Entrevista com Marcus André Melo
• O cientista político diz que o eleitor mais desfavorecido sempre tende a votar a favor do governo e que a educação é fator essencial para aumentar a qualidade da política
Revista Veja
No primeiro turno das eleições, a presidente e candidata à reeleição Dilma Rousseff se manteve na liderança em todos os estados nordestinos, à exceção de Pernambuco. No Piauí, Dilma levou 70% dos votos, o seu melhor desempenho estadual. Segundo o cientista político pernambucano Marcus André Melo, contudo, não se pode definir a região como petista. Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com Ph.D. na Universidade de Sussex, na Inglaterra, e pós-doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Melo observa que, nas áreas economicamente desfavorecidas, não há uma fidelidade mecânica ao partido. O que existe é um comportamento de adesão a qualquer governo vigente, justamente devido à dependência que a população dos grotões do Brasil guarda em relação às políticas públicas. Qualunquismo é a expressão usada por Melo para descrever esse fenômeno. Isso significa que o eleitor não está fechado a novas propostas que, nas palavras do acadêmico, "maximizem o seu bem-estar".
Como explicar o comportamento do eleitor que, neste primeiro turno, levou Marina Silva a liderar as intenções de voto, e depois se voltou para Aécio Neves, permitindo que ele arrancasse e chegasse ao segundo turno?
O que marcou esta eleição foi mesmo a desconstrução da imagem de Marina Silva pelo marketing agressivo do PT. Esse marketing atingiu em cheio a parcela volúvel do eleitorado. São os indecisos ou neutros, sujeitos a mudar de voto. Depois da morte de Eduardo Campos, esse eleitorado se voltou para Marina. Quando os ataques petistas, que miravam sobretudo a credibilidade da ex-senadora, se avolumaram, o grupo se dividiu e migrou para Aécio e para a própria Dilma. Mas este é o fato curioso: o marketing do PT beneficiou sobretudo o candidato tucano, pois devolveu-lhe os eleitores que haviam aderido momentaneamente a Marina, por achar que estavam com ela as chances de vencer o PT. Observemos que, descontados os volúveis, o eleitorado de Marina se manteve basicamente o mesmo de 2010. Esse eleitorado esposa uma combinação de valores que os cientistas políticos têm chamado de "pós-materialistas". São jovens preocupados com o meio ambiente, com novos padrões de consumo e que estão em crise com a representação política. Causa perplexidade ao eleitor de Marina, por exemplo, o modelo de coalizão no Brasil, que permite que partidos de extrema direita e de extrema esquerda se aliem sem nenhum receio. É um eleitor que não vota olhando o próprio bolso. Ele está insatisfeito com os serviços públicos, o modelo político e sua representação. Ele personifica um mal-estar institucional muito evidente nos protestos do ano passado.
Que outros grupos se destacam no eleitorado brasileiro?
O grupo mais numeroso, não só no Brasil, é sempre o do "ignorante racional". O termo foi criado pelo economista americano Anthony Downs, no clássico Uma Teoria Econômica da Democracia. Ele descreve o eleitor médio que. por meio do voto, tenta antes de mais nada maximizar seu bem-estar. Seu voto é coerente e racional. Mas ele não entende os indicadores econômicos, não sabe como as políticas se relacionam umas com as outras e se desdobram a médio e longo prazos. Só sente que as coisas vão mal quando a crise atinge o emprego ou a renda. Esse eleitor olha ao seu redor e decide se quer ou não mudança de status quo. Não tem nada de ideologia. Ora, apesar de o mercado de trabalho não ser o mesmo de dois ou três anos atrás no Brasil, o desemprego ainda não aumentou. E, mesmo que a inflação esteja no teto da meta, não se pode dizer que ela tenha afetado de maneira contundente a renda. Isso explica, em parte, a expressiva votação de Dilma.
Qual é o horizonte de tempo no raciocínio político desse eleitor?
