Dimensão da civilização brasileira, a vida política se ativa à medida que seus protagonistas se diversifiquem na esfera pública. O primeiro Império teve durante sua “revolução de 1848” conservadora protestos e rebeliões sociais dissidentes da ordem social restritiva; o segundo foi agitado pelas controvérsias e mobilização eleitoral da Campanha Abolicionista (Nabuco, 1885). No começo do século XX, eclodiram vários movimentos, cada um a sua maneira expressando a diferenciação do país (greves operárias, pregação civilista, levantes da juventude militar, Semana da Arte Moderna, Coluna Prestes).
Em 1930, uma coligação de elites de oligarquias agrárias ligadas ao mercado interno tomaram o poder lideradas por Getúlio Vargas. Em aliança com setores médios de extração urbana, Getúlio iria dar curso à ampliação do Estado brasileiro (Vianna, 1976), abrindo-o aos agentes econômicos sua estrutura e serviços. Getúlio desencadeou um processo modernizador que levaria ao industrialismo ao tempo que modulou a área operário-sindical mediante revolução corporativa e interditara no mundo rural qualquer movimento vindo de baixo.
Vargas deparou-se com oposições, como a da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma articulação frentista que atuaria até 1935. A partir de 1943, ano do Congresso dos Escritores, emergiram formações em defesa da democratização do país, sendo exemplos a União Democrática Nacional (UDN) e os Comitês de Ação, criados por militantes comunistas como lugar de aproximação entre correntes partidárias, grupos sociais e entidades sindicais, como testemunha um deles, Manuel Batista Cavalcante (cf. Cavalcante, 1983).
Após a destituição de Vargas, o governo transitório do Presidente do Supremo Tribunal Federal José Linhares, no seu curto tempo (29 de outubro de 1945 a 1º de fevereiro de 1946) agiria visando estabilizar a redemocratização então posta num quadro instável (cf. Prado Jr., 1945 in Iumatti, 2007). “1945” também foi o ano de mobilizações em todo o país para eleger os constituintes da Carta de 1946. Eleito o general Dutra presidente da república no final de 1945, seu governo (1946-51) será autoritário. O retorno de Getúlio Vargas pelo voto, empossado na Presidência da República em janeiro de 1951), abre uma fase de dinamismo político. Entretanto, Getúlio governará sob dura oposição da UDN e viverá crises que o levariam ao suicídio no dia 25 de agosto de 1954.
Na sequência, crescem convergências em época de eleição presidencial, posse e governo heterogêneo de Juscelino Kubitschek. Começava ali propriamente a formação de uma frente única nacional e democrática, logo posta à prova durante o governo reformista do João Goulart. Ela será derrotada em 31 de março de 1964, quando os militares destituíram Jango e violaram a Constituição de 1946, pondo fim à breve tentativa de revolução burguesa no Brasil. O 31 de Março era mais do que um golpe de Estado, pois significara, como diziam os pecebistas, uma alteração profunda na “forma de dominação estatal” (cf. PCB, 1965). A partir de maio desse ano, o PCB passaria a usar a noção “regime de 1964” como parâmetro para pensar o caminho da resistência democrática (para os pecebistas, as liberdades eram o centro das atividades oposicionistas, ibid).
Instalado o novo regime no começo de abril de 1964, a seguir, em 1965, ele perderia as eleições para governador em Minas Gerais e na Guanabara, derrota que já sinalizava dificuldades para ir adiante. Esse ano seguinte ao 31 de Março era o ano em que correntes políticas se articulavam para criar o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Em 1967, surgiu a Frente Ampla com o objetivo de aproximar lideranças que haviam tido atitudes divergentes no contexto que levara ao 31 de Março -- Carlos Lacerda, Juscelino e Jango --, mas logo seria ilegalizada.
Nos anos 1966, 1967 e 1968, o regime viu diante de si oposição advinda de ambientes da cultura (intelectualidade, teatro, literatura, cinema, jornalistas etc.) e dos estudantes da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e da UNE que se mobilizariam até a passeata dos 100 mil, quando foi baixado o Ato Institucional n. 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968.
