DEU EM O GLOBO
A constituição de uma Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos durante o período de regime militar vem em momento histórico equivocado e envolta em uma embalagem de cunho ideológico que impede liminarmente que se chegue à verdade. O professor de História Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira acha que a providência é muito tardia e torna muito mais difícil e menos justificável do ponto de vista político a realização da tarefa
Segundo ele, se tivesse sido feita logo depois da redemocratização em 1985, ou talvez na Constituinte de 1988, iria provocar reações contrárias, mas estávamos no processo de reconstituição das instituições brasileiras.
Agora, para Teixeira, as instituições brasileiras estão funcionando muito bem, e nesse momento essa providência não tem mais sentido.
Ele lembra que comissão desse tipo na Argentina foi coordenada pelo escritor Ernesto Sábato, e o da África do Sul pelo bispo Desmond Tutu, militantes de um peso intelectual totalmente diferenciado, o que colocava as comissões acima da partidarização do processo.
“Foram feitas no calor da hora, no momento da refundação das instituições, e por pessoas que tinham autoridade moral reconhecida pela sociedade”.
Luigi Pareyson, um dos maiores filósofos italianos do século XX, professor de Gianni Vatimo e Umberto Eco, em seu livro “Verdade e interpretação”, mostra como a busca da verdade é afetada pela ideologia, uma instrumentalização do pensamento.
Ele trata nesse contexto de duas características do mundo moderno, o praxismo, uma ação política desvinculada da verdade, e o tecnicismo, outra variação do uso da razão que não utiliza a verdade.
Para Pareyson, a verdade é a origem do pensamento, e não o objeto, e seu “conceito de interpretação” tornouse importante na filosofia pela separação entre o “pensamento expressivo”, que ficaria limitado à História, e o “pensamento revelativo”, que se aproxima da verdade.
Uma comissão formada com o objetivo de investigar as violações dos direitos humanos no contexto da “repressão política” nos anos de ditadura militar não perderá sua ideologia fundamental devido ao uso da palavra “conflitos” no lugar de “repressão”, como propõe o presidente Lula aos ministros militares que protestaram.
Segundo o professor de filosofia da Uerj e presidente da Academia Brasileira de Filosofia, João Ricardo Moderno, se existe uma “busca interessada da verdade”, já se está distorcendo o resultado final, que vai encontrar aquilo que estava buscando. Quem age assim “não está interessado minimamente em buscar a verdade, mas em forçar uma situação para que coincida com seu pensamento”.
O professor Francisco Carlos Teixeira, como historiador, considera que o fundamental para se expor a verdade é abrir os arquivos do regime militar, sem se importar com o fato de que esses arquivos, na maior parte das vezes, revelam-se “uma porcaria”.
“São informações de segunda ou terceira pessoas, baseadas em fofocas, sem interesse histórico”. Ele lembra o historiador Carlos Ginsburgo, que escreveu o livro “O queijo e os vermes”, sobre a Inquisição, que dizia que quem usar fontes da Inquisição vai acabar comprovando a existência de bruxas.
“Se usar as fontes da repressão, vai acabar comprovando que comunistas comiam criancinhas”, ironiza Teixeira.
Mesmo assim, ele considera que a abertura de todos os arquivos, embora não vá redundar em “atos de direito”, servirá para que se possa conhecer a História do país. “Anistia não é esquecimento, mas perdão dos atos cometidos”.
Ele admite que existe dificuldade cultural no Brasil com relação a arquivos, que não tem a ver apenas com os do regime militar: “É uma mania brasileira, tanto que o Itamaraty até hoje cria problemas com os arquivos da Guerra do Paraguai. Há um sigilismo na mentalidade da sociedade brasileira que vem da tradição ibérica de arquivo como alguma coisa perigosa e comprometedora”.
Teixeira sabe do que está falando. Ele foi o redator do artigo da Constituição de 1988 que criou o “habeas datas”, porque era, na ocasião, diretor do Conselho Nacional de Arquivos do Brasil e permitiu o acesso aos arquivos da ditadura em repartições públicas.
Guarda até hoje uma carta de Ulysses Guimarães em que ele dizia que aquele seria “o meu artigo” por causa exatamente do acesso livre do cidadão à informação.
Francisco Carlos Teixeira lembra que a abertura dos arquivos tem como contrapartida a necessidade de todos assumirem as responsabilidades, “inclusive a esquerda, porque muitos desses depoimentos, mesmo que conseguidos através de torturas, são altamente comprometedores”.
Ele não vê razão para que as Forças Armadas resistam à revelação de fatos da época da ditadura militar, pois “não há hoje nas Forças Armadas ninguém que tenha tido comprometimento com o que aconteceu”.
Ao mesmo tempo, Francisco Carlos Teixeira faz questão de frisar que o regime ditatorial deveria ser classificado como regime “civil-militar”, porque foi apoiado pelos civis, “e essa comissão deveria ter sido instituída naquele momento para revelar a participação de todos e de qualquer um, principalmente em crimes como a tortura, prática injustificável e imperdoável”.
Mas a tortura, diz Teixeira, não pode ser atribuída a instituições: “Tortura não é responsabilidade da instituição, mas de pessoas. Houve militares que se recusaram a participar, e civis que a aceitaram e praticaram”.
