segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

O que a mídia pensa – Editoriais

Bomba-relógio fiscal – Editorial | O Estado de S. Paulo

A relutância do governo em negociar suas propostas no Congresso – ou seja, em fazer política – está pondo a máquina pública na rota do colapso. O crescimento da dívida pública funciona como uma bomba-relógio que só pode ser desmontada por amplas reformas de Estado. O desmonte começou com a reforma da Previdência e só será consumado com outras, como a administrativa e a tributária, mas enquanto não for, o País precisa de mecanismos emergenciais para desacelerar a contagem regressiva. A isso serve a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, alcunhada não à toa “Emergencial”. Encaminhada ao Senado em novembro, ela está há quase dois meses atolada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Duas disposições constitucionais garantem a sustentabilidade fiscal do poder público: o Teto de Gastos, pelo qual a máquina pública não pode gastar mais do que um determinado valor, e a Regra de Ouro, pela qual não se pode endividar para pagar despesas correntes. Ocorre que, devido às disfunções da máquina pública, os gastos obrigatórios com salários e aposentadorias não param de crescer, comprimindo os gastos discricionários com infraestrutura, inovação e outros. Para dar uma ideia, em 2014 os investimentos públicos corresponderam a 1,4% do PIB. Em 2019, foram inferiores a 0,5%. Ou seja, na rota em que está, a única função do Estado será cobrir os custos com o funcionalismo. Como esses custos só crescem, será preciso arrecadar cada vez mais impostos ou se endividar cada vez mais.

A PEC Emergencial estabelece mecanismos de ajuste fiscal sempre que as despesas superarem 95% das receitas. Esses mecanismos impedem a criação de novas despesas obrigatórias através, por exemplo, do bloqueio de promoções de carreira, concursos e criação de cargos, ou da redução da carga horária e do salário dos servidores.

Na abertura dos trabalhos legislativos, o presidente Jair Bolsonaro disse esperar que a PEC Emergencial e as outras propostas que integram o Plano Mais Brasil sejam aprovadas rapidamente pelo Congresso. A rigor, o Planalto não tem feito mais do que isso: esperar. Mas não é isso que a população espera de seu presidente. Enquanto ele espera, as despesas de 13 Estados já superam 95% das receitas. Logo eles serão acompanhados por outros. A contagem regressiva não só avança, como se acelera.Quem não está esperando são as corporações do funcionalismo, que têm as bancadas mais sólidas no Congresso. O seu poder de mobilização pode ser verificado na própria consulta pública lançada pelo Senado, que indica apenas 1,8 mil votos favoráveis à PEC contra quase 100 mil contrários. A oposição, por sua vez, consolida a narrativa da inconstitucionalidade da PEC.

As vozes mais sensatas e preocupadas com a coisa pública além de seus interesses partidários e corporativos têm cobrado o protagonismo do governo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, talvez o principal responsável pela aprovação da reforma da Previdência, advertiu recentemente que a condução das reformas não pode ser jogada “nas costas do Parlamento”. Até agora essa tem sido a principal “estratégia” do governo com o Congresso: inundá-lo com propostas e depois abandoná-las à sua própria sorte. Foi assim na reforma da Previdência. Ocorre que, neste último caso, os efeitos só se farão sentir a médio e longo prazos. Sem a PEC Emergencial, contudo, o Teto será rompido já este ano pela União e por Estados e municípios em todo o País. Como as dívidas dos entes subnacionais são garantidas pela União, estas bombas estourarão na cara do governo. Como sabem os congressistas, à medida que o tempo passa, a emergência só se torna mais emergencial. “Velha” ou “nova”, a política real, na hora do aperto, saberá cobrar o seu preço.

Em outras palavras, a PEC deveria ser aprovada o quanto antes pelo bem da Nação. Mas o governo Bolsonaro deveria se dar conta de que precisa dela para o bem de seu próprio projeto de poder. Não é o melhor motivo, mas se servir para aprovar a PEC, será suficiente.

Mais uma do MEC – Editorial | O Estado de S. Paulo

Na mesma semana em que a imprensa mundial divulgou que universidades e centros de pesquisa do mundo inteiro estão promovendo encontros científicos para tentar coibir o avanço da epidemia de coronavírus, os jornais brasileiros publicaram a Portaria n.° 2.227, baixada pelo Ministério da Educação (MEC) no último dia de 2019. Num de seus artigos, ela estabelece que os órgãos vinculados à pasta – inclusive as universidades federais e os institutos técnicos – só podem autorizar, “no máximo, a presença de dois representantes em eventos no País e um representante para eventos no exterior”, mesmo que os gastos com viagens e diárias não sejam pagos pela União.