Com essa nova “revolução institucional” (era como Florestan se referia ao pós-AI-5, cf. Fernandes, 1975), os dirigentes do establisment mergulharam o país na fase mais negra da ditadura. Entretanto, por meio da política -- e de forma pacífica --, a resistência seguiria buscando os que discordavam (total ou parcialmente, a um ou mais aspectos) da orientação econômica do regime, e os que denunciavam a repressão do Estado policial do AI-5.
Nos anos de chumbo, não obstante os obstáculos, prosseguiria o trabalho de estruturação de uma frente democrática ao redor do MDB. Seu ponto alto foi a anticandidatura de Ulisses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho, da Associação Brasileira da Imprensa (ABI), às eleições indiretas para presidente da república em 1973. A peregrinação dos anticandidatos em defesa das liberdades se estenderá a muitos pontos do país. A frente única do MDB protagonizava uma verdadeira guerra de posições gramsciana, em condições sumamente adversas.
Começava o “degelo” da sociedade civil (Cardoso, 1973-74; 1975). De sua movimentação parecia, a algumas áreas intelectuais, estar emergindo um novo protagonista nacional. Subiam à surperficie outras ativações oposicionistas vindas, novamente da esfera cultural, do variado associativismo de classe média, urbano, operário-sindical (na região do ABC paulista) e sindical-rural.
Da anistia de 1979 em diante, a frente emedebista continuará induzindo dinamismo à vida política. Iria animar as ruas e o país com as “Diretas Já!”. Derrotado este movimento, uma larga concertação elegerá Tancredo-Sarney no Colégio Eleitoral em 1985, por fim derrotando o regime de 1964.
Em relação ao governo do Presidente Sarney, que teve aspectos positivos, como a remoção do entulho autoritário, e outros muito criticados, principalmente na economia e na área social, registramos apenas que mobilizações de diversos tipos pressionaram o seu governo heterogêneo. A Constituinte de 1987 espelhou na redação da Carta Cidadã as resistências da frente emedebista e de outros partidos e correntes de oposição, e foi extensa em matéria de direitos e combate às desigualdades, expressando as várias dimensões da vida nacional.
Este mesmo padrão de convergência para agir, com fins políticos dirigidos ao conjunto da sociedade, seguiria nas mobilizações político-partidárias, de ambientes transclassistas e dos “Caras pintadas” que exigiram o impeachment do presidente Collor de Melo, vivendo momento de vida politica ativa. Dai em diante, segue a história mais recente e próxima de todos nós.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não atenta para o sentido dessa longa trajetória, especialmente a do tempo contemporâneo, quando protagonistas convergentes desenvolveram atividades associadas à conquista, preservação, recuperação, alargamento e institucionalização constitucional das liberdades democráticas, ativando a vida política. Em momentos difíceis, como no tempo do MDB, partido sem economia, como disse um sociólogo, e longe das benesses governamentais, muito contribuiu para acrisolar entre nós uma cultura de valores democráticos, marcante em consideráves ambientes do seu tempo e viva até hoje.
Tampouco reconhece que a política e os partidos podem se ampliar cada vez mais sob Estado democrático de direito; aliás, terreno no qual o PT tornou-se socialmente forte e por demais competitivo nas eleições. Lula fez má escolha quando abandonou os referênciais característicos da sua base sociopartidária originária (interesses de trabalhadores e de variados contingentes organizáveis) e vem tentando impôr ao país, em nome do social, imaginário autorreferido à sua própria figura.
Não é questão menor o fato de o PT ser um partido sem teoria, como já foi observado. Sua ideia do “nós e “eles” tem sido fator eleitoral decisivo, notadamente na campanha da sua reeleição. As pregações do ex-presidente da ideia de divisão do país ao meio vem se naturalizando no seu campo de influência (popular, partidário, em entidades, inclusive entre intelectuais). A pretensão autojustificada de homongenizar a sociedade (representação exclusiva dos pobres, demonização das privatizações tucanas, menosprezo pela política e pelo Congresso, insistência no controle da imprensa) expressa relação ambígua com a democracia política e descompromisso com o Estado democrático de direito.