A constituição de uma Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos durante o período de regime militar vem em momento histórico equivocado e envolta em uma embalagem de cunho ideológico que impede liminarmente que se chegue à verdade. O professor de História Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira acha que a providência é muito tardia e torna muito mais difícil e menos justificável do ponto de vista político a realização da tarefa
Segundo ele, se tivesse sido feita logo depois da redemocratização em 1985, ou talvez na Constituinte de 1988, iria provocar reações contrárias, mas estávamos no processo de reconstituição das instituições brasileiras.
Agora, para Teixeira, as instituições brasileiras estão funcionando muito bem, e nesse momento essa providência não tem mais sentido.
Ele lembra que comissão desse tipo na Argentina foi coordenada pelo escritor Ernesto Sábato, e o da África do Sul pelo bispo Desmond Tutu, militantes de um peso intelectual totalmente diferenciado, o que colocava as comissões acima da partidarização do processo.
“Foram feitas no calor da hora, no momento da refundação das instituições, e por pessoas que tinham autoridade moral reconhecida pela sociedade”.
Luigi Pareyson, um dos maiores filósofos italianos do século XX, professor de Gianni Vatimo e Umberto Eco, em seu livro “Verdade e interpretação”, mostra como a busca da verdade é afetada pela ideologia, uma instrumentalização do pensamento.
Ele trata nesse contexto de duas características do mundo moderno, o praxismo, uma ação política desvinculada da verdade, e o tecnicismo, outra variação do uso da razão que não utiliza a verdade.
Para Pareyson, a verdade é a origem do pensamento, e não o objeto, e seu “conceito de interpretação” tornouse importante na filosofia pela separação entre o “pensamento expressivo”, que ficaria limitado à História, e o “pensamento revelativo”, que se aproxima da verdade.
Uma comissão formada com o objetivo de investigar as violações dos direitos humanos no contexto da “repressão política” nos anos de ditadura militar não perderá sua ideologia fundamental devido ao uso da palavra “conflitos” no lugar de “repressão”, como propõe o presidente Lula aos ministros militares que protestaram.
Segundo o professor de filosofia da Uerj e presidente da Academia Brasileira de Filosofia, João Ricardo Moderno, se existe uma “busca interessada da verdade”, já se está distorcendo o resultado final, que vai encontrar aquilo que estava buscando. Quem age assim “não está interessado minimamente em buscar a verdade, mas em forçar uma situação para que coincida com seu pensamento”.
O professor Francisco Carlos Teixeira, como historiador, considera que o fundamental para se expor a verdade é abrir os arquivos do regime militar, sem se importar com o fato de que esses arquivos, na maior parte das vezes, revelam-se “uma porcaria”.
“São informações de segunda ou terceira pessoas, baseadas em fofocas, sem interesse histórico”. Ele lembra o historiador Carlos Ginsburgo, que escreveu o livro “O queijo e os vermes”, sobre a Inquisição, que dizia que quem usar fontes da Inquisição vai acabar comprovando a existência de bruxas.
“Se usar as fontes da repressão, vai acabar comprovando que comunistas comiam criancinhas”, ironiza Teixeira.
Mesmo assim, ele considera que a abertura de todos os arquivos, embora não vá redundar em “atos de direito”, servirá para que se possa conhecer a História do país. “Anistia não é esquecimento, mas perdão dos atos cometidos”.
Ele admite que existe dificuldade cultural no Brasil com relação a arquivos, que não tem a ver apenas com os do regime militar: “É uma mania brasileira, tanto que o Itamaraty até hoje cria problemas com os arquivos da Guerra do Paraguai. Há um sigilismo na mentalidade da sociedade brasileira que vem da tradição ibérica de arquivo como alguma coisa perigosa e comprometedora”.
Teixeira sabe do que está falando. Ele foi o redator do artigo da Constituição de 1988 que criou o “habeas datas”, porque era, na ocasião, diretor do Conselho Nacional de Arquivos do Brasil e permitiu o acesso aos arquivos da ditadura em repartições públicas.
Guarda até hoje uma carta de Ulysses Guimarães em que ele dizia que aquele seria “o meu artigo” por causa exatamente do acesso livre do cidadão à informação.
Francisco Carlos Teixeira lembra que a abertura dos arquivos tem como contrapartida a necessidade de todos assumirem as responsabilidades, “inclusive a esquerda, porque muitos desses depoimentos, mesmo que conseguidos através de torturas, são altamente comprometedores”.
Ele não vê razão para que as Forças Armadas resistam à revelação de fatos da época da ditadura militar, pois “não há hoje nas Forças Armadas ninguém que tenha tido comprometimento com o que aconteceu”.
Ao mesmo tempo, Francisco Carlos Teixeira faz questão de frisar que o regime ditatorial deveria ser classificado como regime “civil-militar”, porque foi apoiado pelos civis, “e essa comissão deveria ter sido instituída naquele momento para revelar a participação de todos e de qualquer um, principalmente em crimes como a tortura, prática injustificável e imperdoável”.
Mas a tortura, diz Teixeira, não pode ser atribuída a instituições: “Tortura não é responsabilidade da instituição, mas de pessoas. Houve militares que se recusaram a participar, e civis que a aceitaram e praticaram”.
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