Folha de S. Paulo
[RESUMO] Desde 2017, com a aprovação de
sucessivas mudanças na legislação eleitoral, um turbilhão vem varrendo o
sistema partidário brasileiro. Novas regras, como a cláusula de desempenho e o
fim das coligações, afetaram duramente os partidos pequenos, levando a uma onda
de fusões, federações ou mesmo desaparecimento de siglas. Em consequência,
menos partidos têm conquistado representação na Câmara e no Senado, diminuindo
a fragmentação do Legislativo no Brasil, que já foi a maior do mundo.
Acompanhar o turbilhão de transformações
do quadro
partidário brasileiro na última década não é uma tarefa fácil. Poucos
jornalistas ou cientistas políticos conseguiram descrever, com segurança, as
mudanças recentes, tamanha a velocidade que apresentaram.
A partir de 2017, 13 partidos mudaram de
nome, cinco desapareceram por terem sido incorporados por outros, e duas novas
legendas (União e PRD) foram criadas a partir de fusões. De forma geral, o
Brasil, que chegou a 35 legendas distintas em 2015, deve passar agora a 24.
O PTB, que já abrigou Getúlio
Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, foi
um desses partidos com fim melancólico, ao se fundir com o Patriota para
formar o PRD (Partido da Renovação Democrática), em 2023.
Estão em curso uma atribulada e ainda incerta
fusão de PSDB e Podemos e uma federação entre União e PP.
O
PSDB talvez seja o caso mais impressionante de declínio de um partido na
história do Brasil. Durante três décadas, foi um protagonista das eleições
presidenciais (com duas vitórias de Fernando Henrique Cardoso, em 1994 e 1998,
e a disputa do segundo turno nas quatro eleições seguintes).
Além disso, elegeu bancadas significativas no
Congresso e conquistou um número expressivo de prefeituras e governos de
estado. O símbolo disso era São Paulo, onde o partido elegeu o governador sete
vezes seguidas entre 1994 e 2018.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo
Leite, uma das principais lideranças tucanas, deixou
o partido em maio deste ano para se filiar ao PSD. A governadora de
Pernambuco, Raquel Lyra, fez
o mesmo movimento em fevereiro.
O PSDB, que chegou a eleger 99 deputados federais em 1998, tem atualmente apenas 13, uma bancada menor que a do Podemos (15 deputados).
Uma eventual fusão, com o Podemos ou outra
sigla, em vista do impasse atual, poderia garantir que a nova legenda formada
ultrapassasse nas eleições de 2026 a votação mínima para garantir acesso ao
fundo partidário e a tempo de propaganda eleitoral. Se pensarmos no lugar
central que os tucanos ocuparam até meados da década de 2010, essas
metas soam muito pouco ambiciosas.
A outra grande mudança atual, a
junção de dois partidos de direita, União e PP, em uma federação foi uma
surpresa no meio político. As duas legendas têm importantes lideranças e
obtiveram bom desempenho nas eleições municipais do ano passado. Possuíam,
portanto, alta probabilidade de ultrapassarem, sozinhas, as regras de
desempenho estipuladas para a próxima eleição, que determinam o acesso a
recursos públicos.
O que teria levado, portanto, a optarem pela
federação? O
mecanismo permite que os partidos se aliem na disputa eleitoral, de
forma similar como ocorria com as antigas coligações, somando tempo de TV e
também os votos na hora do cálculo do quociente eleitoral. Na federação,
contudo, os partidos ficarão juntos pelos próximos quatro anos, não apenas
durante as eleições.
Sabemos pouco sobre as principais motivações
dos dirigentes nacionais. O fato é que a nova organização, por conta de seu
tamanho, se tornará uma peça fundamental na disputa presidencial de 2026. Outro
benefício é a concentração de recursos de campanha; a federação será o grupo
com mais verbas do fundo eleitoral.
União e PP, juntos, têm a maior bancada da
Câmara Federal (109 deputados). É um número expressivo, no cenário de alta
dispersão partidária que caracteriza a democracia brasileira. Para se ter
uma ideia, desde o fim da ditadura, apenas dois partidos ultrapassaram essa
marca nas urnas, ambos em 1986; o PMDB com 250 deputados e o PFL com 119.
De forma geral, constatam-se, desde 2019, a
redução do número de partidos com assento no Legislativo e o aumento de
representantes eleitos de algumas legendas. Esse processo está acontecendo mais
rápido do que eu imaginava poucos anos atrás.
Para entender a compactação do sistema
partidário, contudo, temos que recordar o processo inverso, de expansão
paulatina da fragmentação por três décadas.
Nas eleições de 2018, os
brasileiros elegeram a Câmara mais fragmentada não apenas da história do país,
mas da de qualquer democracia. Trinta partidos conquistaram vagas —o PT, o
maior deles, teve apenas 56 deputados eleitos.
Um exercício simples pode dar uma ideia do
tamanho da dispersão de poder na legislatura iniciada em 2019. Imagine uma
situação em que dois deputados se encontrem aleatoriamente no corredor da
Câmara. A probabilidade de que pertençam a partidos diferentes é de 95%.
Por que a fragmentação partidária chegou a
níveis tão altos no Brasil? Sabemos que humanos em geral, e políticos em
particular, reagem a incentivos. E, grosso modo, desde a redemocratização até
2018, as regras do sistema eleitoral ofereceram alguns incentivos para que
muitos políticos preferissem atuar em partidos menores.
No Brasil, os políticos fazem suas carreiras
orientados para os estados e as cidades onde foram eleitos. Em um cenário de
mais de 30 partidos registrados, o incentivo para se filiar a um de pequeno
porte era significativo.
