DEU NO VALOR ECONÔMICO
As aquisições definitivas de enormes glebas, como tem ocorrido na África, são discutíveis se não vierem associadas a projetos para o desenvolvimento local
A crise de 2008 acionou um freio de arrumação no escopo institucional do desenvolvimento. Na esfera agrícola, a reafirmação das políticas nacionais de segurança alimentar - uma prioridade destacada pela Conferência da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), de novembro de 2009, em Roma, deslocou a ênfase anterior que transferia a responsabilidade pública do abastecimento a uma suposta coalizão de preços baixos e oferta "just-in-time" assegurada pelos mercados globais.
Estoques reguladores; políticas de abastecimento e o próprio desenvolvimento da agricultura familiar haviam sido rebaixados diante das promessas da presença de um mercado provedor sempre abastecido com preços suficientemente baixos - porque subsidiados - para desincentivar a produção local. O colapso econômico, sobretudo seu estágio preliminar de entropia especulativa e agigantamento da fome mundial desautorizou a crença numa correlação de interesses entre segurança alimentar e desregulação econômica.
Economias pujantes, mas não autossuficientes em alimentos, caso da China, por exemplo; ou aquelas desprovidas de água, sol e solo suficientes para engatar sua matriz energética à era dos bicombustíveis, como as europeias, decodificaram o recado da crise: a segurança alimentar - e, no futuro, segurança bioenergética - dependerá cada vez mais de um certo grau de controle sobre os meios de produção.
Esse aprendizado tem mão dupla. Um desdobramento da sua reciprocidade são as manifestações sobre a necessidade de se regular o comércio internacional de terras, particularmente a venda de enormes glebas a capitais estrangeiros destinadas a reserva de valor ou à exportação de alimentos.
Estima-se que milhões de hectares tenham passado ao controle estrangeiro a partir da crise de 2008, num movimento fortemente concentrado na África que reuniria 80% da "terra disponível" mirada pelos investidores, atuantes também na Ásia e, em menor proporção, na América Latina.
As aquisições definitivas de enormes glebas, como tem ocorrido na África, são discutíveis se não vierem associadas a projetos para o desenvolvimento local
A crise de 2008 acionou um freio de arrumação no escopo institucional do desenvolvimento. Na esfera agrícola, a reafirmação das políticas nacionais de segurança alimentar - uma prioridade destacada pela Conferência da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), de novembro de 2009, em Roma, deslocou a ênfase anterior que transferia a responsabilidade pública do abastecimento a uma suposta coalizão de preços baixos e oferta "just-in-time" assegurada pelos mercados globais.
Estoques reguladores; políticas de abastecimento e o próprio desenvolvimento da agricultura familiar haviam sido rebaixados diante das promessas da presença de um mercado provedor sempre abastecido com preços suficientemente baixos - porque subsidiados - para desincentivar a produção local. O colapso econômico, sobretudo seu estágio preliminar de entropia especulativa e agigantamento da fome mundial desautorizou a crença numa correlação de interesses entre segurança alimentar e desregulação econômica.
Economias pujantes, mas não autossuficientes em alimentos, caso da China, por exemplo; ou aquelas desprovidas de água, sol e solo suficientes para engatar sua matriz energética à era dos bicombustíveis, como as europeias, decodificaram o recado da crise: a segurança alimentar - e, no futuro, segurança bioenergética - dependerá cada vez mais de um certo grau de controle sobre os meios de produção.
Esse aprendizado tem mão dupla. Um desdobramento da sua reciprocidade são as manifestações sobre a necessidade de se regular o comércio internacional de terras, particularmente a venda de enormes glebas a capitais estrangeiros destinadas a reserva de valor ou à exportação de alimentos.
Estima-se que milhões de hectares tenham passado ao controle estrangeiro a partir da crise de 2008, num movimento fortemente concentrado na África que reuniria 80% da "terra disponível" mirada pelos investidores, atuantes também na Ásia e, em menor proporção, na América Latina.
Só no Brasil, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o saldo da propriedade estrangeira reúne 4,3 milhões de hectares. E isso porque considera empresa nacional qualquer registro de pessoa física estrangeira que tenha domicílio no país.
Considerando que a agricultura ocupa cerca de 1,5 bilhão de hectares no planeta e ainda existiria uma fronteira disponível equivalente a 50% disso, a escala das transações recentes, em tese, não justificaria receios diversos. O que de fato parece pesar nos temores de governos e especialistas é uma inédita convergência de impulsos apontando para um mesmo horizonte ampliado de pressão fundiária nos próximos anos.
As fragilidades do abastecimento expostas pela crise foram apenas a ponta do iceberg. O fato é que os aumentos drásticos nos preços das commodities entre 2007 e 2008 abalaram uma arraigada confiança na tendência secularmente baixista nos preços de produtos primários. Na linha do tempo das cotações, desde a II Guerra, houve apenas um precedente que desmentiu essa percepção: durante a crise do petróleo, em meados da década de 70. O que se deu em 2007 e 2008 poderia ser apenas mais um ponto fora da curva, mas não é isso que se desenha, pelo menos por enquanto: segundo recentes projeções da FAO em conjunto com a OCDE, os preços das commodities agrícolas permanecerão elevados na década dificultando assim o acesso de bilhões de pessoas pobres em todos os cantos do mundo.
