O Globo
Repararam que ninguém fala dos atos concretos
de corrupção, das confissões e, sobretudo, do dinheiro devolvido?
O tiro fatal contra a Lava-Jato foi disparado
pelo juiz símbolo da operação — Sergio Moro, quando aceitou ser ministro da
Justiça de Bolsonaro. Sendo generoso, havia atenuantes favoráveis à escolha de
Moro. O então futuro presidente entregara tudo, o controle da Polícia
Federal, de todo o sistema de segurança pública e das movimentações
financeiras. Mais a garantia de apoio aos ambiciosos projetos de combate à
corrupção.
A República de Curitiba, tão temida por boa
parte da elite política, se instalaria em Brasília.
Avaliação equivocada de Moro. Primeiro, Bolsonaro já não era de confiança, mesmo porque ele e seus filhos tinham rolos na Justiça e na polícia. Seu comportamento nunca foi de um republicano, mas de desconfiança em relação às instituições, a começar pelo Judiciário. Não demorou muito para Bolsonaro reclamar da PF de Moro e conseguir uma PF para chamar de sua.
Em segundo lugar, dava para desconfiar: a
elite política aceitaria tanto poder nas mãos de Moro?
Temos a vantagem de olhar para trás. Mas
falemos francamente: a Lava-Jato, gostando ou não seus outros integrantes — e
muitos não gostaram —, tornara-se bolsonarista. Isso num país rachado ao meio.
Sim, havia as conversas grampeadas entre os
procuradores e Moro, mas dificilmente levariam à aniquilação da Lava-Jato de
Curitiba e, depois, de tudo o que fosse combate à corrupção. Em entrevista ao
Valor, publicada na última quarta-feira, o procurador aposentado Carlos
Fernando dos Santos Lima, uma das lideranças da operação, comentou que esse
tipo de conversa é rotineiro na Justiça.
Correto. Acrescentamos: rotineiras também são
as conversas de advogados com os juízes, prática, aliás, que permanece intacta.
Todo mundo familiarizado com os meios jurídicos de Brasília sabe o que é um
“embargo auricular”, não raro praticado em jantares, recepções e viagens.
Houve também acusações de desvio de recursos
devolvidos por delatores, mas nada disso foi provado. Dallagnol não foi cassado
por isso. A Justiça
Eleitoral aceitou o argumento de que ele renunciara ao cargo de
procurador para escapar de sindicâncias que poderiam levar a processos, que
poderiam levá-lo ao afastamento da Procuradoria. Poderiam? Moro pode ser
cassado por gastos na pré-campanha eleitoral para presidente. Não acharam nada
mais forte que isso?
Se fosse aplicado o mesmo rigor às contas de
tantos outros candidatos, sobraria pouca gente. Lembram-se da chapa
Dilma-Temer, absolvida pela Justiça Eleitoral “por excesso de provas”, na
expressão imortal de Jorge Moreno?
Estão aí exemplos do que o ministro Gilmar Mendes,
também em entrevista ao Valor, chamou de “leituras políticas”. E as defendeu. A
decisão de voltar à regra de prisão só depois do último trânsito em julgado —
em vez de prisão após condenação em segunda instância — decorreu, disse o
ministro, justamente de uma leitura política. Livrou Lula e
abriu caminho para sua volta. Também tinha sido leitura política a de outro
momento que levara à prisão de Lula.
Repararam que nada se fala de letra da lei,
de interpretação jurídica sustentada? Repararam que ninguém fala dos atos
concretos de corrupção, das confissões e, sobretudo, do dinheiro devolvido?
Anula-se tudo por questões formais.
De Sérgio Cabral —
das lanchas, joias, mansão em Mangaratiba, farras em Paris —, foram anulados
uns 40 anos de penas. Seria inocente? Não se tratou disso. O Tribunal de
Justiça “descobriu”, tantos anos depois, que o ex-governador fora julgado numa
vara errada. Teria de começar tudo de novo. Mas, bobagem, não vai dar tempo.
Devolverão a lancha e as joias leiloadas?
Certa elite política e judiciária entendeu
que o povo não estava mais preocupado com isso de corrupção. Logo, anule-se
tudo antes que o povo perceba. Pois parece que está percebendo de novo: 59% dos
entrevistados colocaram a corrupção entre os dois maiores problemas do país (o
primeiro é a segurança), segundo pesquisa Atlas/Intel. Quem poderia levantar de
novo essa bandeira? Certamente, ninguém do lado de Lula ou de Bolsonaro.
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