Em uma legenda menor, havia a possibilidade
de ser um dirigente no âmbito estadual ou municipal, participar da seleção das
listas de candidatos, ter influência na distribuição de recursos do fundo
partidário e do acesso à campanha no rádio e na televisão, barganhar com siglas
maiores a participação nas coligações eleitorais e nos governos. Sem contar que
o artificio da coligação nas eleições proporcionais permitia a vitória de
deputados com votação reduzida.
Mudanças na legislação partidária e
eleitoral, aprovadas na segunda metade dos anos 2010, têm afetado os pequenos
partidos. Os incentivos que existiam para eles acabaram. Atualmente, um
parlamentar que optar por permanecer em um deles pode ter grandes dificuldades
em se eleger.
A primeira mudança na legislação eleitoral
que impactou os pequenos partidos foi a cláusula de desempenho. Desde 2018, as
siglas necessitam obter uma votação mínima nas eleições para a Câmara dos
Deputados para terem acesso a dois preciosos recursos políticos: o fundo
partidário e o acesso a tempo de rádio e televisão.
O percentual começou em 1,5% em 2018, passou
para 2% em 2022, será 2,5% em 2026 e chegará a um patamar definitivo de 3% em
2030. O não cumprimento dessas metas não leva à perda de registro, mas implica
passar quatro anos a pão e água.
Em 2018, 14 partidos não conseguiram
ultrapassar a cláusula de desempenho. Em 2022, o número chegou a 15. Alguns deles
foram incorporados por partidos maiores (HS e PSC ao Podemos; o PROS ao
Solidariedade), outros decidiram participar de federações (Rede, PCdoB,
Cidadania e PV). Há também os que sobrevivem sem os recursos do fundo
partidário, casos, por exemplo, do Novo, DC, PCB, PCO, PSTU e UP.
O fim das coligações nas eleições
proporcionais teve um forte impacto nas chances de as siglas menores elegerem
representantes. A medida entrou em vigor nos pleitos de 2020 e reduziu
significativamente o total de partidos representados nas Câmaras Municipais,
especialmente nas cidades pequenas, que elegem até nove vereadores. Em 2022, o
número de legendas que elegeu deputados caiu em todos os estados.
Nesse cenário, os legisladores brasileiros
inventaram o instituto da federação partidária, mecanismo intermediário entre a
coligação (uma aliança estritamente eleitoral) e a fusão (a extinção dos
partidos originais e a criação de uma nova legenda).
Os partidos federados são obrigados a ficar
juntos por quatro anos (na alegria e na tristeza). Devem se manter como uma
entidade única nos legislativos e concorrer juntos em todos os estados nas
eleições gerais e nas municipais subsequentes.
A federação foi criada para garantir um
respiro aos pequenos partidos. Vale lembrar que a votação das legendas
federadas é somada nos cálculos da cláusula de desempenho. Por essa razão, a
surpresa de dois partidos de direita (União e PP, que não são pequenos) terem
optado por utilizá-la.
Tudo
somado, os impactos foram profundos, como já ressaltado. O número de
partidos registrados caiu, minguaram os pedidos de criação de novos e a
dispersão partidária voltou ao padrão da década de 1990. A representação
partidária na Câmara caiu quase à metade, de 30 siglas com assentos em 2019
para 16 agora. Vale destacar que a compactação tem acontecido com mais
intensidade à direita do espectro partidário.
Hoje três bancadas de partidos de direita
chegam a quase metade da Câmara dos Deputados. São 109 da federação União-PP,
90 do PL e 40 do Republicanos, somando 47% (de um total de 513 vagas). As
pequenas legendas, que já tiveram um número expressivo de cadeiras, foram
paulatinamente incorporadas pelas maiores.
No ano que vem, durante a janela partidária
de março, quando os parlamentares poderão mudar de sigla sem risco de perder o
mandato, as migrações individuais devem ser na direção das maiores legendas,
que já possuem mais recursos do fundo eleitoral e tempo de propaganda no rádio
e na televisão.
Não temos ideia de como será a composição do
Congresso eleito em 2026. De todo modo, é alta a probabilidade de que a Câmara
e o Senado tenham menos legendas, e o poder partidário esteja mais concentrado.
Ao escrever este texto, percebi que todo esse
movimento de reconfiguração partidária está ocorrendo exclusivamente na elite
política. Trocas de nomes de legendas, incorporações, fusões e federações são
frutos de escolhas feitas pelos dirigentes em busca de sobrevivência.
O efeito é um "mercado partidário"
reconfigurado, mais concentrado, com menos oferta e com algumas legendas que
passaram por uma tentativa de reposicionamento da marca.
Atualmente, os cidadãos que não vivem da
política têm pouco interesse pelos partidos. Embora cheias de recursos do fundo
partidário, as legendas encontram dificuldade de atrair militantes e pessoas
dispostas a concorrer em eleições. Desafio que também atinge o PT, o melhor
exemplo na história brasileira de um partido que surgiu fora da esfera
parlamentar.
Resta saber se essa nova oferta do sistema
partidário —mais enxuto, com produtos renomeados— será suficiente para
despertar o interesse dos eleitores.
*Cientista político, professor e pesquisador
da FGV/CPDOC, é autor dos livros ‘O Brasil Dobrou à Direita: uma Radiografia da
Eleição de Bolsonaro em 2018’ (2020) e ‘Representantes de Quem? Os
(Des)caminhos do seu Voto, da Urna à Câmara dos Deputados’ (2017), ambos
publicados pela editora Zahar
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