Os dois fatos estão vinculados e dão a medida da incompetência administrativa e da insensibilidade do MEC na gestão de um governo que já bloqueou verbas do ensino superior público e acusou as universidades federais de ser “locais de balbúrdia e doutrinação”. Na prática, a portaria inviabiliza reuniões da mais alta relevância da comunidade acadêmica, onde cientistas discutem com colegas o estágio de suas pesquisas, descobertas preliminares e dados coletados ou que aguardam publicação. Também dificulta encontros científicos financiados por organismos multilaterais e por agências internacionais de fomento à pesquisa.

Em resposta a mais essa iniciativa desastrada do MEC, cerca de 40 entidades científicas lideradas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) divulgaram um documento, solicitando ao ministro Abraham Weintraub a revogação de alguns artigos da portaria, especialmente os que dispõem sobre procedimentos para afastamento de professores, cientistas e pesquisadores.

O documento lembra que a portaria prejudica a internacionalização e o protagonismo da ciência e da tecnologia nacionais. A portaria também impede a realização de seminários, congressos, simpósios e reuniões anuais de sociedades científicas, dificultando a troca de experiências entre jovens pesquisadores. E ainda ameaça a realização de missões bilaterais e colaborações internacionais, que foi um dos instrumentos utilizados nas últimas décadas por países asiáticos – como Coreia do Sul – para colocar suas instituições de ensino e pesquisa nas primeiras colocações dos rankings de qualidade.

“As restrições à mobilidade contribuirão para o empobrecimento da formação do jovem cientista brasileiro, fato que não ocorre em nenhum outro país que preze pela ciência e pela tecnologia. Devido ao crescimento exponencial do conhecimento científico, é comum ter, em uma mesma unidade ou grupo de pesquisa, cientistas que, embora reunidos em torno de um tema, trabalham em projetos e subáreas distintas. Por isso mesmo, é frequente, em reuniões nacionais e internacionais, a participação de membros de uma mesma unidade ou grupo de pesquisa”, diz o documento.

Segundo o presidente da ABC, o físico Luiz Davidovich, a portaria foi escrita por quem não entende de ensino e pesquisa, que é o caso de Weintraub. Dirigentes de outras entidades vão além. Segundo eles, os problemas da portaria não foram causado só por ignorância e incompetência, mas, também, por preconceito ideológico, tal a aversão de vários ministros do governo Bolsonaro à globalização. Esse argumento ganhou força depois que, procurada para comentar a reivindicação das sociedades científicas, a equipe de Weintraub afirmou que a resposta seria dada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), cujo novo presidente é defensor da teoria criacionista, que se opõe à teoria da evolução das espécies, que há muito tempo foi endossada pela ciência.

A escalada de descalabros do MEC resulta do erro que o governo Bolsonaro cometeu ao privilegiar critérios mais religiosos do que técnicos, numa área tão estratégica para o futuro do País, como a educação e a ciência.

N. da R. – A revogação da portaria evita seus efeitos, mas não apaga sua inspiração.

A captura das agências – Editorial | O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro pretende preencher 22 diretorias de 10 agências reguladoras que estão vagas com funcionários alinhados à sua agenda política, como informa o Estado. Bolsonaro afirma que está fazendo nomeações técnicas, mas há informações segundo as quais os candidatos às vagas não podem ser “esquerdistas” ou terem ligações com o PT.
Não é de hoje que os interesses políticos contaminam o preenchimento de diretorias das agências. A prática de trocar essas vagas por apoio político no Congresso era comum nos governos do PT – e o resultado disso foi a indicação de diretores sem a menor qualificação para o cargo, afetando diretamente o desempenho das agências.

Seja por fisiologismo, no caso petista, seja em razão de depuração ideológica, como pretende Bolsonaro, a nomeação de diretores das agências sem que se priorizem critérios técnicos desmoraliza esses órgãos tão importantes. E talvez seja esse o objetivo, já que tanto Lula da Silva e Dilma Rousseff, a seu tempo, como Jair Bolsonaro disseram considerar as agências um estorvo – para o atual presidente da República, “as agências travam os Ministérios” e constituem “um poder paralelo”.

