DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Francesca Izzo. Democrazia e cosmopolitismo in Antonio Gramsci. Roma: Carocci, 2009. 246p.
Apresentado ao público recentemente, este último livro de Francesca Izzo é composto por uma série de ensaios, todos eles já publicados, integral ou parcialmente, em revistas acadêmicas ou em coletâneas anteriores. Francesca é professora de História das Doutrinas Políticas, na Universidade de Nápoles, e faz parte da Fundação Instituto Gramsci, de Roma.
O livro é uma potente reflexão sobre o pensamento de Gramsci e de muitas de suas interpretações, bem como das repercussões políticas que estas ensejaram no decorrer da segunda metade do século XX e princípios deste novo século, junto à grande área do pensamento crítico vinculado à esquerda. Um escopo que envolve intelectuais e políticos que, afirmando ou negando as características marcadamente incidentes daquele pensamento na realidade contemporânea, se debruçaram sobre ele de maneira profunda.
Afirma-se aqui efetivamente uma abordagem nova de Gramsci, na medida em que não se está em busca da compreensão do seu pensamento senão a partir da sua radical historicidade. Toda a trama conceitual gramsciana é abordada a partir de uma questão que Francesca Izzo reputa ser a essencial para compreendê-lo: a questão da modernidade e de sua crise. É desse ponto de partida que a autora busca a concepção gramsciana de democracia, bem como seu alcance.
Evidentemente, a partir dessa perspectiva, o livro somente poderia fazer sentido se enfrentasse, de início, o debate com as principais referências da filosofia política que tematizaram o pensamento de Gramsci a partir daquele núcleo (modernidade/democracia), no seu nexo com a dinâmica política e ideológica das sociedades contemporâneas. É assim que Izzo repassa as formulações e expõe agudas criticas a um conjunto de trabalhos diretamente vinculados ao exercício de reflexão das temáticas gramscianas, desde aqueles produzidos por autores como Norberto Bobbio até Massimo Cacciari, passando por Asor Rosa, Toni Negri, para mencionar apenas alguns deles. Por outro lado, Izzo também não deixa de dispensar um tratamento crítico a autores, como Deleuze, Guattari ou mesmo Foucault, que, colocando justas questões a respeito das diversas problemáticas que envolvem a crise contemporânea, rejeitam um nexo produtivo entre democracia e modernidade.
Há um pano de fundo na seleção dos autores e temas aqui trabalhados. Trata-se do que Izzo define como “ideologia italiana”, produzida desde os anos sessenta a partir da abordagem das diversas dimensões da chamada “crise do marxismo” e que acabou por constituir “o referente cognitivo do processo de decomposição das forças históricas do movimento operário italiano” (p. 7). A vaga chamada de pós-modernista haveria produzido e disseminado no plano cognitivo não só uma visão pessimista e niilista da modernidade, mas também induzido e até mesmo possibilitado que se aprofundasse a fratura entre democracia e modernidade.
Em tal “ideologia”, os supostos limites inelutáveis da modernidade condicionariam qualquer perspectiva política nela baseada, vista como inclinada ao autoritarismo, quando não ao totalitarismo. Como se pretende demonstrar no livro, as leituras que foram se cristalizando sobre o pensamento de Gramsci, nesse contexto, obedeceram precisamente a esse paradigma. Condenado o marxismo, Gramsci seria um pensamento irrecuperável para iluminar o presente e o futuro.
Por essa razão, o ponto de partida de Francesca Izzo é precisamente a relação Gramsci e Marx, e, a partir daí, isto é, de uma leitura afirmativa dessa relação (não em termos ortodoxos e muito menos dogmáticos), pensar os termos da inovação gramsciana. As suas orientações gerais são apresentadas em quatro pontos.
Em primeiro lugar, a de que os Cadernos do cárcere “oferecem uma teoria, articulada e conceitualmente densa, do Moderno e da sua crise, são sobretudo um exemplo único, no panorama do pensamento do século XX, de uma teoria global de modernidade baseada numa reelaboração das categorias do materialismo histórico” (p. 20).
