- O Globo
O mundo não está dividido entre comunistas e fascistas. Haverá sempre, entre os dois, uma enorme escala de valores
Foi o Modernismo de 1922 que introduziu, na cultura brasileira, o elogio da alegria. Não só a alegria funcional de estar experimentando uma estética nova, mais livre e mais aberta, mas a própria alegria de viver, de valorizar a existência por sua própria natureza, valorizá-la por existir. É claro que não foram os modernistas que inventaram o humor, ele já se manifestara em nossa cultura, de um modo feroz em Gregório de Matos ou de um modo carinhoso nos músicos populares alimentados pelo carnaval. Segundo Oswald de Andrade, o humor seria a prova dos nove de uma cultura nova, de uma nova perspectiva de civilização que valia a pena.
Essas reflexões esbarram sempre na polarização radicalizada e inconciliável de nossas ideias políticas. Qualquer pessoa que defenda saídas consideradas de esquerda é chamada de comunista. Assim como os que defendem qualquer saída de direita são chamados de fascistas. Uma discriminação política e ideológica que não aceita conflitos de ideias, detalhes contraditórios como todo pensamento justo e honesto nunca deixará de ter. O mundo não está dividido entre comunistas e fascistas. Haverá sempre, entre os dois, uma enorme escala de valores que não serão nem uma coisa, nem outra.
Um país que sempre teve o carnaval como sua festa máxima, não pode deixar de celebrá-la como a alma e o corpo de nosso ser e estar no mundo. Em seu livro “Uma história do samba”, Lira Neto nos conta como o Catumbi tratava Sinhô, um dos inventores do samba no início do século XX, chamando-o de “o chorão das molecas chorosas”. E, no entanto, Sinhô iluminou nossa civilização carioca com tantas canções inesquecíveis, tristes e cheias de alegria.
Quem primeiro desmereceu e combateu a “devassidão” do carnaval não foi a Igreja conservadora. Foi, sim, o novo modelo civilizatório do urbanismo positivista, que só seria posto à prova depois dos anos 1930, a partir da ditadura do Estado Novo, conduzida por Getúlio Vargas. Foi o ditador que introduziu, nos desfiles de escolas de samba, a obrigação de exaltar os episódios mais conhecidos de nossa história. Mesmo depois de encerrado o Estado Novo e eliminada a obrigação, as escolas ainda a praticavam. Só há pouco pararam de celebrar as ilusões da história oficial, passando a tratar, em seus enredos, de seus próprios componentes, os pobres, pretos e pardos das favelas cariocas.
A Igreja conservadora só passou a se meter descaradamente no carnaval a partir de desfiles mais recentes. Como aquele famoso da Beija Flor, cujo carnavalesco era Joãosinho Trinta. Por ordem da Polícia, Joãosinho foi obrigado a aceitar a decisão das autoridades eclesiásticas cobrindo a imagem do Cristo Redentor que abria o desfile. Dizem que, antes de a escola iniciar seu desfile, a polícia informara a ele que a proibição tinha sido levantada pela Justiça. Mas Joãosinho preferiu desfilar com a estátua coberta, para assim denunciar os perigos da interdição pelos que não tinham nada a ver com o desfile. Que este devia ser sempre livre.
Este ano, com o país sob um governo populista, conservador e religioso, foi a vez da pressão cair sobre a Mangueira e seu samba-enredo, “A verdade vos fará livre”, inspirado numa versão popular do Cristo. O samba de Manu da Cuica e Luiz Carlos Máximo começa com uma provocação aos conservadores, dizendo que “eu sou da estação primeira de Nazaré”. E segue saudando um Cristo de “rosto negro, sangue índio e corpo de mulher”. Lá na frente, desafiando as autoridades constituídas, o samba ainda diz que “não tem futuro sem partilha, nem Messias de arma na mão”. E termina: “Mangueira vão te inventar mil pecados, mas eu estou do teu lado e do lado do samba também”.
Em 2013, por causa de mais alguns centavos nos preços das passagens urbanas, o povo foi de fato para as ruas, em peso e do mesmo lado, mudando o clima político do país. Aquele movimento, o caos social e político que despertou no país adormecido, mudou nosso rumo. Continuamos sendo o país da desigualdade, o recordista ocidental da desigualdade, mas com a consciência de que isso tinha que mudar. Hoje, o poder público nos entrega água imunda, contaminada, lamacenta, fecal, sem nos garantir providências e sem nos dar uma data para voltarmos a matar a sede, cozinhar, tomar banho, e mal reagimos. Estamos todos em nossas casas, conformados em comprar litros de água mineral por dia.
Que eu saiba, só a Mangueira, além de mais algumas escolas e blocos, se deu ao trabalho de criticar uma situação que atinge a todos nós, ao país inteiro. E fez isso sem ódio e sem mediocridade, se manifestando em nome da população, com música e alegria. Sendo essa, a alegria, nossa arma mais poderosa, da qual não podemos abrir mão nunca. Viva a Mangueira e viva a alegria!
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