O regime de 1964, fazendo alusão apenas neste ponto do relacionamento com o mundo político, enganou-se quanto à eficácia da política. Tudo fez para esvaziar os partidos mediante cassações de mandato, suspensão de direitos políticos e restrições a suas movimentações e às competências do Congresso, reprimindo as correntes de esquerda. Dizia que iria limpar o país da corrupção, lançando esta segunda (depois da subversão) acusação persecutória às forças derrotadas em 1964. Os dirigentes do regime recusaram-se a ver que a vida política vinha se ativando seguindo a complexidade do país, e que ela reagira às tentativas de modelação da sociedade em diversos momentos, na Era Vargas por exemplo, e por certo estava resistindo ao seu autoritarismo. Não acreditavam que o mundo político, combalido no tempo pós-64, mais tarde viria a derrotá-los.
Agora na Era Lula, a cooptação assumiu nível desconhecido, incorporando, como já foi dito, tudo que era vivo ao governo. Os dois governos do presidente Lula aprofundaram o enfraquecimento da classe política, sendo o Mensalão exemplo maior da busca apolítica de controle dos partidos e do Congresso.
Convocadas pelos jovens, as passeatas de junho tiveram o seu ponto alto no dia 20, quando mobilizaram mais de um milhão e meio de manifestantes em muitas cidades, sendo o contingente mais volumoso o do Rio de Janeiro. Nesse dia se concretizava seu protesto de opinião pública com profundo impacto na vida nacional, lembrando a narrativa de O Manifesto Comunista quando diz que no curso transformador da revolução burguesa: “Tudo que é solido se desmancha no ar”. As passeatas de junho vieram mostrar o quão dissociada está a sociedade do seu Estado perfilado na Constituição de 1988. A Carta de Ulisses Guimarães não teve ainda implementados instrumentos de aproximação da democratização social à democracia política.
Logo após a passeata de 20 de junho, um dos jovens de São Paulo disse com clareza que, a partir dali, caberia à sociedade lutar, ela própria, para resolver os seus problemas, como se veria, à sequência daquele memorável dia, na presença de diversos setores sociais com demandas as mais variadas nas ruas e nas mídias.
As jornadas juvenis de junho também erosionaram aquilo que, após mais de 10 anos, parecia inamovível, quando as coisas, até então, estavam sob domínio do establisment governamental, inclusive já ganha a eleição presidencial de 2014 por antecipação. Tudo vinha se parecendo com uma sedimentação sólida da base sociopartidária e do stablisment.
De repente, os protagonistas do establisment viram-se ante outro curso, real, mas incompreensível para suas balizas ideológicas. Interpelados pelos acontecimentos de junho, eram levados pelos fatos a mover-se (como numa circunstância de revolução passiva, teorizada por Gramsci). Se fossem adeptos do Estado democrático de direito, essa era hora de fazer política como tal, olhando – conscientemente -- para a realidade, como a tradição da nossa esquerda clássica do tempo contemporâneo{1}.
Como se postam fora desse estilo de agir segundo previsão e perspectiva, revelaram-se impossibilitados de interpretar as passeatas de junho. Procuraram, por assim dizer, trocar os fatos e seguir com seu pragmatismo, até ali bastante exitoso. Ensaiaram conduzi-los, sabendo duvidosos os movimentos, operando no plano da sagacidade e dos apelos ao imaginário do social, entendidos por eles como política. A rigor, não fazem política (seus métodos dela se dissociam em não poucos pontos), agem com o olhar posto na sua reprodução continuada (gestos seus indicam que não aceitam a alternância no poder com tranquilidade).