Em segundo lugar, a de que essa teoria não se reduz a um humanismo ou mesmo um positivo tecnicismo (do homem como produtor da técnica) produtor de uma identificação entre sujeito e objeto. Nela, o sujeito moderno não nasce no plano da consciência, mas se constitui a partir de “um princípio-fundamento complexo, formal e material: é o Estado territorial”. No cerne da crise desse Estado, para Gramsci, o que se anunciava não era a sua mera dissolução e dispersão em vários fragmentos, “mas a constituição de um princípio de subjetividade, o partido, não de base territorial, mas cosmopolita, que reelabora, sem cancelá-lo, o núcleo ‘democrático’ da modernidade” (p. 21).
Nesse aspecto, a inovação presente na leitura que Izzo faz do texto de Gramsci merece uma nota mais específica. A reflexão em torno do nexo entre Gramsci e Maquiavel, trabalhado pela autora, nos leva diretamente a uma parábola nem sempre explorada. Afirma Izzo: “Assim como o Príncipe maquiaveliano anunciava a formação do grande sujeito da política moderna, o Estado, da mesma forma, o ‘Moderno Príncipe’ anuncia uma circunstância estatal (statualità) que se desenvolve no terreno da democracia não mais exclusivamente territorial. Gramsci delineia uma teoria do partido que não pertence às famílias do estatalismo corporativo ou totalitário, ou do antiestado, que celebraram sua pompa entre os anos trinta e sessenta do século passado. Acima de tudo, ela finca suas raízes naquela complexa passagem de época e carrega as próprias marcas do industralismo e do cosmopolitismo” (p. 164). A nota é relevante, entre outros aspectos, porque estabelece uma formulação bastante interessante da noção de sujeito moderno no pensamento de Gramsci.
Em terceiro lugar, Izzo observa as dimensões de continuidade ou mesmo de desenvolvimento que existem no pensamento de Gramsci com a estrutura lógica e histórica que advém de Hegel e Marx. O Gramsci de Izzo é efetivamente um aprofundamento ulterior daqueles clássicos, sobretudo no que se refere à concepção de história que está presente nos Cadernos, sem contudo padecer, segundo a própria autora, de qualquer automatismo ou mesmo determinismo, ainda que “progressista”.
Por fim, Izzo reafirma que a elaboração da filosofia da práxis por Gramsci não se efetua em ruptura com Marx, como insistiram por tantos anos e por distintas razões tanto Bobbio como Del Noce. A autora reconhece evidentemente que, depois de um percurso de assimilações e formulações filosóficas claramente tortuosas, cheias de sugestões neoidealistas e/ou mesmo gentilianas, o que predomina nos Cadernos é a autonomia intelectual que Gramsci assimila de Marx, e, por meio dela, se capacita para ler e pensar historicamente as condições necessárias de uma reforma intelectual e moral.
Em síntese, o que se observa nessa profunda revisão dos estudos e do próprio texto gramsciano empreendida por Izzo é a sua inclinação em conjugar os dois polos marcantes nas mais recentes interpretações a respeito do seu pensamento. Izzo explicita a imperiosidade de se compreender Gramsci tanto como um leitor produtivo de Marx, isto é, como um pensador atento às grandes transformações epocais que marcaram e marcam a sociedade contemporânea, notadamente a partir do estabelecimento do industrialismo, quanto como um leitor imaginativo de Maquiavel, do qual extrai, da mesma forma, o elemento histórico da política moderna em toda a sua dimensão de essencialidade, criatividade e abertura.
Democrazia e cosmopolitismo in Antonio Gramsci se insere numa perspectiva de leitura do pensador italiano que visa recuperar não somente a sua vitalidade, mas efetivamente sua atualidade. Baseado em investigações pontuais solidamente apresentadas e densamente documentadas, o que se registra aqui é um Gramsci liberto do “gramscismo” que marcou sua difusão e assimilação mundial, mas muito distante de um improvável reencontro com o “obreirismo” dos anos de combate, que marcou o “conselhismo” do início de sua trajetória como dirigente político. É, efetivamente, um Gramsci também distante do “altermundismo” como forma de expressão do antagonismo social, sem a mediação da política. O Gramsci que Izzo nos apresenta e sobre o qual nos convida a refletir é aquele que indica uma percepção própria da democracia, qual seja, a de “uma possibilidade inscrita na morfologia do moderno”; e este último concebido como um campo “aberto a formas de subjetividade não integralmente previsíveis e jamais definitivas”.
Alberto Aggio é professor de História da Unesp/Franca; bolsista sênior da Capes na Universidade Roma III.