Essa fornalha carregada de vapor altista não passa desapercebida no radar de fundos e megainvestidores. Insatisfeitos com o baixo retorno das aplicações convencionais na longa convalescença pós-crise, o dinheiro ambulante garimpa oportunidades de rendimento superior ao da papelaria financeira. A aquisição de terras férteis, mesmo sem a intenção imediata de produzir, pode ser uma delas, aquinhoada por uma singularidade adicional: ao contrário das inovações financeiras, terra é um recurso finito que a economia e a engenharia dos mercados não consegue replicar. Mas é por isso também que aquisições definitivas de enormes glebas, ou o seu arrendamento por prazos longos de 50 até 99 anos, como tem ocorrido na África, são discutíveis se não vierem associadas a projetos que ofereçam contrapartidas de desenvolvimento local. A justificativa corrente de que é melhor o grande capital estrangeiro que agrega tecnologia e eficiência à reprodução vegetativa da pequena agricultura contém uma perigosa meia verdade. O truque consiste em utilizar o confronto de escalas como biombo para omitir o debate que verdadeiramente importa: desenvolvimento para quem? Desenvolvimento para quê?
Uma das questões evidenciadas na crise, enfatizada pela FAO, foi a vulnerabilidade de muitas economias que renunciaram ao desenvolvimento agrícola próprio, fragilizando assim a produção familiar em troca de maior dependência externa, com aumento da pobreza no campo e nas cidades. A reversão desse processo demanda decisão política dos governos locais para recolocar a segurança alimentar na agenda das políticas públicas. Os países ricos ajudariam se mudassem a qualidade da ajuda internacional, destinando fundos ao desenvolvimento agrícola, em vez de vincular recursos a doação em especial e importações subsidiadas de alimentos que asfixiam o produtor local.
Carência financeira e defasagem tecnológica constituem fatos inquestionáveis na vida dos agricultores das nações mais pobres. A agonia ou a ressurreição de sua agricultura, porém, dependerá muito mais da forma como esses recursos serão internalizados do que do seu aporte.
Considerando que a agricultura ocupa cerca de 1,5 bilhão de hectares no planeta e ainda existiria uma fronteira disponível equivalente a 50% disso, a escala das transações recentes, em tese, não justificaria receios diversos. O que de fato parece pesar nos temores de governos e especialistas é uma inédita convergência de impulsos apontando para um mesmo horizonte ampliado de pressão fundiária nos próximos anos.
As fragilidades do abastecimento expostas pela crise foram apenas a ponta do iceberg. O fato é que os aumentos drásticos nos preços das commodities entre 2007 e 2008 abalaram uma arraigada confiança na tendência secularmente baixista nos preços de produtos primários. Na linha do tempo das cotações, desde a II Guerra, houve apenas um precedente que desmentiu essa percepção: durante a crise do petróleo, em meados da década de 70. O que se deu em 2007 e 2008 poderia ser apenas mais um ponto fora da curva, mas não é isso que se desenha, pelo menos por enquanto: segundo recentes projeções da FAO em conjunto com a OCDE, os preços das commodities agrícolas permanecerão elevados na década dificultando assim o acesso de bilhões de pessoas pobres em todos os cantos do mundo.
Essa fornalha carregada de vapor altista não passa desapercebida no radar de fundos e megainvestidores. Insatisfeitos com o baixo retorno das aplicações convencionais na longa convalescença pós-crise, o dinheiro ambulante garimpa oportunidades de rendimento superior ao da papelaria financeira. A aquisição de terras férteis, mesmo sem a intenção imediata de produzir, pode ser uma delas, aquinhoada por uma singularidade adicional: ao contrário das inovações financeiras, terra é um recurso finito que a economia e a engenharia dos mercados não consegue replicar. Mas é por isso também que aquisições definitivas de enormes glebas, ou o seu arrendamento por prazos longos de 50 até 99 anos, como tem ocorrido na África, são discutíveis se não vierem associadas a projetos que ofereçam contrapartidas de desenvolvimento local. A justificativa corrente de que é melhor o grande capital estrangeiro que agrega tecnologia e eficiência à reprodução vegetativa da pequena agricultura contém uma perigosa meia verdade. O truque consiste em utilizar o confronto de escalas como biombo para omitir o debate que verdadeiramente importa: desenvolvimento para quem? Desenvolvimento para quê?
Uma das questões evidenciadas na crise, enfatizada pela FAO, foi a vulnerabilidade de muitas economias que renunciaram ao desenvolvimento agrícola próprio, fragilizando assim a produção familiar em troca de maior dependência externa, com aumento da pobreza no campo e nas cidades. A reversão desse processo demanda decisão política dos governos locais para recolocar a segurança alimentar na agenda das políticas públicas. Os países ricos ajudariam se mudassem a qualidade da ajuda internacional, destinando fundos ao desenvolvimento agrícola, em vez de vincular recursos a doação em especial e importações subsidiadas de alimentos que asfixiam o produtor local.
Carência financeira e defasagem tecnológica constituem fatos inquestionáveis na vida dos agricultores das nações mais pobres. A agonia ou a ressurreição de sua agricultura, porém, dependerá muito mais da forma como esses recursos serão internalizados do que do seu aporte.
A discussão de normas regulatórias para o comércio internacional de terras tem aí um ponto de partida interessante. Cuidados como a transparência nas negociações; respeito pelos direitos existentes; partilha de benefícios com comunidades locais; proteção ambiental e adesão a políticas nacionais de comércio e segurança alimentar, são alguns critérios cogitados preliminarmente, aos quais acrescentaríamos ainda: transferência de tecnologia agrícola; destinação de uma parte da produção ao abastecimento nacional e o desenvolvimento de infraestrutura local que possibilite a irradiação do desenvolvimento. Mais que um veto ao investimento estrangeiro, medidas como essas esboçam um pertinente código de conduta para regular o grande investimento agrícola no mundo pós-crise, seja ele de que bandeira for.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
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