sábado, 9 de março de 2024

Cláudio Couto* - Reforma para quem?

CartaCapital

As propostas de mudança no sistema eleitoral atendem mais aos políticos do que aos eleitores

Recente levantamento da CNN Brasil mostra que, desde a aprovação da reeleição para as chefias do Executivo, ao menos 57 propostas de emenda constitucional para acabar com o instituto foram apresentadas. Não obstante, ele continua aí. Também tem sido frequente que presidenciáveis de oposição se manifestem contra a proposta. Os que se elegeram, contudo, logo abandonam a ideia. Foi assim com Lula em 2002 e Bolsonaro em 2018. Idem o governador gaúcho, Eduardo Leite, que se manifestara contra a reeleição antes de se tornar chefe de governo no Rio Grande do Sul e acabou optando por disputar um segundo mandato – e conseguiu. Agora, Leite volta a defender o fim do instituto ao lado de seus colegas presidenciáveis do Consórcio Sul-Sudeste, Romeu Zema e Ratinho Júnior. Ambos, aliás, reeleitos para o governo de seus estados.

Desta feita, a proposta de extinguir o instituto ganha impulso adicional, pois tem sido defendida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que tem poder de agenda no processo legislativo ­congres­sual. O senador colocou-a como pauta prioritária da casa que preside para este ano, aproveitando o embalo da discussão de um novo código eleitoral, relatado pelo colega Marcelo Castro. E ela se faz acompanhar de outra velha ideia muitas vezes brandida por integrantes de nossa classe política, mas nunca aprovada: a de unificar todas as eleições num único pleito.

Pense-se no que esta segunda proposta representará, se concretizada: o eleitorado terá de decidir de uma única vez como votar para sete cargos: vereador, prefeito, deputado estadual, governador, deputado federal, senador e presidente da República. Como a cada duas eleições são eleitos dois senadores, nesses pleitos o número de escolhas sobe para oito. Em tal situação, para votar o eleitorado precisará considerar questões que vão desde buracos nas ruas até as relações do Mercosul com a China, desde as vagas nas creches municipais até a taxa de juros arbitrada pelo Banco Central, desde os problemas mais comezinhos da vida citadina até as mais amplas questões das relações internacionais. Qual a qualidade do debate político em tal contexto? Como acompanhar simultaneamente, com um mínimo de compreensão, os debates para prefeito, governador e presidente, sem falar nos cargos legislativos? Qual a qualidade da democracia com eleições ocorrendo nesse cipoal de temas e cargos?

Duas justificativas costumam ser apresentadas para defender tal proposta. Uma, que isto representaria uma economia, outra, que o País não funciona tendo de fazer eleições a cada dois anos, porque tudo para. Será mesmo? Será que outras democracias, inclusive as mais consolidadas mundo afora, realizam menos eleições e, por isso, são mais felizes e bem geridas? Não é o que a experiência internacional mostra.

A ideia de estender os mandatos e unificar as eleições tende a piorar o processo de escolha

Tome-se o exemplo da Alemanha, referência quando se trata de estabilidade política e qualidade da gestão pública. Entre 2000 e 2023, os alemães votaram todos os anos. Isso mesmo: houve eleição ano sim, ano também. Não consta que isso tenha prejudicado as políticas de governo, atrasado o desenvolvimento econômico ou prejudicado o controle das contas públicas. Como o Brasil, a Alemanha é um país federativo e os temas especificamente estaduais, municipais e nacionais, se tratados em eleições próprias, propiciam um debate eleitoral mais inteligível e bem informado, conduzindo assim a melhores decisões eleitorais.

A ideia de que unificar as eleições melhora a qualidade do governo e da democracia baseia-se apenas numa suposição abstrata, sem respaldo na experiência internacional. E ela vem acompanhada de outra péssima ideia: aumentar o tempo dos mandatos, o que reduz o controle do eleitor sobre seus representantes. No caso do Senado, a proposta chega a ser indecente: subir para dez anos o mandato na Câmara Alta. Noutras democracias, como Estados Unidos e França, os mandatos são mais curtos que os nossos, não mais longos. Aliás, nos EUA também se realizam eleições para o Congresso a cada dois anos e na França o Senado é parcialmente renovado a cada triênio. Isso, sem contar as muitas eleições municipais, de condados etc. que se dão no meio desse calendário.

Alega-se por aqui que quatro anos é pouco para implementar um plano de governo e, portanto, subir para cinco ajudaria. Ao mesmo tempo, diz-se que oito anos é tempo demais. Ora, o sistema hoje existente, de um mandato de quatro anos com direito à reeleição, produz um mecanismo bastante eficiente. Depois de testado por um quadriênio, ao disputar a reeleição o governante é, na prática, submetido a um referendo sobre sua continuidade. Se bem avaliado pelo eleitorado, é reconduzido ao cargo, tendo assim mais tempo para levar adiante suas propostas. Se o oposto ocorrer, é substituído com alguma rapidez. Não é razoável? Não dá ao eleitorado mais opções em vez de menos? Cinco anos não seria tempo demais para um governante ruim? Por que não o reconduzir, se bem avaliado?

Reconhecer os méritos da reeleição e de disputas bianuais, que permitam a continuidade de bons governos e o tratamento mais cuidadoso de certos temas, de modo algum significa supor que aperfeiçoamentos não sejam possíveis e desejáveis. Mas os nossos representantes parecem menos preocupados em melhorar o sistema do que em atender às suas conveniências. Ora, para que se submeter ao crivo do eleitorado a cada quatro anos, se esse tempo pode ser esticado? Para que aguardar na fila que um governante bem avaliado termine seu segundo mandato, se é possível colocar seu cargo à disposição para disputa desde já? Para que dar ao eleitorado condições de discutir com mais cuidado os temas de seu interesse na eleição, se é possível produzir uma maçaroca ininteligível de discussões, sem que nada possa ser efetivamente digerido pelos cidadãos?

Estamos novamente diante de possíveis mudanças que fazem mais sentido para a proteção dos interesses corporativos internos da classe política do que do aprimoramento de nossa democracia. •

*Cientista político, professor da FGV-EAESP e criador do podcast “Fora da política não há salvação”.

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024

Um comentário:

Daniel disse...

Excepcional e claríssimo! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!