Assim, a questão perigosa do momento subsequente ao dia 20 de junho e ainda hoje são as posturas do principal ator, o governo com seu enorme poder. A Presidente da República atua como se estivesse em campanha, recorrendo a meios que, desde o começo, introduzem mais instabilidade à situação. Abalada pelo dia 20, anunciou medidas emergenciais em um pacto de cima para baixo com os governadores e prefeitos das capitais. E lançou a ideia da Constituinte exclusiva para a reforma política sem prévio conhecimento dos executivos chamados a Brasília. Recuou da Constituinte exclusiva, proclamou um plebiscito, voltou à Constituinte e agora quer novamente o plebiscito, com essas operações buscando tornar-se defensora autorreferida do “ouvir o povo” e da consulta popular que estaria sendo recusada pelos partidos e pelo Congresso.
Não se sabe o que ainda virá desse campo que quer transformar a reforma política na questão mais importante do presente visando confinar a baixa representatividade nos partidos e no Congresso. Evitando ser parte do que ruiu naquele dia, a Presidência da República apresenta fórmulas a uma reforma política vocacionada a beneficiar os grandes partidos e às máquinas partidárias, a liquidar os pequenos partidos, especialmente os de esquerda, e a criar entraves para os novos partidos (em particular, a Rede da ex-senadora Marina da Silva). Nesta movimentação também busca conservar a hegemonia petista, até aqui sustentada na aliança principal com o PMDB. Se tem como certa sua reprodução em 2014, como a tinha pouco tempo atrás, agora se esquece do “DNA político” daquele partido antigamente chamado de MDB.
A mística personalista, a tática das alianças de conveniência e da campanha eleitoral como ação midiática estão trincados. Resta ao estabilisment navegar em águas turvas guiados por uma ideologia corporativizada, estranhamente diversa da originariamente calcada na defesa de interesses de trabalhadores e de outros contigentes sociais, de um tempo para cá transformada em um imaginário de base social dispersa.
De onde virá racionalidade que sobrepasse esse mar encapelado? E que, à sequência da eleição de 2014, encaminhe o país a viver uma fase de transição a um momento de pleno Estado democrático de direito sem veleidades messiânicas pairando sobre a vida nacional? A situação atual é boa, pois consideráveis contingentes das classes médias e grande parte da opinião pública, se já há algum tempo se ressentiam, em dias de junho abriram dissidência mais clara com o sistema da Era Lula.
Para surpresa dos partidários da antipolítica, essa racionalidade poderá vir do interior do mundo político ora interpelado pelos acontecimentos de junho.
De onde mais?
Com habitat no terreno do Estado democrático de direito, correntes desse mundo político reativado apresentam no Congresso soluções positivas aos reclamos das ruas e também estão em andamento iniciativas de partidos da oposição dirigidas à eleição presidencial, reações sujeitas à avaliação, agora em 2013 e sobremaneira em 2014. A vida política se amplia sob o Estado democrático de direito ao mesmo tempo que este se estende a toda a sociedade e a todos os territórios se temos um país com uma vida politica bem ativa.
O terreno, aqui neste país, tem sua maior riqueza não só no bom lugar nas economias mundiais, mas nas nossas diversidades socioculturais, das esferas estatais e de governos (federal, municipais e estaduais), da extensa malha de sociabilidade (ONGs, voluntariado e assim por diante) e das mídias. Estas diversidades indicam que este momento é momento da política compromissada com a democracia política e da aceitação do Estado democrático de direito sem reservas.
{1}O PCB, mesmo com debilidade teórica, desde 1958 buscou compreender a circunstância para orientar suas ações.
Referênciais bibliográficas
Cavalcante, Manuel Batista. Memórias, inéditas, Campina Grande, 1983.
Cardoso, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.
Fernandes, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975
Iumatti, Paulo T. Diários de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo: Brasiliense, 2007.
Nabuco, Joaquim. Discursos de Joaquim Nabuco. Recife – Eleições de 1884. Rio de Janeiro: Tipografia de G. Leuzin & Filhos, 1885.
PCB, Resolução política do Comitê Central do PCB, Rio de Janeiro, 1965.
Vianna, Luiz Werneck. Sindicato e liberalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
Raimundo Santos é professor da UFRRJ e autor do livro Agraristas políticos brasileiros. Brasília: Nead/Fundação Astrojildo Pereira, 2007.
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