O Globo
Liberais deram ao Brasil o Plano Real, que
botou freio na inflação, castigo tão mais cruel quão mais baixa a renda
Imagine alguém a favor da igualdade de
gênero, de plenos direitos para casais homoafetivos (incluindo adoção), do
Estado laico (com o fim dos privilégios fiscais concedidos a “igrejas”), da
descriminalização das drogas e do aborto, da legalização da eutanásia, da opção
por fontes limpas e renováveis de energia — e, ainda assim, considerado de
direita.
Pense agora em alguém que defenda a
autorregulação do mercado, a privatização das estatais, a liberdade de
expressão, a redução da maioridade penal, a implantação de normas de compliance
em todo o setor público, o empreendedorismo, o capitalismo como única forma de
criação de riqueza — e que, ainda assim, volta e meia seja chamado de
esquerdista.
Muito prazer: esse cara sou eu, um liberal — em época de eleição, também conhecido pela pouco lisonjeira alcunha de “isentão”. Um gênero fluido: à esquerda se a referência for um bolsonarista; à direita se for um petista o parâmetro.
O liberal é um anfíbio, um ambidestro, que,
no Brasil, vive num limbo entre a hipocrisia de quem diz olhar pelos mais
pobres — e se empenha na perpetuação do atraso — e a desfaçatez de quem fala em
Deus, pátria e família — e faz o diabo para desmoralizar todos os três. Nem
todo liberal pensa igual, mas uma cláusula é pétrea: não tem ditadura amiga —
seu match é a democracia.
Liberais tendem a acreditar no direito das
pessoas ao próprio corpo e à própria vida (em todos os seus estágios). Que
caiba aos trabalhadores a administração do seu salário (imposto sindical
obrigatório e empréstimo compulsório via FGTS são
apropriação indébita). Veem o politicamente correto como uma questão de
respeito, não um pedestal para pavoneio.
Liberais deram ao Brasil o Plano Real, que
recuperou a economia e botou freio na inflação — castigo tão mais cruel quão
mais baixa a renda. A esquerda só pôde viabilizar seus projetos entre 2003 e
2016 porque encontrou as contas em ordem — legado carinhosamente chamado de
“herança maldita”.
Temos nossas esquisitices: achar que Estado
foi feito para cuidar do bem comum, não para furar poço de petróleo, produzir
programa de televisão, abrir conta-corrente e emitir cartão de crédito. Que o
Legislativo legisla, o Executivo executa e o Judiciário julga (sim, soa radical
e contraintuitivo, mas é um novo paradigma a que a gente se acostuma). Que a
educação fundamental é fundamental; que as universidades devem ser gratuitas
para quem não puder pagar e que um sistema de cotas sociais nos pouparia da infâmia
de ter comissões para avaliar narizes, lábios, cabelo e tom de pele.
Queremos um país mais rico, mais aberto, mais
competitivo (“Seus fascistas!”), mais justo, mais solidário, mais inclusivo
(“Seus comunistas!”). Queremos igual distância do Mito Imbrochável e do
Deus-Sol Infalível (“Falsa simetria!”), das conspirações do QAnon e das
atrocidades do Hamas (“Seus isso, seus aquilo!”).
Parafraseando Millôr, ser liberal no Brasil é
propor violão, flauta e cavaquinho a uma tribo que só conhece percussão. Mas
tem uma vantagem: como a gente apanha dos dois lados, pelo menos os hematomas
são simétricos.
P.S. 1: Não deixe de visitar o Museu das Culpas do Neoliberalismo, garantia de muitas
gargalhadas.
P.S. 2: Somos muitos — só precisamos parar de
nos contentar com o vice-pior.
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