As agências foram criadas nos anos 1990 como resposta à necessidade de prover a regulação de serviços públicos cuja administração estava sendo concedida ou vendida à iniciativa privada. A ideia era definir direitos e obrigações do Estado e do setor privado nos contratos de concessão ou equivalentes, sempre tendo o interesse público como norte.

Para isso, as agências têm de ser autônomas, para evitar pressões políticas. A elas cabe estabelecer normas para regular a exploração dos serviços, fomentar a competição e assegurar que os consumidores sejam atendidos de forma adequada, sem interrupção e por preço justo. É preciso garantir que essas normas não mudem ao sabor de interesses políticos ou de qualquer outra natureza, pois disso depende a segurança jurídica.

Um mercado de serviços públicos bem administrado, com previsibilidade regulatória e protegido de influências de caráter privado, é atraente para os investidores, sendo fundamental para o desenvolvimento sustentável do País.

O problema é que as agências quase sempre estiveram à mercê de pressões políticas e empresariais e padeceram, ao longo de décadas, de uma legislação confusa e pulverizada. Foi somente no ano passado que o Congresso aprovou um marco jurídico para as agências, a Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei 13.848/19), com normas claras de governança comum a todos esses órgãos, independentemente da área de atuação. O marco concede autonomia financeira, administrativa, funcional e decisória às agências. Além disso, determina que os dirigentes tenham comprovada experiência profissional na área – para evitar casos como a nomeação de um ex-diretor de time de basquete para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), feita pelo então presidente Lula da Silva para agradar ao MDB.

A ideia do marco regulatório é diminuir, tanto quanto possível, a ingerência política sobre as agências, seja por parte do presidente da República, que nomeia diretores, seja por parte do Congresso, que aprova ou não os indicados e, além disso, exerce o controle externo sobre esses órgãos. Ademais, o marco busca acabar com a vacância em cargos de diretoria, causada pelo atraso do presidente nas nomeações – que prejudica o funcionamento das agências.

Bolsonaro vetou parte desse marco jurídico, justamente para continuar a ter liberdade de nomear quem bem entender, preservando sua capacidade de exercer influência política nas agências.

O presidente Jair Bolsonaro elegeu-se com a promessa de estimular as forças do mercado para impulsionar o desenvolvimento do País. Ao contaminar as agências reguladoras com sua pauta ideológica e política, porém, Bolsonaro colabora para piorar ainda mais o já deteriorado ambiente de negócios do Brasil.

Nova versão da Embratur é projeto de alto risco – Editorial | O Globo

Agência federal terá verba anual de R$ 480 milhões, volume 1.400% superior ao orçamento anterior

O governo criou a Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo, em substituição ao Instituto Brasileiro de Turismo. A nova versão da Embratur terá status de serviço social autônomo. Essa característica estabelecida na Medida Provisória nº 907, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro no último dia de dezembro passado, insere a agência no grupo de entidades como Sebrae, Senai, Sesc e assemelhados.

O governo decidiu financiar a Embratur com uma fatia das contribuições empresariais que são pagas de forma compulsória e sustentam o chamado Sistema S. Aparentemente, na redivisão dos recursos quem perde (15,7%) é o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

Há aí aparente contradição com a proposta governamental de reformular o Sistema S, na perspectiva de aumento da eficiência no uso do dinheiro público.

A Embratur renasce rica. Terá verba anual de R$ 480 milhões para gastar. É um volume de dinheiro 1.400% superior ao orçamento da versão anterior, o Instituto Embratur. Além disso, a MP deu-lhe a possibilidade de “receber recursos privados”.

Políticas setoriais são relevantes ao desenvolvimento da indústria do turismo. No entanto, cabe observar que, no caso, trata-se de uma sinalização de expansão de gastos governamentais em meio a uma aguda crise fiscal, cujo retrato está visível tanto nos rostos de milhões de desempregados e subocupados quanto nos sacrifícios necessários para o ajuste das contas da Previdência.

Os problemas com a nova versão da Embratur começam no formato da sua instituição. Concederam-lhe caráter de “urgência”, justificada no texto da MP pelo “momento estratégico” assim descrito: “Proximidade das férias de inverno da Europa” concomitantes às festividades de Natal e Ano Novo no Brasil”. Ou seja, decidiu-se pela premência diante de eventos fixos e permanentes no calendário dos dois hemisférios.

