A lente desembaçada do tempo mostra agora, claramente, que naqueles 19 meses da Constituinte de 1988 forjou-se o Brasil em que vivemos hoje: um país muito melhor, apesar de alguns pesares, do que o então existente. Mas ali, no calor da História, ninguém sabia ao certo aonde nos levaria o processo. Ninguém pisava nos astros distraído, como diz a música, ignorando a força da ruptura. Há alguns anos os movimentos pelo fim da ditadura pediam a "Constituinte livre, democrática e soberana". Mas havia incertezas sobre a perenidade e a aplicabilidade da Carta, que os críticos consideravam prolixa e utópica. Ontem, ela chegou aos 25 anos de promulgação. Hoje, se vivo fosse, seu principal artífice, Ulysses Guimarães, completaria 97 anos. Nos últimos dias, juristas, políticos e cientistas sociais avaliaram essa prova do tempo. Esta coluna traz um olhar da repórter daquele momento único, que tantos jornalistas se esforçaram para cobrir o melhor possível, como tarefa da democracia que chegava.
Os tempos eram outros também na imprensa — só mais tarde chamada de mídia — que, deixando para trás a censura e outras aflições, fixava também seu papel na nova ordem. Aquela era uma cobertura sem par, para a qual ninguém acumulara experiência. A Constituinte de 1946 acontecera 40 anos antes. No início dos trabalhos, os partidos, os Poderes e os meios de comunicação foram atropelados pela emergência de novos atores e movimentos, pelos lobbies do povo e das elites, buscando inscrever na nova Carta seus direitos e interesses. Ocupavam o Salão Verde e o corredor em que funcionavam as 24 subcomissões temáticas, os gabinetes de líderes e, quando as votações começaram, as galerias. Eram índios e empresários, sindicalistas e juízes, garimpeiros e ambientalistas, camponeses e militares, professores e latifundiários, num ambiente ora tenso ora alegre, e sempre enfumaçado, pois era permitido fumar até no plenário. Essa foi a parte amena da cobertura.
As marcas dos embates aparecem nas contradições de uma Constituição ora avançada, ora conservadora, ora omissa. Era outro tempo na política. As divergências não descambavam, como hoje, para o ódio e o sectarismo. Os trabalhos entravam pela noite e continuavam nos restaurantes, onde os adversários, na mesma mesa, discutiam o dia seguinte. Ao Piantela, reduto da oposição na ditadura, acorriam mais os da centro-esquerda, liderada por Mário Covas. Ao Florentino, iam mais os conservadores do Centrão, que tinham Luiz Eduardo Magalhães como estrela jovem e ascendente. O pequeno PT preferia o Feijão Verde e o Feitiço Mineiro. Essas fronteiras difusas não tisnavam a civilidade e o respeito à divergência.
Pouco se falou, agora, sobre como chegamos àquela festa. A Constituinte era o epílogo da transição iniciada pelo presidente Geisel, que, entre sístoles e diástoles, como dizia o general Golbery, chegara à Anistia. O povo entrou em cena na campanha das Diretas Já. Depois, o partido do regime rachou, permitindo a eleição indireta de Tancredo Neves. Sucedendo-o, José Sarney honrou o "Compromisso com a Nação", documento assinado por Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Aureliano Chaves e Marco Maciel, fiadores da Aliança Democrática entre o PMDB e os dissidentes do PDS — a Frente Liberal, futuro PFL, hoje DEM. Um de seus pontos, a convocação da Constituinte. A Emenda 26, nesse sentido, foi levada ao Congresso na manhã de 28 de junho de 1985, uma sexta-feira, pelo diligente e austero ministro-chefe do Gabinete Civil, José Hugo Castelo Branco.
Dos 559 constituintes eleitos em 1986, 298, ou 53%, eram do PMDB. Nunca mais um partido conquistaria a maioria das cadeiras na Câmara ou no Senado. Ao exacerbar a liberdade partidária, a Constituinte estimulou a proliferação de siglas. Com a dispersão de votos, nenhuma alcançará a maioria. Todos os governos posteriores recorreriam ao fisiologismo e às coalizões baseadas no pragmatismo, e não em afinidades. Não por desfaçatez, como pensa a rua, embora ela também exista, mas essencialmente por necessidade. As comissões foram compostas e teve início o trabalho vertiginoso de escrever a lei maior de um país que se reinventava. Ulysses, na Presidência, com o suporte técnico de Mozart Viana, passava dias inteiros na Mesa. "Vamos votar", era seu mantra.
Saldos e déficits
Num país que vinha da ditadura, era natural o foco inicial em sua negação. Muita energia foi gasta com o título dos Direitos e Garantias Individuais, que inovou ao adotar também o conceito de direitos coletivos. Capítulo mais surpreendente para a cobertura foi o da Ordem Social, assegurando o direito universal à educação, à saúde e à seguridade social, conceito novo, diverso de previdência. Para atendê-lo, os governos instituiriam as políticas públicas que mudaram a face do Brasil, reduzindo as marcas da miséria. Ainda no governo Sarney surgiu o Programa do Leite, trisavô do Bolsa-Família de Lula, filha da Bolsa-Escola surgida na era FHC. Ele previu o SUS, o acesso ao ensino fundamental e o salário-mínimo hoje garantido a deficientes e idosos sem renda.
Mas os constituintes que conseguiram reinventar o Brasil falharam, sobretudo, ao conservar intocado o velho sistema político-eleitoral, que hoje o Congresso não ousa reformar. Por longos meses, a Constituinte esteve dividida entre parlamentaristas e presidencialistas. Quando o presidencialismo venceu, não havia mais tempo nem consenso para outras mudanças. Adotou-se a eleição presidencial em dois turnos, um avanço. Mas ficou escrito que deputados federais, estaduais e vereadores continuariam sendo eleitos pelo sistema proporcional, adotado em 1946. Por que não pelo voto majoritário nos distritos ou pelo voto proporcional, mas em listas partidárias? Não se tratou disso, nem do financiamento das campanhas, nem da revogação dos mandatos pelo povo. A libertinagem partidária fez o resto. Um país que venceu a ditadura e que foi capaz de refundar-se por meio de processo tão democrático e aberto, há de superar também esse déficit. O quanto antes.
Fonte: Correio Braziliense
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