Dados do projeto World Inequality Database mostram que o Chile é o segundo mais desigual da região, atrás apenas do Brasil
Por Marsílea Gombata - Valor Econômico
SÃO PAULO - No último mês, o Chile viu a sua imagem de prosperidade, desenvolvimento e estabilidade ruir rapidamente frente às maiores manifestações contra o governo desde o fim da ditadura militar em 1990. Na esteira de outros distúrbios na região e ao redor do mundo, os protestos desvendaram um Chile fortemente dividido pelo ressentimento com a desigualdade histórica - ofuscada nas últimas décadas pela significativa evolução macroeconômica do país em relação aos seus pares latino-americanos.
Os distúrbios começaram em 18 de outubro em reação à alta de 3% na tarifa de metrô - anulada dias depois. O movimento rapidamente se espalhou pelo país, assim como a violência, com relatos de saques. Os confrontos com as forças de segurança deixaram mais de 20 mortos e levaram ao cancelamento de eventos internacionais que serviriam de vitrine do governo liberal de Sebastián Piñera.
A fúria nas ruas surpreendeu os observadores externos, considerando o sucesso macroeconômico do país. Pelo ranking de desigualdade do Banco Mundial, o Chile é o 10º país mais desigual das Américas, segundo o coeficiente Gini. Porém, dados do projeto World Inequality Database colocam o Chile como o segundo mais desigual da região, atrás apenas do Brasil.
O projeto, que tem como um dos criadores o economista francês Thomas Piketty - autor de “O Capital no Século 21” e “Capital e Ideologia” -, mostra que a parcela do 1% mais rico da população no Chile concentra 23,7% da renda do país hoje. No Brasil esse percentual chega a 28,3%, na Colômbia, a 20,4% e nos Estados Unidos, 20,2%. Quando são analisados os 10% mais ricos, a concentração chega a 54,9% no Chile e 55,6% no Brasil.
Uma consequência direta da desigualdade de renda é a forma como ela se reflete em outros setores da vida cotidiana, afirma o sociólogo Tomas Undurraga, da Universidade Alberto Hurtado. “Quando há grande concentração de renda, a desigualdade econômica pode se traduzir em desigualdade de poder, ou seja, algumas vozes passam a ser mais escutadas do que outras”, diz. “Quando isso acontece, as pessoas sentem que o sistema econômico e o político não funcionam mais para a maioria.”
É o que parece estar acontecendo no Chile. Após intensa pressão nas ruas, governo e Congresso concordaram em realizar um plebiscito para dar início à reforma da Constituição. Na consulta, prevista para abril, os chilenos dirão se querem nova Carta que substitua a de 1980 e se preferem que ela seja redigida por uma Convenção Mista Constitucional (formada por parlamentares em exercício e membros eleitos) ou uma Convenção Constitucional (composta por integrantes eleitos para isso).
Em recente entrevista ao Valor, o ministro das Relações Exteriores do Chile, Teodoro Ribera, reconheceu a necessidade de se adotar elementos do Estado de bem-estar social europeu, com melhores serviços de educação, saúde e Previdência em resposta às demandas. Falou ainda da incorporação de elementos de taxação progressiva.
“A desigualdade econômica no Chile tem relação com outras esferas e se expressa em desigualdade de tratamento, de percepção da autonomia e de capacidade de ação política”, diz Undurraga. “Ou seja, essa desigualdade de renda tem correlação com a percepção que 80% dos chilenos têm de pouca capacidade de ingerência nas decisões que definem sua vida.” Isso se reflete no pouco interesse e no baixo comparecimento às urnas - 49% na eleição de 2017.
No Chile, afirma Undurraga, convivem duas realidades. Uma é a das cifras macroeconômicas, que refletem um país com muitos investimentos e lucrativo para grandes empresas. A outra, um país de trabalhadores e cidadãos invisíveis. “O Chile tem políticas focalizadas, mas não universais. Isso significa que grande parte dessa classe média empobrecida tem muito pouco ou nenhum apoio do Estado. Em saúde e educação, existem serviços que funcionam bem, mas só aos 15%, 20% que têm acesso.”
Segundo Gloria de la Fuente, diretora executiva do centro de estudos Chile 21, 50% das famílias recebem menos de 500 mil pesos por mês (US$ 635). “Isso significa que a pessoa dessa família terá educação de má qualidade porque será pública e, se tiver alguma doença grave não coberta pela rede pública, terá de vender sua casa ou se endividar”, diz. “Quando olhamos as aposentadorias, vemos uma Previdência que é uma promessa não cumprida, com 80% recebendo aposentadorias abaixo do salário mínimo. Todo esse cenário escancara a desigualdade que temos.”
Defensores do modelo chileno dizem que nas últimas décadas o foco foi crescer e reduzir a pobreza mais do que diminuir a desigualdade. “Durante a maior parte do regime militar e de certo modo até agora, a política econômica privilegiou o crescimento em relação a medidas redistributivas como a maneira mais eficaz para reduzir a pobreza. E nisso o sistema implementado teve êxito: a pobreza foi reduzida de 50% em 1980 para 8% hoje”, diz Rolf Lüders, ex-ministro da Fazenda de Augusto Pinochet.
“Mas se esperava que, com o crescimento, a desigualdade diminuiria, e isso demorou. O índice de Gini começou a cair no começo deste século, de 0,56 para 0,46 hoje. Foi uma redução importante, mas não suficiente para evitar a sensação de injustiça.”
De acordo com a pesquisa “Desiguais - Origens, mudanças e desafios da lacuna social no Chile”, publicada em 2017 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), um elemento essencial para se entender o fenômeno da desigualdade no Chile é o sentimento de injustiça que produz. Isso está concentrado na desigualdade de acesso à saúde e educação, e a percepção de que algumas pessoas são tratadas com mais respeito e dignidade do que outras. Em uma escala de 1 a 10, onde 10 indica ‘muito desconforto’, cerca de 67% da população declaram que a desigualdade nessas três áreas - saúde, educação e tratamento respeitoso - incomoda muito, entre 9 e 10, diz o estudo.
A pesquisa mostra ainda que a maioria dos chilenos crê que as ideias da elite política estão mais próximas das da elite econômica do que das do público em geral. Para 82,2% dos consultados é verdadeira a frase “as autoridades agem principalmente pensando nos interesses e opiniões dos grandes empresários”. Essa percepção passa por todas as classes sociais.
O estudo do Pnud constatou “que, de uma extensa lista de instituições [que incluem mídia, Forças Armadas, Igreja Católica e movimentos sociais], 75% dos entrevistados consideraram que os empresários têm muita influência nas decisões do Congresso”. O empresariado aparece no imaginário popular como o ator mais influente nas decisões do Poder Legislativo.
Para Nicolás Grau, da Universidade do Chile, parte da desigualdade pode ser atribuída a um regime que beneficia mais as grandes empresas. “Há um pequeno grupo de empresas com alta renda, conectadas à economia global através das exportações, mas a maioria é de baixa renda”, diz. “Essas são voltadas para o mercado interno, com baixa produtividade e pagando baixos salários.” Esse cenário, diz, contribui para a desigualdade.
“O Chile, de certo modo, é símbolo da ideologia neoliberal”, diz Ignacio Flores, economista do Instituto Europeu de Administração de Empresas (Insead), em Paris, e coordenador no WID. “E o que está acontecendo hoje não deixa de ser um alerta aos países ao redor que buscam implementar as políticas que foram aplicadas no Chile.”
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