- O Estado de S. Paulo / Aliás
'Seja Como For' refaz o percurso intelectual de meio século de produção acadêmica
Seja como For (Editora 34), livro de artigos, entrevistas e documentos, homenageia os 50 anos da trajetória intelectual do crítico literário e professor Roberto Schwarz, cujas obras sobre Machado de Assis – Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro (1977) e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1990) – contribuíram sobremaneira para a fortuna crítica do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899).
Roberto Schwarz estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e fez suas pesquisas de mestrado, na Universidade de Yale (EUA), no início da década de 1960, e de doutorado, na Universidade de Paris III, na primeira metade da década seguinte. Entre 1963 e 1968, foi professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, em meio ao departamento então recém-fundado pelo professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017), intelectual que exerceu fundamental influência sobre Schwarz. Com o recrudescimento da ditadura no Brasil a partir da implementação do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), em fins de 1968, o marxista Roberto Schwarz decide sair do país.
Antes de dar início a seu doutoramento na França, Schwarz estabelecera uma breve troca de cartas – documentada em Seja como for – com o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), autor ligado à Escola de Frankfurt, cujos estudos seminais sobre a imbricação entre estética e história, forma literária e processo social seriam decisivos para a composição das obras de Schwarz sobre Machado de Assis. No prefácio de Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, Schwarz revela que seu trabalho “seria impensável sem a tradição – contraditória [isto é, dialético-materialista] – formada por Lukács (1885-1971) [filósofo e crítico literário húngaro], Benjamin (1892-1940) [ensaísta, filósofo, crítico literário e tradutor alemão], Brecht (1898-1956) [poeta e dramaturgo alemão] e Adorno, e sem a inspiração de Marx (1818-1883)”. Quando de seu retorno ao Brasil, Schwarz lecionou Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 1978 e 1992.
Quiçá uma das contribuições mais instigantes de Roberto Schwarz para apreendermos tanto as contradições histórico-sociais brasileiras que Machado de Assis tão bem soube desvelar quanto as tendências e tensões do Brasil contemporâneo seja o conceito de “ideias fora de lugar”. Para ilustrarmos tal dimensão irônica e trágica do processo de (de)formação do Brasil, pensemos, por exemplo, na leitura schwarziana da trajetória – ou, por outra, das peripécias – do (anti-)herói Brás Cubas, o defunto-autor que nos legou suas Memórias póstumas.
Filho dileto da elite brasileira do século 19, o eloquente Brás Cubas, político já empossado, faz discursos em prol do caráter emancipatório do liberalismo político e econômico, a coqueluche ideológica então em voga na Europa. Enquanto tece odes à ética do trabalho e ao progresso trazido pela indústria, o bon vivant Brás Cubas, que jamais ganhara o pão com o suor do próprio rosto, vai se lembrando, com alívio e cumplicidade, dos escravos de sua casa grande, sobre cujas costas vergadas o proprietário se senta enquanto janta.
Para além do descompasso hipócrita entre a defesa retórica da liberdade e a manutenção odiosa da escravidão, a ironia de Machado de Assis, secundada pelas análises de Schwarz, nos permite desvelar progresso e atraso como polos historicamente imbricados da contraditória modernização à brasileira, que, antes de abraçar, muito tardiamente, o trabalho assalariado, logrou aprovar indenizações aos proprietários de escravos, que, com a Lei Áurea (1888), viram-se desfalcados de suas “mercadorias humanas”. Eis a brutalidade das ideias fora de lugar.
Os 50 anos da trajetória intelectual de Roberto Schwarz nos fazem discernir, entre alguns (neo)liberais brasileiros contemporâneos, traços de Brás Cubas. Afinal, há quem veja possibilidades de conciliação entre a democracia liberal e a nostalgia mórbida dos porões da ditadura militar.
Ademais, não poucos defensores do Estado mínimo sequer se chocam quando portentosas empresas recorrem a isenções fiscais e (re)financiamentos junto a bancos públicos, com juros convenientemente complacentes e prazos de pagamento a perder de vista. Se o Estado mínimo vale, facultativamente, para os de cima, o Estado máximo e policial vale, coercitivamente, para a legião de descendentes dos espoliados por Brás Cubas, os sobreviventes da periferia do nosso capitalismo.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor, é doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University (EUA). É autor de, entre outros, Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019)
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