A educação, é muito mais que a informação, é fundamental para torná-lo mais consciente e ampliar o horizonte temporal de seu cálculo político. Sem educação, ele não consegue entender a sustentabilidade das políticas públicas e dispõe de menos subsídios para avaliar um governo. A educação melhora o debate público, que tem se mostrado tão deficiente no Brasil.
Existe um momento específico em que o eleitor que o senhor descreveu como "ignorante racional" começa a pensar a longo prazo?
Há estudos que fazem essa análise, mas nenhum consegue definir um padrão específico. O que acontece é um movimento contínuo de busca por melhoria de vida e bem-estar. Quando se está inserido em um processo de mobilidade social, é esperado que as pessoas queiram sempre mais. As expectativas aumentam. Quando determinado estrato da sociedade percebe que a capacidade de avançar estancou, ou não é suficiente para suprir suas ambições, há um movimento de insatisfação muito grande, como o que foi visto, de certa forma, nos protestos do ano passado. Isso ocorre quando um indivíduo se dá conta de que suas demandas vão além do que a velocidade da transformação da sociedade pode lhe proporcionar. Essa é a origem das grandes frustrações que, se não racionalizadas, explodem nas ruas, como aconteceu no ano passado nas maiores cidades brasileiras.
O voto do brasileiro é fundamentalmente pautado pela economia, então?
Em boa parte, sim. Em última instância, o eleitor sempre opta pela mudança ou manutenção de um governo olhando para a sua realidade e satisfação como cidadão. É uma percepção bem individualista tanto para o pobre quanto para o rico. Quando um eleitor se decide pela mudança, a credibilidade do novo candidato escolhido é o aspecto mais relevante. Isso explica por que a estratégia do PT foi desconstruir a credibilidade de Marina Silva, usando informações completamente irrelevantes para associá-la à imagem de mentirosa. Isso prejudicou a confiança na candidata e fez com que os eleitores neutros ou indecisos desistissem de votar nela.
Tanto Marina Silva quanto Aécio Neves usaram os episódios de corrupção na Petrobras para atacar Dilma. Até que ponto isso funcionou?
As denúncias afetaram mais o rótulo partidário, o PT. do que a própria Dilma Rousseff. Além disso, é preciso lembrar que nem Aécio nem Marina foram assim tão incisivos nos questionamentos a Dilma sobre a corrupção em seu governo. De forma alguma eles chegaram perto em intensidade e frequência dos ataques do PT no processo de desconstrução de Marina.
Por que razão, na opinião do senhor, Aécio e Marina falharam em jogar a corrupção do PT no colo de Dilma?
Primeiro, porque os candidatos de oposição tiveram muito pouco tempo de TV em comparação com o tempo dado à candidatura oficial. A informação que ficou gravada é que o PT está associado à corrupção, mas não Dilma. A redução das bancadas petistas no Senado e na Câmara pode ter sido resultado dessa associação do partido com a corrupção. Com tantos escândalos tendo o PT como centro, algo estaria muito errado com a nossa democracia se não tivesse havido uma repercussão disso nas urnas. Mas houve.
O bolso pesa mais na hora do voto do que a corrupção em que circunstâncias?
As pesquisas sobre corrupção mostram um cenário clássico de dependência do ambiente econômico. Um escândalo tem maior potencial de afetar o voto quando a situação econômica de um país não está boa. Se tudo estiver relativamente bem, a população estará menos propensa a se indignar e exigir a punição dos corruptos.
O mapa eleitoral brasileiro sugere um país dividido em regiões tucanas e regiões petistas. Os partidos são donos de certas áreas do país?
Quando se opõe o voto concentrado do PT no Nordeste e no Norte ao voto do PSDB no Sudeste, muitos analistas políticos se esquecem de algo fundamental, que eu chamo de qualunquismo. Essa expressão vem da palavra italiana qualunque, que significa "qualquer um", e está associada a certo cinismo muito comum no sul da Itália no século passado, que consiste no voto ao governante que está no poder, seja ele quem for. Não se pode dizer que há um fenômeno de adesão ao petismo nos grotões do Brasil. Não houve uma "marcha ao Nordeste" que fez com que, de repente, essas pessoas tivessem adquirido consciência de classe. O que se observa é que, nas áreas desfavorecidas e mais dependentes de políticas de inclusão, se vota em quem está no governo.