Os objetivos da nova Embratur são delineados de forma extremamente vaga: “Introduzir ou manter o país no imaginário mundial como uma nação soberana, acolhedora, criativa, parceira, moderna e inclusiva”. Tornam-se esdrúxulos, se consideradas as diretrizes para os gastos, informadas pelo presidente e diretores da agência ao GLOBO: patrocínio de produções de exaltação de “atrações militares”, do “Brasil judaico” e de “vários destinos da costa do Nordeste”. Na agenda de prioridades da diretoria tem tido destaque, também, o lobby para abertura de cassinos no país.

Turismo é coisa séria, responsável por cerca de 8% do Produto Interno Bruto. O Congresso tem o dever de revisar detalhadamente essa iniciativa governamental, para recriação da Embratur. O projeto contém um alto risco de desperdício de dinheiro público, algo intolerável numa etapa de agonia fiscal.

Morales volta a tumultuar eleição na Bolívia apenas para obter imunidade – Editorial | O Globo

Ex-presidente, que renunciou após fraude eleitoral, tenta eliminar o risco de prisão no retorno ao país

Há menos de três meses Evo Morales renunciou à presidência da Bolívia, por pressão das ruas. Foi flagrado em meio a uma grande fraude eleitoral para garantir sua reeleição. Seria o quarto mandato seguido, depois de 13 anos, 9 meses e 18 dias de governo, contra expressa proibição constitucional e a vontade manifesta do eleitorado em referendo, que ele mesmo havia convocado três anos antes. Morales, agora, quer voltar à Bolívia como candidato ao Senado.

Seu objetivo é garantir imunidade parlamentar, confessou em entrevista ao jornal “La Nacion”: “Em novembro (depois da renúncia) viajei ao México como refugiado. Comecei a pensar na possibilidade de me apresentar como (candidato a) deputado para blindar-me frente a essas ameaças. Os Estados Unidos me colocaram na mira...”

Assim, tornou público seu ingresso no grupo de ex-governantes sul-americanos que, diante de problemas judiciais, reivindicam o status de perseguido. Morales se une a Lula, no Brasil, a Cristina Kirchner, na Argentina, e ao ainda ditador da Venezuela, Nicolás Maduro. Eles se defendem com o argumento do assédio por forças ocultas, numa espécie de guerra jurídica (“lawfare”, em inglês), supostamente comandada pelo “imperialismo”. Compartilham a ideia de que a vitória nas urnas apaga os delitos pelo quais são acusados.

Morales executa uma manobra esperta com a virtual candidatura ao Senado boliviano. Tenta tumultuar a eleição presidencial prevista para 3 de maio. Quer eliminar o risco de prisão no retorno ao país. No próximo dia 21, o órgão eleitoral, já completamente renovado, vai anunciar as candidaturas válidas às próximas eleições gerais. Um veto ao ex-presidente pode servir de pretexto ao seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), para provocar mais violência nas cidades, como fez após a renúncia de Morales.

Ele se exime de toda e qualquer responsabilidade em crimes graves, como a fraude eleitoral em benefício da própria reeleição. Mas comprovou-se, entre outras coisas, a existência de uma rede de computação clandestina, conectada à do tribunal eleitoral, que permitia reescrever boletins de votos, modificando resultados da apuração oficial.

Sobram, também, evidências de saques aos cofres de 28 empresas públicas, encobertos por sucessivos déficits. Algumas existiam apenas para pagar salários e despesas ordenadas pelo partido de Morales, o MAS. Foi o caso da estatal de projetos para derivados de petróleo. Gastou 369.005,8% mais do que recebeu do Tesouro boliviano no ano passado.

Abaixo do mínimo – Editorial | Folha de S. Paulo

Restrição a reajustes do piso salarial impõe política focada nos mais pobres

Num país extremamente desigual como o Brasil, a política de correção do salário mínimo tem grande impacto nas condições de vida de ampla parcela da população. No final de 2019, 27,9 milhões de pessoas recebiam benefícios previdenciários ou assistenciais neste valor.

Natural que qualquer alteração na fórmula de reajuste desperte controvérsia. É inescapável, porém, debater o tema em todas as dimensões envolvidas, como o impacto na redução da pobreza, a regulação do mercado de trabalho e o peso nas contas públicas.

