, se não ultrajante. O autor da pergunta, no entanto, é Simon Johnson, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e professor da Sloan School of Management, no Massachusetts Institute of Technology. Em artigo na edição de maio do "Atlantic Monthly", o professor Johnson compara o controle da "oligarquia financeira" sobre as políticas dos EUA com o das elites empresariais em países emergentes. Tais comparações fazem sentido? A resposta é "sim", mas apenas até certo ponto.
"Em sua profundidade e subitaneidade", argumenta o professor Johnson, "a crise econômica e financeira dos EUA é surpreendentemente rememorativa de momentos que vimos recentemente nos mercados emergentes". A similaridade é evidente: grandes influxos de capital estrangeiro; crescimento tórrido do crédito; alavancagem excessiva; bolhas nos preços dos ativos, particularmente nas propriedades; e, por fim, a catástrofe financeira e desabamento do preço dos ativos.
"Mas", acrescenta o professor Johnson, "há uma similaridade mais profunda e perturbadora: os interesses da elite empresarial - financistas, no caso dos EUA - desempenharam papel central na criação da crise, até o colapso inevitável". Além disso, "a grande riqueza que o setor financeiro criou e concentrou deu aos banqueiros enorme peso político".
Agora, argumenta o professor Johnson, o peso do setor financeiro está evitando a resolução da crise. Os bancos "não querem admitir a extensão total de suas perdas, porque isso provavelmente os exporia como insolventes [...] Este comportamento é corrosivo: bancos doentes ou não emprestam (para acumular dinheiro e reforçar as reservas), ou fazem apostas desesperadas em créditos e investimentos de alto risco que podem trazer grandes recompensas, mas provavelmente não compensam no fim das contas. Seja qual for o caso, a economia sofre ainda mais e, enquanto sofre, os próprios ativos dos bancos continuam a deteriorar-se - criando um ciclo altamente destrutivo".
Tal análise faz sentido? Esta é uma questão sobre a qual pensei durante minha recente estada de três meses em Nova York, com visitas a Washington DC, agora a capital das finanças mundiais. É por isso que a análise do professor Johnson é tão importante.
Inquestionavelmente, testemunhamos um aumento maciço na importância do setor financeiro. Em 2002, o setor gerou impressionantes 41% dos lucros de empresas domésticas nos EUA. O endividamento privado nos EUA aumentou de 112%, em 1976, para o recorde de 295% do PIB em 2008, sendo que as dívidas do setor financeiro chegaram a 121% do PIB. A remuneração média no setor, que foi próxima à dos demais entre 1948 e 1982, em 2007 era de 181%.
Em pesquisa recente, Thomas Philippon, da Stern School of Business, da New York University, e Ariell Reshef, da University of Virginia, concluíram que o setor financeiro se caracterizou por altos salários e alta capacitação da mão de obra entre 1909 e 1933. Depois, entrou em relativo declino, até 1980, a partir de quando voltou a exibir alta capacitação e altos salários. O principal motivo, segundo concluíram, foi a desregulamentação, que "libera a criatividade e inovação e aumenta a demanda por funcionários qualificados".
A desregulamentação também trouxe a expansão do crédito, a matéria-prima que o setor cria e da qual se alimenta. A transmutação do crédito em renda é o motivo pelo qual a rentabilidade do sistema financeiro pode ser ilusória. Da mesma forma, a expansão do setor financeiro se inverterá, pelo menos dentro dos EUA: o crescimento do crédito e a alavancagem mascararam a baixa ou até inexistente rentabilidade de muitas atividades, que desaparecerão, e, além disso, parte das dívidas também terá de ser liquidada. A era dourada de Wall Street acabou: a volta da regulamentação é causa e consequência desta mudança.
O professor Johnson, contudo, apresenta um ponto ainda mais forte que este. Argumenta que a recusa de instituições poderosas em admitir perdas - ajudadas por um governo cúmplice, sob domínio dos "cambistas" - pode tornar impossível escapar desta crise. Além disso, como os EUA gozam do privilégio de captar dinheiro em sua própria moeda, o país tem muito mais facilidade do que meras economias emergentes para ocultar as falhas, o que tornaria a crise em um problema econômico de longo prazo. Portanto, temos testemunhado uma série de improvisações ou "acordos" cujo objetivo subjacente é resgatar o máximo possível do sistema financeiro da forma mais generosa que as autoridades achem que possam levar adiante sem se prejudicar.
