Valor Econômico
A pandemia, a guerra na Ucrânia, a ameaça de conflito em torno de Taiwan, as interrupções no transporte no Mar Vermelho e os vários desastres naturais que provocaram caos nas cadeias de suprimentos não mostraram que é péssima ideia para o mundo manter todos os seus ovos de produção em uma única cesta?
Há diferentes tipos de americanos. E há
diferentes tipos de estratégias de tarifas. Essa é a principal mensagem a ser
tirada das novas tarifas de importação do presidente dos Estados Unidos, Joe
Biden, sobre várias mercadorias chinesas. Embora alguns as vejam como uma prova
de que esta Casa Branca quer uma desglobalização tão rápida quanto a desejada
pelo governo Trump, nada poderia estar mais longe da verdade.
Trump usou as tarifas como uma ferramenta de
força, em uma estratégia com um uma única frente, a de reduzir o déficit
comercial dos EUA com a China. Para Biden, no entanto, elas fazem parte de um
plano muito mais amplo. O plano almeja não apenas combater o mercantilismo
chinês, as suas repercussões econômicas e políticas no mundo e a incapacidade
do sistema comercial existente para resolver isso, mas também expandir a
capacidade produtiva em áreas fundamentais, como as de semicondutores e
tecnologia limpa.
É uma estratégia comercial que também almeja construir uma verdadeira aliança democrática - entre ambientalistas e sindicatos, tanto em Estados republicanos quanto em democratas e, em última análise, entre aliados no exterior, em torno à transição para energia limpa. Tudo isso é algo que a Europa e outras democracias liberais não apenas deveriam apoiar, mas também imitar.
Compreender isso exige sair da usual
compartimentalização tecnocrática que dita o debate em Bruxelas. Também exige
abandonar a matemática de mercado desatualizada, que infelizmente ainda
caracteriza a maioria das análises econômicas.
Por exemplo, qual é o sentido de tentar
calcular os possíveis custos econômicos das tarifas com base em modelos que
presumem um campo de jogo internacional igual para todos, quando nenhum país,
certamente não um país rico com padrões ambientais e trabalhistas decentes,
teria condições de competir em preço com a China em qualquer área de produção?
Por que argumentar que o mundo deveria
simplesmente aceitar o dumping maciço de tecnologia limpa pela China como uma
solução para o aquecimento mundial, quando o verdadeiro custo de carbono de
produzir tais bens a partir da energia a carvão, assim como as emissões
envolvidas no transporte deles, sequer são considerados nesses cálculos? As
emissões de transporte de bens duráveis são a segunda maior fonte de emissões
mundiais, depois da própria China.
Então, temos o elefante na sala: o fato de
que a China tem apoiado governos autocráticos repressivos, como Rússia e Irã.
Esses governos são inimigos de todas as pessoas de mentalidade liberal. Diante
disso, realmente queremos contar com Pequim para bens essenciais? E mesmo que o
Partido Comunista da China não estivesse seguindo esse caminho, a pandemia a
covid-19, a guerra na Ucrânia, a ameaça de conflito em torno de Taiwan, as
interrupções no transporte no Mar Vermelho e os vários desastres naturais provocando
caos nas cadeias de suprimentos nos últimos anos não mostraram que é péssima
ideia para o mundo manter todos os seus ovos de produção em uma única cesta?
De fato, depender de uma única fonte de
suprimento para ter fontes de energia limpas “traz o risco de replicar os
problemas da era dos combustíveis fósseis”, na qual o mundo ficou dependente de
um punhado de Estados autocráticos, segundo Todd Tucker, chefe de política
industrial e comércio do Roosevelt Institute, um centro de estudos alinhado à
atual Casa Branca. “Isso não é bom para a estabilidade dos preços da energia, a
economia ou o clima”. Esse é um ponto crucial - a participação da China no
mercado de células de bateria, cerca de 60%, é quase igual à atual participação
de produção dos 13 países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo
(Opep).
Qual é o sentido de calcular os custos
econômicos das tarifas com modelos que presumem um jogo internacional igual
para todos, quando nenhum país rico, com padrões ambientais e trabalhistas
decentes, teria condições de competir em preço com a China em qualquer área?
Estas são apenas alguns dos absurdos do
“mercado sabe o que é melhor”, que esta Casa Branca tenta corrigir. Está
fazendo isso, em parte, valendo-se de tarifas que criam espaço para a produção
local de bens cruciais, com salários justos e de forma sustentável para o
ambiente, o que de outra forma, simplesmente, não vinha ocorrendo.
No entanto, diferentemente de Trump, Biden
não está parando nas tarifas. A atual Casa Branca tampouco tem interesse em
agir sozinha. O presidente tem dois grupos de interesse favoritos -
trabalhadores americanos e aliados americanos. Sua estratégia de comércio
exterior almeja acabar beneficiando a ambos.
Enquanto Trump quer abandonar a produção de
veículos elétricos, o governo Biden tenta manter a salvo os trabalhadores e
indústrias no país durante a transição - muitos deles em Estados republicanos
-, assegurando que os EUA possam continuar a fazer sua parte para combater o
aquecimento mundial. Já pudemos ver, tanto nos EUA quanto na Europa, o que
acontece quando você não apoia os trabalhadores durante uma grande transição
econômica - você tem populistas de direita chegando ao poder.
Os discursos e entrevistas recentes do
presidente francês Emmanuel Macron, assim como as declarações de outros
europeus, como os ex-primeiros-ministros italianos Enrico Letta e Mario Draghi,
me deixam otimista de que a Europa pode, enfim, estar pronta para ter uma
conversa real sobre padrões trabalhistas e ambientais compartilhados, assim
como uma abordagem comum para desequilíbrios comerciais internacionais.
Como disse Macron, a Europa historicamente
fechou os olhos para tais problemas porque “via a China como um bom mercado de
exportação [...] especialmente para a indústria automotiva alemã”. Agora, a
supercapacidade chinesa e as falhas da Organização Mundial do Comércio (OMC)
mudaram a equação de formas que requerem uma nova abordagem radical para
comércio exterior. E, diferentemente daqueles que gostariam de equiparar as
economias políticas e abordagens dos EUA e da China, Macron ressalta que “nós
[a Europa] não estamos equidistantes [entre os dois]. Somos aliados dos
americanos”.
Estou esperançosa de que, se Biden for
reeleito, veremos a Europa enfim abraçar a ideia proposta por este governo - o
mundo mudou, e o comércio exterior também precisa mudar. Dizer isso não é
protecionismo. É realismo. (Tradução de Sabino Ahumada)
*Rana Foroohar é editora especial do Financial Times em Nova York.
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