terça-feira, 21 de maio de 2024

Felipe Krause* - A esquerda é vítima do próprio sucesso?

O Globo

O PT não conseguiu processar um fato: muitos que se beneficiaram de suas políticas têm valores conservadores

No dia 4 de março, o presidente Lula enviou ao Congresso um ambicioso Projeto de Lei para regulamentar o trabalho por meio de aplicativos de transporte, o PL dos Aplicativos. O texto contém dispositivos sobre salário mínimo, jornada de trabalho, sindicalização e contribuições para a Previdência. Ao anunciar o projeto, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou que os motoristas sofrem de “falsa sensação de liberdade”, e que são “escravizados por longas jornadas e baixa remuneração”.

A reação do público-alvo do PL, no entanto, revelou uma realidade mais complexa. Motoristas realizaram protestos em várias cidades, e o projeto enfrenta uma batalha difícil no Congresso. Os manifestantes alegam que as novas medidas são dispensáveis e provavelmente prejudiciais. Embora reconheçam as difíceis condições de trabalho, são céticos quanto à introdução pelo Estado de novas regras que podem, no final das contas, afetar seus ganhos.

Além de paternalismo condescendente, o Projeto de Lei reflete, acima de tudo, certas convicções arraigadas do PT, partido que brotou das greves dos metalúrgicos do fim dos anos 1970 e permanece profundamente associado ao sindicalismo fabril. O PT não compreendeu as profundas mudanças demográficas das duas últimas décadas. Bolsonaro, sim, soube discernir: o Brasil é cada vez mais um país de classe média baixa, desiludida com a corrupção, os serviços públicos e o ambiente de negócios. Lula tem lutado para conquistar esse grupo, enquanto a direita o corteja com enorme sucesso.

Em certa medida, a vitória de Lula em 2022 foi mais um repúdio a Bolsonaro que um endosso a Lula. Foi por margem ínfima. O PT, ciente disso, se empenha para atrair o 1,5 milhão de “trabalhadores plataformizados”. Mas a esquerda não consegue imaginar que eles sejam qualquer coisa senão mão de obra explorada, apesar de valorizarem a autonomia, além da renda 5,4% superior à média nacional. Cabe perguntar: a quem o PL realmente pretende beneficiar, os motoristas ou os sindicatos simpáticos ao PT?

Ironicamente, foi Lula, em seus primeiros mandatos, que produziu essa nova classe média, com políticas que reduziram a desigualdade e aumentaram a prosperidade. Por mais que a direita relute em admitir, Lula tirou 20 milhões da miséria, com melhoras expressivas em educação, saúde e moradia, permitindo acesso a um nível de consumo antes impensável.

Mas, tendo criado a nova classe média, a esquerda simplesmente a abandonou. O PT não conseguiu processar um fato: muitos dos que se beneficiaram de suas políticas têm valores conservadores. Além disso, se veem como batalhadores e empreendedores. Suas demandas não são por assistência, mas por um caminho desimpedido. Certamente, não se sentem representados pela velha estratégia dupla do PT de concentrar-se em políticas sociais para os segmentos mais pobres, enquanto presenteia subsídios generosos a indústrias “sagradas” como a automotiva. Perdeu-se de vista a classe C, 55% da população.

Não se trata, de forma alguma, de abandonar os mais pobres. Mas a esquerda precisa também de um programa para a nova classe média, abordando segurança pública, acesso ao crédito, desburocratização e combate à corrupção. Até agora, além da recente reforma tributária, Lula forneceu poucas soluções nessas áreas. Enquanto Bolsonaro também falhou em atender a essas demandas, a direita pelo menos tem feito referência consistente a elas.

O PT é hábil em agradar à Faria Lima. Os principais banqueiros e economistas pró-mercado declararam apoio a Lula no segundo turno em 2022. Mas a elite financeira não tem peso eleitoral suficiente. São os milhões de eleitores de classe média baixa, desiludidos, que Lula precisa reconquistar.

Caso contrário, cairão nos braços, mais uma vez, de algum populista de extrema direita. E, desta vez, talvez seja alguém muito mais astuto. Medidas econômicas inteligentes ajudarão em muito a remediar a polarização do país.

*Felipe Krause é cientista político e professor da Universidade de Oxford (a versão em inglês deste artigo foi publicada originalmente na revista Foreign Policy)

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

''O PT é hábil em agradar à Faria Lima'',verdade.