Concordo com as críticas às políticas adotadas até agora. No debate no fórum de economistas no Financial Times sobre as "parceria de investimentos público-privados", os críticos estavam certos: se funcionar, é porque é uma forma pouco transparente de transferir recursos dos contribuintes para os bancos. É improvável, porém, que preencha o buraco de capital que os mercados atualmente estão ignorando, como argumenta Michael Pomerleano. Também não estou convencido de que os "testes de estresse" do capital bancário sendo realizados levarão a ações para preencher esse buraco de capital.
Ainda assim, será que essas debilidades fazem dos EUA uma Rússia? Não. Em muitos países emergentes, a corrupção é grave e aberta. Nos EUA, (embora esta não esteja ausente), a influência vem tanto de um sistema de princípios como dos grupos lobistas. O que era bom para Wall Street, era considerado bom para o mundo. O resultado foi um programa bipartidário de desregulamentação mal elaborado para os EUA e, dada sua influência, para o mundo.
A crença atual de que Wall Street precisa ser em grande parte preservada é principalmente consequência do medo. A visão de que instituições financeiras abrangentes e complexas são grandes demais para falir pode estar equivocada. Mas é fácil entender por que autoridades inteligentes evitam comprovar isso. Ao mesmo tempo, os políticos também temem uma reação pública contra grandes injeções de capital público. Logo, assim como o Japão, os EUA estão presos entre o medo das elites ante a possibilidade de falências e o repúdio popular aos resgates. Este é um fenômeno mais complexo do que o "golpe silencioso" descrito pelo professor Johnson.
Ainda assim, uma reestruturação decisiva é de fato necessária. Não porque recolocar a economia no caminho dos últimos anos, de crescimento alimentado por dívidas, seja viável ou desejável. Duas coisas precisam ser alcançadas: primeiro, as principais instituições financeiras precisam tornar-se solventes e que haja credibilidade quanto a isso; e, segundo, nenhuma instituição privada com fins lucrativos pode continuar sendo grande demais para falir. Isso não é capitalismo, mas socialismo. Este é um dos pontos nos quais a esquerda e a direita concordam. Eles estão certos. Falências - e, portanto, perdas para os credores sem garantia - precisam fazer parte de qualquer solução durável. Sem essa mudança, a solução desta crise pode apenas ser o prenúncio da próxima.
Martin Wolf é colunista do "Financial Times".
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Os EUA estão presos entre o medo das elites ante a possibilidade de falências e o repúdio popular aos resgates
Os Estados Unidos são a Rússia? A pergunta parece provocativa, se não ultrajante. O autor da pergunta, no entanto, é Simon Johnson, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e professor da Sloan School of Management, no Massachusetts Institute of Technology. Em artigo na edição de maio do "Atlantic Monthly", o professor Johnson compara o controle da "oligarquia financeira" sobre as políticas dos EUA com o das elites empresariais em países emergentes. Tais comparações fazem sentido? A resposta é "sim", mas apenas até certo ponto.
"Em sua profundidade e subitaneidade", argumenta o professor Johnson, "a crise econômica e financeira dos EUA é surpreendentemente rememorativa de momentos que vimos recentemente nos mercados emergentes". A similaridade é evidente: grandes influxos de capital estrangeiro; crescimento tórrido do crédito; alavancagem excessiva; bolhas nos preços dos ativos, particularmente nas propriedades; e, por fim, a catástrofe financeira e desabamento do preço dos ativos.
"Mas", acrescenta o professor Johnson, "há uma similaridade mais profunda e perturbadora: os interesses da elite empresarial - financistas, no caso dos EUA - desempenharam papel central na criação da crise, até o colapso inevitável". Além disso, "a grande riqueza que o setor financeiro criou e concentrou deu aos banqueiros enorme peso político".
Agora, argumenta o professor Johnson, o peso do setor financeiro está evitando a resolução da crise. Os bancos "não querem admitir a extensão total de suas perdas, porque isso provavelmente os exporia como insolventes [...] Este comportamento é corrosivo: bancos doentes ou não emprestam (para acumular dinheiro e reforçar as reservas), ou fazem apostas desesperadas em créditos e investimentos de alto risco que podem trazer grandes recompensas, mas provavelmente não compensam no fim das contas. Seja qual for o caso, a economia sofre ainda mais e, enquanto sofre, os próprios ativos dos bancos continuam a deteriorar-se - criando um ciclo altamente destrutivo".
Tal análise faz sentido? Esta é uma questão sobre a qual pensei durante minha recente estada de três meses em Nova York, com visitas a Washington DC, agora a capital das finanças mundiais. É por isso que a análise do professor Johnson é tão importante.