Qualquer governo?
Desde que o PT chegou ao poder, essas áreas dependem muito de transferência de renda. Por isso, seus prefeitos e deputados têm muitos incentivos para apoiar o mandatário da vez. E é isso que o eleitor vê. Sua fidelidade não é com o partido. Não à toa, esse mesmo eleitor elegeu Fernando Henrique Cardoso em 1994 e o reelegeu em 1998. Na reeleição, o único estado do Norte e Nordeste em que FHC perdeu foi o Ceará, que votou em Ciro Gomes. FHC ganhou porque estabilizou a economia e eliminou a inflação, o que tornou a vida do pobre muito melhor. Por isso, ele foi premiado nas urnas. É preciso entender melhor esse eleitor desfavorecido: eleitor opta pela mudança, a credibilidade do novo candidato é o ponto mais relevante. Isso explica por que a estratégia do PT foi dizer que Marina era mentirosa ele vai se aliar a quem o beneficiar. Isso acontece no interior do Piauí ou na periferia de São Paulo.
O que explica a clara preferência da maioria dos eleitores de São Paulo ao PSDB?
Meu próximo livro, que deve ser lançado no ano que vem pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, analisa justamente os dois valores primordiais na política atual: a inclusão e a estabilidade econômica. No Piauí, a preocupação é a inclusão. No Sudeste, há mais empresas, o setor privado é mais forte. É um cenário em que as questões macroeconômicas ganham mais peso, e o PSDB tem reputação mais sólida nesse aspecto. Não estou dizendo que todo eleitor do PSDB seja um exímio conhecedor de contas públicas. Mas a agenda de preocupações já é outra. Tenho muitas ressalvas ao pensamento que associa comportamento eleitoral a classe socioeconômica de forma mecânica. Isso simplifica o debate. Mas aqui é útil pensar na classe C, não só paulista, mas como um todo. Essa classe se beneficiou da expansão do crédito e do crescimento econômico de 2002 a 2009. Para ela, a questão fundamental são os serviços.
A classe C está satisfeita, então?
A classe C saiu do SUS e teve acesso a planos de saúde privados, mas, como a regulação desses planos é deficiente, está muito insatisfeita. Com a educação, acontece o mesmo. A classe C comprou carro, mas agora fica parada no trânsito. Agora, ela começa a captar os indícios de que a economia vai mal. Não é preciso saber o que é superávit primário para sentir os sinais de enfraquecimento da economia. Quem trabalha em construtoras, por exemplo, percebe que a quantidade de empreendimentos entregues em 2014 é menor que em outros anos. Em todas as empresas, os funcionários estão vendo que projetos são abortados ou adiados.
Como os eleitores que vivem agora um embate entre o cansaço com a atual gestão e o medo de perder suas conquistas podem resolver essa contradição?
A classe C não é o alvo primordial das políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, mas se beneficiou de cotas na universidade, crédito e outras políticas de inclusão. Ela tem mais informação que aquele eleitor dos grotões do Brasil e sabe que a inflação está alta e que as coisas não estão bem. Isso a faz oscilar entre o governo e a oposição. O PSDB lucra com isso, porque tem credibilidade quando se trata de estabilidade econômica.
Existe uma escolha certa para esse eleitor?
É complicado. Mas poderia ser mais simples se os partidos tivessem um papel diferente na sociedade. Em muitos países europeus, os partidos políticos fazem a intermediação entre os formadores de opinião e a população. Há uma identificação partidária forte na Inglaterra, na França e na Alemanha. Os partidos funcionam como atalhos cognitivos para o "ignorante racional". Eles ajudam a educar. No Brasil, essa identificação é mínima. Há, inclusive, cada vez mais aversão a partidos. Não há debate de políticas, mas acusações e uso deslavado de mentiras, como as usadas pelo PT nos ataques a Marina.
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