- Valor Econômico
Rede social não confirmou papel na discussão de ideias
No fim de 2010, quando uma série de revoltas no norte da África e no Oriente Médio começou a esboçar o que ficaria conhecido como Primavera Árabe, as redes sociais tiveram seu papel alçado a uma condição que nunca haviam alcançado antes ou, pelo menos, com a mesma intensidade - a de ferramentas essenciais para a disseminação de ideias e a organização de manifestações populares.
Nos meses seguintes, reportagens, estudos e pesquisas tentaram explicar a influência conquistada pelas redes sociais, sob a percepção messiânica de que, ao permitir a manifestação direta da população, esses sites estavam destinados a mudar significativamente o exercício da cidadania. O argumento que se repetia à época é que nenhuma rede de TV, jornal ou revista - por mais experientes que fossem os correspondentes de guerra - seria capaz de captar tantos registros representativos quanto os próprios habitantes, munidos de celular e acesso à internet.
Agora, quando as "deepfakes" desafiam até o que os olhos veem, com a manipulação imperceptível de fotos e vídeos, a vocação dos sites de relacionamento social não parece assim tão inequívoca.
É inquestionável a relevância desses serviços em fazer registros instantâneos da realidade. O relato de como o vendedor de verduras Mohamed Bouazizi se autoimolou para chamar a atenção sobre o descaso do governo da Tunísia criou tanta comoção que se tornou o "marco zero" da Primavera Árabe.
É o mesmo tipo de indignação que provocam vídeos de policiais "plantando" armas ao lado de inocentes mortos na periferia das grandes cidades. Ou a gravação do segurança que asfixiou um cliente até a morte em um shopping. Ou a daquele outro que espancou um cachorro na porta de um supermercado. Não dá para acompanhar esses relatos, passados no Brasil recente, sem ficar indignado.
A questão é se essas histórias, fartamente disseminadas pelas redes sociais, são capazes de provocar algum tipo de reflexão mais profunda na sociedade ou de reação organizada para resolver questões que atingem a todos.
Até episódios de altruísmo podem esconder uma armadilha. Dias atrás, o jornal "The New York Times" publicou artigo no qual aborda o risco de que casos positivos de grande repercussão na rede social ajudem a provocar uma certa desmobilização social.
Na reportagem, intitulada "Quando 'boas histórias' ocorrem por más razões", a jornalista Jacey Fortin relata o caso de uma mulher do Missouri que não conseguia licença-maternidade. Então, seus colegas doaram a ela seus dias de férias. Há também o relato de um rapaz do Alabama que precisava percorrer uma longa distância para chegar ao trabalho, o que levou seu chefe a lhe dar um carro.
O perigo, observa a jornalista, é que "atos individuais de bondade não resolvem problemas sistêmicos". Ou seja, ao ouvir histórias com finais felizes, baseados em atos individuais, as pessoas acabam não percebendo que esses problemas são decorrentes de deficiências de políticas públicas, cuja solução não deveria depender da caridade de uma pessoa ou de um grupo delas, por mais inspirador que isso seja.
O artigo recebeu comentários mistos. Um leitor disse que, em meio a tantas más notícias, ouvir histórias edificantes era um alívio, independentemente de qualquer coisa. Outro escreveu que para cada caso em que pessoas em dificuldade foram socorridas há inúmeros outros, não noticiados, em que elas continuam a sofrer. Ambos têm sua parcela de razão.
Que as redes sociais são capazes de facilitar a mobilização popular ou de grupos específicos, não há dúvidas. Os exemplos vão muito além da Primavera Árabe. A greve dos caminhoneiros de 2018, que sacudiu o país no governo de Michel Temer, foi organizada em grande parte pelo WhatsApp.
O que não se concretizou, em nenhum lugar, foi a expectativa de que esse tipo de uso da rede social seria mais frequente, o que a tornaria mais determinante na maneira como a sociedade se organiza.
Em vez disso, esses sites parecem seguir uma rota mais superficial e exibicionista. A exposição excessiva das pessoas na internet provocou até o surgimento de um novo mal, chamado de "Fear of the Missing Out" ou síndrome do Instagram, em referência ao aplicativo de compartilhamento de imagens. Basicamente, trata-se da ansiedade que as pessoas sentem ao ver os outros se divertindo mais que elas. Como no Instagram muitos usuários pintam mundos perfeitos, há cada vez mais ansiedade por aí.
A escalada é tão rápida que beira a paranoia. Cirurgiões plásticos têm relatado casos em que pacientes chegam ao consultório pedindo para ficar parecidos com imagens retiradas da mídia social. Mesmo quando o médico explica que o resultado não é natural e só foi obtido com o uso de filtros disponíveis em aplicativos, a pessoa insiste em obter aquela aparência. A tendência foi batizada de "Snapchat Dysmorphia" - a deformidade do Snapchat, a rede social de troca de mensagens instantâneas.
Não é o único risco de deformação a que a mídia social está sujeita. A expressão "fake news" existe há 125 anos segundo o dicionário Merriam-Webster, mas o fenômeno das notícias falsas só ganhou destaque em 2016, na eleição presidencial americana que marcaria a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton. Ninguém falava de "fake news" no início da década, quando a Primavera Árabe eclodiu e havia uma certa inocência sobre o uso político da rede social.
As notícias falsas mostram como forças partidárias ou ideológicas, dos mais diferentes matizes, aprenderam a manobrar as redes sociais para disseminar opiniões e mentiras como se fossem fatos, com o objetivo de conquistar a consciência das pessoas.
Esse quadro é agravado pelo fato de que muitos usuários consideram seus perfis nas redes um local privado, no qual só admitem opiniões semelhantes, em vez de ver neles um espaço público digital, propício ao debate. É uma pena que, de aclamada caixa de ressonância como era considerada a princípio, a rede social tenha se reduzido, na maioria das vezes, a um espelho de Narciso.
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