Francesca Izzo. Democrazia e cosmopolitismo in Antonio Gramsci. Roma: Carocci, 2009. 246p.
Apresentado ao público recentemente, este último livro de Francesca Izzo é composto por uma série de ensaios, todos eles já publicados, integral ou parcialmente, em revistas acadêmicas ou em coletâneas anteriores. Francesca é professora de História das Doutrinas Políticas, na Universidade de Nápoles, e faz parte da Fundação Instituto Gramsci, de Roma.
O livro é uma potente reflexão sobre o pensamento de Gramsci e de muitas de suas interpretações, bem como das repercussões políticas que estas ensejaram no decorrer da segunda metade do século XX e princípios deste novo século, junto à grande área do pensamento crítico vinculado à esquerda. Um escopo que envolve intelectuais e políticos que, afirmando ou negando as características marcadamente incidentes daquele pensamento na realidade contemporânea, se debruçaram sobre ele de maneira profunda.
Afirma-se aqui efetivamente uma abordagem nova de Gramsci, na medida em que não se está em busca da compreensão do seu pensamento senão a partir da sua radical historicidade. Toda a trama conceitual gramsciana é abordada a partir de uma questão que Francesca Izzo reputa ser a essencial para compreendê-lo: a questão da modernidade e de sua crise. É desse ponto de partida que a autora busca a concepção gramsciana de democracia, bem como seu alcance.
Evidentemente, a partir dessa perspectiva, o livro somente poderia fazer sentido se enfrentasse, de início, o debate com as principais referências da filosofia política que tematizaram o pensamento de Gramsci a partir daquele núcleo (modernidade/democracia), no seu nexo com a dinâmica política e ideológica das sociedades contemporâneas. É assim que Izzo repassa as formulações e expõe agudas criticas a um conjunto de trabalhos diretamente vinculados ao exercício de reflexão das temáticas gramscianas, desde aqueles produzidos por autores como Norberto Bobbio até Massimo Cacciari, passando por Asor Rosa, Toni Negri, para mencionar apenas alguns deles. Por outro lado, Izzo também não deixa de dispensar um tratamento crítico a autores, como Deleuze, Guattari ou mesmo Foucault, que, colocando justas questões a respeito das diversas problemáticas que envolvem a crise contemporânea, rejeitam um nexo produtivo entre democracia e modernidade.
Há um pano de fundo na seleção dos autores e temas aqui trabalhados. Trata-se do que Izzo define como “ideologia italiana”, produzida desde os anos sessenta a partir da abordagem das diversas dimensões da chamada “crise do marxismo” e que acabou por constituir “o referente cognitivo do processo de decomposição das forças históricas do movimento operário italiano” (p. 7). A vaga chamada de pós-modernista haveria produzido e disseminado no plano cognitivo não só uma visão pessimista e niilista da modernidade, mas também induzido e até mesmo possibilitado que se aprofundasse a fratura entre democracia e modernidade.
Em tal “ideologia”, os supostos limites inelutáveis da modernidade condicionariam qualquer perspectiva política nela baseada, vista como inclinada ao autoritarismo, quando não ao totalitarismo. Como se pretende demonstrar no livro, as leituras que foram se cristalizando sobre o pensamento de Gramsci, nesse contexto, obedeceram precisamente a esse paradigma. Condenado o marxismo, Gramsci seria um pensamento irrecuperável para iluminar o presente e o futuro.
Por essa razão, o ponto de partida de Francesca Izzo é precisamente a relação Gramsci e Marx, e, a partir daí, isto é, de uma leitura afirmativa dessa relação (não em termos ortodoxos e muito menos dogmáticos), pensar os termos da inovação gramsciana. As suas orientações gerais são apresentadas em quatro pontos.
Em primeiro lugar, a de que os Cadernos do cárcere “oferecem uma teoria, articulada e conceitualmente densa, do Moderno e da sua crise, são sobretudo um exemplo único, no panorama do pensamento do século XX, de uma teoria global de modernidade baseada numa reelaboração das categorias do materialismo histórico” (p. 20).