Por quase 25 anos, entre 1995 e 2019, vigorou no país uma determinação clara de valorizar o salário mínimo. Nos governos tucanos e petistas, até o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), os ganhos acima da inflação foram regra, permitindo expressiva elevação do poder de compra.

Na maior parte desta década vigorou a regra de correção pela variação do Produto Interno Bruto, mais a inflação acumulada. Na prática, devido à recessão e à penúria orçamentária, o piso deixou de ter ganhos reais nos últimos anos.

O governo Jair Bolsonaro promete agora criar uma nova sistemática, mas não prevê a volta de reajustes acima da inflação. A questão que se coloca é se esse ainda é um bom instrumento de política social —ou se há outros mais eficazes.

Estima-se que 40% da redução da pobreza observada entre 2002 e 2013 derivou diretamente do aumento real do mínimo. Entretanto tal fato não recomenda necessariamente a continuidade da política.

A vinculação dos benefícios sociais e previdenciários ao piso salarial foi se tornando pesada para o setor público (ao custo de R$ 355 milhões ao ano para R$ 1 a mais).

O foco da política governamental deve ser o contingente dos 30% mais pobres (60,4 milhões de pessoas), que vivem com apenas R$ 269 por mês per capita, segundo o IBGE. Esse é o piso da distribuição de renda, com forte prevalência de crianças e jovens.

Doravante, políticas públicas voltadas para esse estrato têm maior condição de minorar a pobreza.
Por fim, há o aspecto do mercado de trabalho. No nível atual, o mínimo já representa cerca de 73% do salário mediano (o que divide o total de trabalhadores em duas metades) —muito acima da média da OCDE, que reúne os países mais desenvolvidos.

Assim, a política social mais consistente no momento é deslocar recursos para a parcela mais pobre da população por meio de programas como o Bolsa Família —cuja gestão, infelizmente, tornou-se mais opaca sob Bolsonaro.

Espírito de corpo – Editorial | Folha de S. Paulo

Cabe à Câmara investigar deputado que STF mandou afastar, em vez de protegê-lo

Acusado de envolvimento em um esquema de desvio de verbas destinadas a obras no seu reduto eleitoral, o deputado Wilson Santiago (PTB-PB) ganhou dos colegas uma sobrevida na semana passada.

Dias antes do Natal, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, determinou o afastamento do parlamentar, argumentando que a medida era necessária para impedi-lo de continuar usando o cargo para praticar crimes.

Na quarta (5), o plenário da Câmara derrubou a drástica medida e manteve Santiago no exercício do mandato, considerando que ele ainda não foi julgado pelos crimes que lhe são imputados.

Não são desprezíveis as evidências apresentadas contra Santiago. Um dos seus aliados foi filmado embolsando dinheiro de uma construtora, e a Polícia Federal também registrou imagens de assessores recebendo pagamentos em Brasília e João Pessoa.

O caso agora será examinado pela Corregedoria da Câmara. Depois, a conduta de Santiago deverá ser analisada pelo Conselho de Ética, a quem caberá enviar ao plenário proposta de cassação do mandato do deputado se concluir que houve quebra do decoro parlamentar.

Se o processo for conduzido pelo colegiado de acordo com o rito adotado em casos semelhantes no passado, será preciso esperar meses até um desfecho. Até lá, Santiago continuará atuando no Legislativo e a ação contra ele seguirá tramitando no Supremo.

A Câmara agiu de acordo com as suas prerrogativas. Em 2017, o STF reconheceu que medidas judiciais de natureza cautelar impostas a deputados e senadores devem ser submetidas ao crivo do plenário das suas casas legislativas.

Mas também é papel da Câmara examinar as alegações contra Santiago com rigor e celeridade, assim evitando que a decisão desta semana se revele apenas uma manifestação do espírito de corpo dos parlamentares que se alinharam para protegê-lo.

No mesmo dia em que os deputados preservaram o mandato de Santiago, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), definiu um roteiro para tratar do caso da senadora Juíza Selma (Podemos-MT), cassada pelo Tribunal Superior Eleitoral em dezembro.

Ficou estabelecido um rito para que a Mesa do Senado analise a decisão, em vez de cumpri-la automaticamente, e Alcolumbre cogitou a possibilidade de ela ser revista.

Será difícil conciliar qualquer tentativa de procrastinar a decisão da Justiça Eleitoral com a preservação da necessária harmonia entre os Poderes republicanos.

