quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Quando a rua ameaça o poder do palácio

O fato político mais importante de 2013 foi, de longe, a série de manifestações de rua que irromperam por todo o País no mês de junho.

À margem de partidos e de organizações tradicionais, como sindicatos e grupos religiosos, elas deixaram à mostra um profundo estado de mal-estar da sociedade brasileira em relação aos serviços públicos, àforma como são empregados os recursos obtidos com impostos, à corrupção crônica, à violência policial e às entidades de representação política, entre tantas outras causas levadas à rua naqueles dias.

Centenas de artigos e vários livros já tentaram analisar as causas e os efeitos daquela movimentação de características praticamente inéditas, apesar das semelhanças com outros movimentos de massa na história recente do País, como a Passeata dos Cem Mil, contra a ditadura militar (1968); a campanha pelas Diretas Já (1984); e a ação dos caras- pintadas pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello (1992).

Passados seis meses, a pergunta que se faz é o que restou daquela agitação e das respostas que os governos e partidos políticos tentaram dar às pressas ao movimento.

Pode-se afirmar que a face política do País mudou? Que a juventude quebrou de forma definitiva um estado de passividade, passando a se envolver mais com a política? Que as entidades de representação política foram transformadas? Os partidos se tornaram mais permeáveis à voz das ruas?

O Estado convidou dois analistas políticos para darem suas opiniões. Para um deles o efeito do fenômeno de junho é permanente. Para outro, ele já comecou a desmoronar. Leia abaixo.

DEBATE
As manifestações desencadeadas em junho por todo o País mudaram a política brasileira?

Aldo Fomazieri *

SIM• Os surpreendentes protestos que se desencadearam a partir de junho mudaram o cenário político brasileiro e produziram enorme impacto sobre governos e partidos. A brusca queda na avaliação dos governantes e o desprestígio das instituições configurando uma crise de representatividade, obrigaram políticos e partidos a pôr sobre a mesa pautas esquecidas nas gavetas do poder.

A questão do transporte e da mobilidade urbana ganhou status de problema nacional, pressionando os governos.

Na sequência das manifestações se especificaram outras pautas relevantes: a saúde, a educação de qualidade, a moradia e a segurança pública e também os temas da reforma política e o combate à corrupção. No segundo semestre, se destacaram os protestos por moradia e contra as desocupações violentas e os conflitos em torno da violência das polícias.

Se olharmos para esse panorama que parece difuso, mas não é notaremos que o seu núcleo está relacionado ao problema da falta de garantia de direitos a serviços públicos de qualidade. Nesse sentido, é possível dizer que os protestos de junho inauguraram um novo ciclo da luta social no Brasil.

Desde a década de 1970, o Brasil vinha lutando por direitos trabalhistas, pela renda e pela inclusão social, além das pautas políticas como Diretas, Constituinte, impeachment etc. Com os ganhos em renda e direitos trabalhistas e com a inclusão social, que se consolidaram nos últimos 20 anos, ocorreu uma espécie de absorção institucional das demandas que vinham dos movimentos sociais e dos sindicatos. Isto foi notório a partir dos governos petistas.

Mas, tanto os governos petistas quanto os governos tucanos deixaram para trás um grave déficit na garantia efetiva de serviços públicos de qualidade. Deixaram como herança uma estrutura estatal enferrujada, cara e ineficiente.

O Congresso, por sua vez, acomodado no seu sistema de autoproteção, não foi capaz de fazer reformas essenciais à modernização do País, ao avanço da democracia e à elevação do padrão de justiça: reformas política, tributária, judiciária etc. Essa é a síntese da crise atual. Crise que não será resolvida apenas na institu-cionalidade dos governos e dos parlamentos. Ela comporta uma batalha pela redefinição de prioridades e alocação de recursos. A satisfação das demandas sociais só será atendida se os movimen tos permanecerem ativos nas ruas.

É professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Marco Antonio Teixeira:
NÃO. As manifestações de julho explicitaram a indignação dos brasileiros com o padrão de comportamento da classe política. O que inicialmente parecia ser apenas um protesto contra o aumento das tarifas do transporte coletivo acabou se convertendo numa profusão de pautas. As ruas foram tomadas por bandeiras com críticas à forma de fazer política, por maior qualidade dos serviços e das políticas públicas e em defesa do bom uso do dinheiro público.

Respostas atônitas surgiram como efeito dos protestos. Dilma Rousseff propôs pactos nacionais em defesa da responsabilidade fiscal, qualidade das políticas públicas e reforma política com plebiscito. Deputados e senadores retomaram a reforma política e projetos de combate à corrupção. Criou-se a expectativa de uma rápida mudança no comportamento dos políticos.

De forma inédita, os manifestantes prescindiram de interlocutores, de lideranças políticas e dos partidos, num contexto em que líderes, partidos e organizações públicas são os que, de fato, fazem mudanças institucionais. Isso dificultou a abertura de diálogo com os órgãos governamentais.

Passados seis meses, a pressão social perdeu seu ímpeto. O debate da reforma política pouco avançou e caberá ao STF decidir sobre a possível proibição de financiamento de campanha por empresas. Por mais que o voto secreto para a cassação de parlamentares deprecição de vetos presidenciais tenham caído, isso so foi possível após a repercussão da manutenção do mandato do deputado federal Natan Donadon.

A Assembleia Legislativa paulista silencia sobre o suposto Cartel dos Trens da CPTM. A utilização de bens públicos para fins privados voltou a frequentar o noticiário de forma generalizada. Tudo isso sem que a indignação pública fosse novamente despertada.

E inegável que os protestos de junho representaram um avanço ao reafirmar que a pressão social é um caminho importante para que autoridades públicas se sensibilizem com questões que inquietam a sociedade. Porém, uma reforma política profunda, a melhoria dos serviços e das políticas públicas e maior transparência sobre os recursos públicos são construções institucionais em que a sociedade e o mundo da política não podem prescindir de um processo organizado de interação e onde a pressão social desempenha papel indispensável.

* Professor do curso de administração pública da Fundação Getúlio Vargas / São Paulo

Fonte: O Estado de S. Paulo

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