Inquestionavelmente, testemunhamos um aumento maciço na importância do setor financeiro. Em 2002, o setor gerou impressionantes 41% dos lucros de empresas domésticas nos EUA. O endividamento privado nos EUA aumentou de 112%, em 1976, para o recorde de 295% do PIB em 2008, sendo que as dívidas do setor financeiro chegaram a 121% do PIB. A remuneração média no setor, que foi próxima à dos demais entre 1948 e 1982, em 2007 era de 181%.
Em pesquisa recente, Thomas Philippon, da Stern School of Business, da New York University, e Ariell Reshef, da University of Virginia, concluíram que o setor financeiro se caracterizou por altos salários e alta capacitação da mão de obra entre 1909 e 1933. Depois, entrou em relativo declino, até 1980, a partir de quando voltou a exibir alta capacitação e altos salários. O principal motivo, segundo concluíram, foi a desregulamentação, que "libera a criatividade e inovação e aumenta a demanda por funcionários qualificados".
A desregulamentação também trouxe a expansão do crédito, a matéria-prima que o setor cria e da qual se alimenta. A transmutação do crédito em renda é o motivo pelo qual a rentabilidade do sistema financeiro pode ser ilusória. Da mesma forma, a expansão do setor financeiro se inverterá, pelo menos dentro dos EUA: o crescimento do crédito e a alavancagem mascararam a baixa ou até inexistente rentabilidade de muitas atividades, que desaparecerão, e, além disso, parte das dívidas também terá de ser liquidada. A era dourada de Wall Street acabou: a volta da regulamentação é causa e consequência desta mudança.
O professor Johnson, contudo, apresenta um ponto ainda mais forte que este. Argumenta que a recusa de instituições poderosas em admitir perdas - ajudadas por um governo cúmplice, sob domínio dos "cambistas" - pode tornar impossível escapar desta crise. Além disso, como os EUA gozam do privilégio de captar dinheiro em sua própria moeda, o país tem muito mais facilidade do que meras economias emergentes para ocultar as falhas, o que tornaria a crise em um problema econômico de longo prazo. Portanto, temos testemunhado uma série de improvisações ou "acordos" cujo objetivo subjacente é resgatar o máximo possível do sistema financeiro da forma mais generosa que as autoridades achem que possam levar adiante sem se prejudicar.
Concordo com as críticas às políticas adotadas até agora. No debate no fórum de economistas no Financial Times sobre as "parceria de investimentos público-privados", os críticos estavam certos: se funcionar, é porque é uma forma pouco transparente de transferir recursos dos contribuintes para os bancos. É improvável, porém, que preencha o buraco de capital que os mercados atualmente estão ignorando, como argumenta Michael Pomerleano. Também não estou convencido de que os "testes de estresse" do capital bancário sendo realizados levarão a ações para preencher esse buraco de capital.
Ainda assim, será que essas debilidades fazem dos EUA uma Rússia? Não. Em muitos países emergentes, a corrupção é grave e aberta. Nos EUA, (embora esta não esteja ausente), a influência vem tanto de um sistema de princípios como dos grupos lobistas. O que era bom para Wall Street, era considerado bom para o mundo. O resultado foi um programa bipartidário de desregulamentação mal elaborado para os EUA e, dada sua influência, para o mundo.
A crença atual de que Wall Street precisa ser em grande parte preservada é principalmente consequência do medo. A visão de que instituições financeiras abrangentes e complexas são grandes demais para falir pode estar equivocada. Mas é fácil entender por que autoridades inteligentes evitam comprovar isso. Ao mesmo tempo, os políticos também temem uma reação pública contra grandes injeções de capital público. Logo, assim como o Japão, os EUA estão presos entre o medo das elites ante a possibilidade de falências e o repúdio popular aos resgates. Este é um fenômeno mais complexo do que o "golpe silencioso" descrito pelo professor Johnson.
Ainda assim, uma reestruturação decisiva é de fato necessária. Não porque recolocar a economia no caminho dos últimos anos, de crescimento alimentado por dívidas, seja viável ou desejável. Duas coisas precisam ser alcançadas: primeiro, as principais instituições financeiras precisam tornar-se solventes e que haja credibilidade quanto a isso; e, segundo, nenhuma instituição privada com fins lucrativos pode continuar sendo grande demais para falir. Isso não é capitalismo, mas socialismo. Este é um dos pontos nos quais a esquerda e a direita concordam. Eles estão certos. Falências - e, portanto, perdas para os credores sem garantia - precisam fazer parte de qualquer solução durável. Sem essa mudança, a solução desta crise pode apenas ser o prenúncio da próxima.
Martin Wolf é colunista do "Financial Times".
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