A reforma administrativa e os seus vários obstáculos – Editorial | Valor Econômico

Um Estado que atenda às aspirações dos brasileiros prescinde do fim da estabilidade do funcionalismo no emprego

Uma das reformas mais difíceis de se aprovar em Brasília é a administrativa. E é fácil entender por quê: desde a promulgação da Constituição, em 1988, foram criados tantos benefícios para os funcionários públicos que qualquer proposta de mudança esbarra numa resistência organizada, poderosa e eficiente. O lobby dos servidores é, sem dúvida, o mais forte da República.

No fim deste mês, o governo enviará ao Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para tratar da reforma administrativa, conhecida também como reforma do Estado. O interesse da equipe econômica, liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, na aprovação dessa reforma é urgente, mas não se vê a mesma disposição no Palácio do Planalto.


Durante os 28 anos em que exerceu mandato de deputado federal, o presidente Jair Bolsonaro só teve uma bandeira: defender os interesses da corporação militar, à qual pertenceu antes de entrar na política. Não há nada de errado nisso, mas, como se viu na tramitação da reforma da Previdência, Bolsonaro retirou os militares da PEC original, justamente para que a corporação não passasse a ter as mesmas regras de aposentadoria dos demais brasileiros. Ademais, defender corte de benefícios de funcionário público em ano eleitoral é algo que a classe política costuma evitar.

A reforma administrativa se justifica por várias razões, mas duas são inapeláveis: o custo elevado do funcionalismo para a sociedade e a ineficiência atávica do Estado. A máquina pública brasileira, considerando apenas a União (os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), é cara em termos absolutos, isto é, para um país de renda média como o Brasil, e também quando comparada ao desembolso feito por economias em desenvolvimento e ricas.

Em 2018, último dado disponível, o gasto com pessoal nos três poderes atingiu o equivalente a 13,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Se nada for feito, alcançará 14,8% do PIB ao fim desta década.

Nações ricas, principalmente as europeias, onde o Estado do bem-estar social mais se desenvolveu, costumam ter uma máquina governamental custosa. Ocorre que, atualmente, segundo estudo do Ministério da Economia, em proporção do PIB, os países da União Europeia gastam com pessoal, em média, bem menos que o Brasil - 9,9% do PIB.

Os Estados Unidos, que por motivos óbvios têm despesa na área de Defesa muito superior à de qualquer outro país, também dispendem com o funcionalismo menos que o Brasil - o equivalente a 9,5%.
Economias do porte da brasileira destinam, em geral, menos de 10% do PIB ao gasto com pessoal.

Nos últimos anos, a despesa com pessoal ativo e inativo (um dos motivadores da reforma da Previdência) cresceu acima de qualquer parâmetro da economia, o que revela o caráter autóctone da burocracia brasileira. Os governos Lula e Dilma, dado o vínculo histórico dos sindicatos dos servidores com o PT, aumentaram a força de trabalho em 34% - de 532 mil funcionários para 712 mil entre 2003 e 2018. Num período mais curto, de 2008 a 2018, chama a atenção o fato de a despesa com pessoal ativo ter crescido 242%. Outro dado que mostra o quanto os funcionários públicos vivem num mundo diferente do restante dos brasileiros: nos últimos 15 anos, os funcionários tiveram, em média, aumento real de salário (acima da variação da inflação) de 53%.

Outra razão para a urgência da reforma é mudar o modelo que consagrou o Estado brasileiro, apesar de seu elevado custo, como ineficiente, extremamente burocrático e prestador de servicos de baixa qualidade. Portanto, trata-se de um Estado inadequado para sua função precípua, que é diminuir a distância entre ricos e pobres, igualando oportunidades numa das nações de maior concentração de renda do planeta.

Não se tenha dúvida: a criação de um Estado que atenda às aspirações dos brasileiros prescinde do fim da estabilidade do funcionalismo no emprego. Instituída pelos constituintes de 1988 para todas as carreiras, a estabilidade é o incentivo errado quando se pensa em eficiência no serviço público. A PEC do governo vai propor o fim da estabilidade generalizada, preservando-a apenas para as carreiras típicas do serviço público, como auditor fiscal e diplomata. Ainda assim, a ideia, bastante razoável, é que a estabilidade nesses casos seja conquistada num prazo mínimo de dez anos.

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