Em segundo lugar, a de que essa teoria não se reduz a um humanismo ou mesmo um positivo tecnicismo (do homem como produtor da técnica) produtor de uma identificação entre sujeito e objeto. Nela, o sujeito moderno não nasce no plano da consciência, mas se constitui a partir de “um princípio-fundamento complexo, formal e material: é o Estado territorial”. No cerne da crise desse Estado, para Gramsci, o que se anunciava não era a sua mera dissolução e dispersão em vários fragmentos, “mas a constituição de um princípio de subjetividade, o partido, não de base territorial, mas cosmopolita, que reelabora, sem cancelá-lo, o núcleo ‘democrático’ da modernidade” (p. 21).
Nesse aspecto, a inovação presente na leitura que Izzo faz do texto de Gramsci merece uma nota mais específica. A reflexão em torno do nexo entre Gramsci e Maquiavel, trabalhado pela autora, nos leva diretamente a uma parábola nem sempre explorada. Afirma Izzo: “Assim como o Príncipe maquiaveliano anunciava a formação do grande sujeito da política moderna, o Estado, da mesma forma, o ‘Moderno Príncipe’ anuncia uma circunstância estatal (statualità) que se desenvolve no terreno da democracia não mais exclusivamente territorial. Gramsci delineia uma teoria do partido que não pertence às famílias do estatalismo corporativo ou totalitário, ou do antiestado, que celebraram sua pompa entre os anos trinta e sessenta do século passado. Acima de tudo, ela finca suas raízes naquela complexa passagem de época e carrega as próprias marcas do industralismo e do cosmopolitismo” (p. 164). A nota é relevante, entre outros aspectos, porque estabelece uma formulação bastante interessante da noção de sujeito moderno no pensamento de Gramsci.
Em terceiro lugar, Izzo observa as dimensões de continuidade ou mesmo de desenvolvimento que existem no pensamento de Gramsci com a estrutura lógica e histórica que advém de Hegel e Marx. O Gramsci de Izzo é efetivamente um aprofundamento ulterior daqueles clássicos, sobretudo no que se refere à concepção de história que está presente nos Cadernos, sem contudo padecer, segundo a própria autora, de qualquer automatismo ou mesmo determinismo, ainda que “progressista”.
Por fim, Izzo reafirma que a elaboração da filosofia da práxis por Gramsci não se efetua em ruptura com Marx, como insistiram por tantos anos e por distintas razões tanto Bobbio como Del Noce. A autora reconhece evidentemente que, depois de um percurso de assimilações e formulações filosóficas claramente tortuosas, cheias de sugestões neoidealistas e/ou mesmo gentilianas, o que predomina nos Cadernos é a autonomia intelectual que Gramsci assimila de Marx, e, por meio dela, se capacita para ler e pensar historicamente as condições necessárias de uma reforma intelectual e moral.
Em síntese, o que se observa nessa profunda revisão dos estudos e do próprio texto gramsciano empreendida por Izzo é a sua inclinação em conjugar os dois polos marcantes nas mais recentes interpretações a respeito do seu pensamento. Izzo explicita a imperiosidade de se compreender Gramsci tanto como um leitor produtivo de Marx, isto é, como um pensador atento às grandes transformações epocais que marcaram e marcam a sociedade contemporânea, notadamente a partir do estabelecimento do industrialismo, quanto como um leitor imaginativo de Maquiavel, do qual extrai, da mesma forma, o elemento histórico da política moderna em toda a sua dimensão de essencialidade, criatividade e abertura.
Democrazia e cosmopolitismo in Antonio Gramsci se insere numa perspectiva de leitura do pensador italiano que visa recuperar não somente a sua vitalidade, mas efetivamente sua atualidade. Baseado em investigações pontuais solidamente apresentadas e densamente documentadas, o que se registra aqui é um Gramsci liberto do “gramscismo” que marcou sua difusão e assimilação mundial, mas muito distante de um improvável reencontro com o “obreirismo” dos anos de combate, que marcou o “conselhismo” do início de sua trajetória como dirigente político. É, efetivamente, um Gramsci também distante do “altermundismo” como forma de expressão do antagonismo social, sem a mediação da política. O Gramsci que Izzo nos apresenta e sobre o qual nos convida a refletir é aquele que indica uma percepção própria da democracia, qual seja, a de “uma possibilidade inscrita na morfologia do moderno”; e este último concebido como um campo “aberto a formas de subjetividade não integralmente previsíveis e jamais definitivas”.
Alberto Aggio é professor de História da Unesp/Franca; bolsista sênior da Capes na Universidade Roma III.
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