• Com uma democracia que não tem mais nada de "imatura", o Brasil não comprou as teses sonháticas nas urnas e, agora, volta a prestigiar o que há de mais funcional num regime consolidado — a política
André Petry – Revista Veja
O leitor já deve ter ouvido alguém dizer que a democracia brasileira é "imatura" ou está em "processo de amadurecimento". Dificilmente, porém, ouviu alguém enumerar as razões de nossa democracia ser "imatura" ou "incipiente" — talvez porque não seja nem uma coisa nem outra. Comparado aos mais de dois séculos da democracia dos Estados Unidos, o regime democrático brasileiro, em vigor desde 1985, é um bebê recém-nascido de tão jovem, mas não existe especialista ou estudioso que defina a solidez de uma democracia com base na sua idade.
O cientista político austríaco Andreas Schedler, que atualmente dá aulas no México, diz que há inúmeros critérios para avaliar a consolidação democrática, mas três são fundamentais. Não será democrático o país em que as forças políticas fazem uso da violência para atingir seus objetivos. Ou desprezam o processo eleitoral: não participam de eleições, impedem que outros o façam, rejeitam o resultado das urnas ou fraudam o voto. O terceiro critério é a repetitiva violação de leis pela autoridade central. Por exemplo: um presidente que não cumpre lei aprovada no Congresso ou não respeita uma sentença judicial do Supremo Tribunal.
Como se sabe, o Brasil é aprovado nos três critérios — com honra. O americano Samuel Huntington, especialista em estudos internacionais falecido em 2008, aos 81 anos, dizia que o melhor teste de uma democracia era a dupla alternância, ou seja, duas mudanças do partido no poder sem rupturas. O Brasil passou nesse teste em 2003, quando o PSDB de Fernando Henrique entregou o poder ao PT de Lula, a terceira força política a chegar lá desde a eleição de Fernando Collor, em 1989. O critério é especialmente relevante em países com o instituto da reeleição. A dupla alternância de Huntington mostra se os partidos aprenderam que a democracia é caminho para ganhar — e também para perder — o poder.
Desde que Clístenes. cinco séculos antes da era cristã, aproveitou uma crise para ampliar o poder da assembleia de Atenas, conquistando a posição de pai da democracia ateniense, discute-se o que é, de fato, uma democracia. De lá para cá, o conceito evoluiu tanto que seria irreconhecível para um grego clássico. Tal como a concebemos hoje, a democracia só começou a germinar na guerra civil da Inglaterra (1642-1651), mas se materializou mesmo com a independência dos Estados Unidos, mais de um século depois. Ali, em terras americanas, nasceu o regime em que representantes eleitos pelo povo em seu nome exercem o poder — sistema que ganharia mais tarde o título de "democracia representativa".
O Brasil chegou tarde à festa democrática (1946), saiu cedo (1964) e demorou a voltar (1985). mas a evolução que experimentou desde a redemocratização é extraordinária. Nesta eleição, há vários indicadores de solidez. Um deles é a ausência de denúncias de fraude. Outro é a civilidade com que se comportou Marina Silva, do PSB, telefonando a Dilma Rousseff e Aécio Neves para cumprimentá-los pela vitória. O próprio esforço de Dilma para chegar ao segundo turno é sinal de vigor democrático. Ao contrário de regimes em que o incumbente concorre apenas para cumprir um ritual protocolar, a presidente precisou remar para chegar lá — e ainda arrisca perder. Mesmo a nova composição da Câmara dos Deputados, tão criticada pela presença de 28 partidos, informa que a diversidade brasileira não carece de representação. No carrossel partidário, há bancada de sem-terra, ruralistas, gays, agricultores, policiais, evangélicos, banqueiros...
A própria disputa entre PT e PSDB, em vez de ser um desconsolo bipartidário que se repete pela sexta rodada consecutiva, revela a maturidade democrática. São dois partidos de verdade, com presença nacional e identidade clara. Os candidatos, Dilma e Aécio, não são agentes políticos enigmáticos e representam visões de mundo bem definidas, concorde-se com elas ou não. Seja qual for o resultado do segundo turno, o país não vai cair em experimentalismos novidadeiros ou aventuras sonháticas. É segundo turno de país sério, entre o partido do governo e a principal legenda de oposição. No pano de fundo, é a volta da política.
Eleitores apaixonados talvez vejam diferenças abissais entre PT e PSDB, mas, com distanciamento, constata-se que parte das divergências decorre mais de intensidade do que de natureza. De boa-fé, não se dirá que o PSDB é o pelotão avançado dos ideais de direita ou que o PT é a culminância partidária do ideário de esquerda. Basta ver que fizeram governos sem radicalismos. Será tão injusto dizer que o PT não liga para a estabilidade macroeconômica quanto afirmar que o PSDB não está nem aí para os avanços sociais. O espectro ideológico em que os dois partidos se situam, ainda que com convicções distintas, é garantia de estabilidade democrática — a menos que se acredite em caracterizações histéricas e eleitoreiras, nas quais o PSDB é apresentado como a gazua do barbarismo capitalista e o PT é acusado de querer implantar a ditadura comunista no país.
A democracia brasileira patrocina alianças malucas? Paulo Maluf passeia de mãos dadas com o PCdoB. Temos políticos caricatos? Tiririca foi eleito com mais de 1 milhão de votos. Temos dinastias quadrilheiras? Examine-se a bancada de parentes na Câmara. Partidos quadrilheiros? Dos 32 existentes, quase metade vive atrás de favores do governo, do fundo partidário e da venda de espaço. Corrupção? Pode parecer inacreditável, mas é numa democracia como a nossa, e não na sua ausência, que se desossam os corruptos. Apesar desses defeitos, a consolidação democrática é uma página virada. De todos os critérios usados para avaliar uma democracia — institucionais, constitucionais, civis, políticos, jurídicos, culturais, econômicos, sociais, partidários, eleitorais, territoriais ou de representatividade —, o Brasil não tropeça em nenhum. Uma democracia assim atingiu a maioridade há tempos.
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