Reformas nos farão correr atrás do próprio rabo de novo
No dia 31 de janeiro publicamos um artigo nessa mesma coluna sobre financiamento de campanhas eleitorais no Brasil. Naquele texto usamos a metáfora do cachorro correndo atrás do próprio rabo na tentativa de explicar os dilemas de mudanças nas regras de financiamento eleitoral. De fato o é. A incansável busca por probidade no processo de representação política e na gestão pública coloca a agenda de reformas como uma constante em toda a trajetória política do Brasil depois de 1988.
No Brasil, a transição para a democracia foi operada por meio de um pacto negociado e permanentemente renegociado entre as elites políticas. O pacto é o acordo explícito que define as regras do jogo político, as quais orientam o comportamento dos agentes e estabelece as garantias mútuas para os participantes. No cenário da transição democrática, esse pacto - não democrático em essência - levou o Brasil rumo à democracia. Aparentemente contraditório, esse cenário de transição assegurou estabilidade por meio de mudanças políticas e institucionais firmes, balizadas na ação das elites políticas.
Submetida a esse controle das elites políticas, a estabilidade foi assegurada não só pelas regras do jogo, mas também pela diminuta possibilidade, àquela época, de revolta popular e violência política. Esta violência foi confinada a espaços restritos, onde a desigualdade se faz mais presente e iníqua. O fato é que a democracia brasileira guarda, em suas origens, fortes elementos oligárquicos.
O resultado disso foi produzir, ao longo do processo de democratização, uma desigualdade institucionalizada em termos de participação e fortes impedimentos à publicidade do regime em função da escassa transparência. A transição para a democracia se encerrou quando alcançamos a situação de normalidade do regime. As normas do regime são respeitadas e claras quanto ao acesso aos cargos eletivos e aos meios que podem ser empregados para dirimir o conflito mediante procedimentos de tomada de decisão.
Essa mesma democracia com fortes traços oligárquicos passou a conviver com uma sociedade civil gradualmente ativa, ao espírito da transição. Num cenário de negociação e renegociação permanente, que passou pelo impeachment do presidente Collor à carta ao povo brasileiro do presidente Lula, a regulamentação da competição política e a distribuição de benefícios entre os agentes, tais como cargos ministeriais e parcelas do orçamento, passaram a configurar a agenda de reformas.
No cenário do conflito político, essas mudanças sequenciais das regras e das instituições possibilitaram transformações marginais e graduais dos efeitos perversos das desigualdades sociais e econômicas. Mas, ao mesmo tempo, promoveram forte desencanto por parte da cidadania, em que as expectativas normativas com a democracia foram frustradas com o desempenho dos governos em relação aos resultados das políticas públicas. O contexto configurado depois de 25 anos de transição é uma democracia com traços oligárquicos convivendo com forte desconfiança dos cidadãos em relação ao desempenho das instituições políticas.
Nesse contexto, ao menor sinal de crise, a agenda de reformas é compelida à primeira estratégia de combate. Assim o fizeram todos os presidentes depois da democratização. Com o apelo de uma sociedade civil que reclama do desempenho ruim de políticas públicas essenciais, tais como saúde e segurança, e da forte corrupção praticada por políticos e burocratas, a agenda de reformas se tornou constante, obrigando uma permanente renegociação das regras do jogo político. A reforma política, em particular, é sempre acionada como solução para todos os problemas, colocando os agentes do pacto na corda bamba, buscando equilibrar a incerteza das mudanças com o equilíbrio do status quo.
Continuo mantendo a metáfora. A espiral de reformas nos coloca como um cão estressado correndo atrás do próprio rabo. Pobre animal. Treinadores de cães experientes dizem que o problema se resolve quando o cão vai para a rua. Verdade. É necessário colocar uma coleira e passear com ele até que saia dessa situação de estresse. Muitos atores políticos apostaram em colocar a política brasileira na rua, desde junho passado. Remédio certo. Mas precisamos considerar o tamanho do cão e o seu nível de estresse.
O cão, nesses termos, parece maior e mais feroz do que muitos calcularam. Depois de anos batendo cabeça atrás de reformas, a sociedade foi para a rua. Rolezinho na rua não faz mal a ninguém. Porém, em uma democracia originada de elementos oligárquicos, o recurso à violência e a reação desproporcional em manifestações se tornam regras de conduta. Aí temos um problema. Qual a capacidade das instituições de dirimir e solucionar o conflito? Reformas nos colocarão a correr atrás do próprio rabo novamente.
O fato é que, mais do que em qualquer outro momento da nossa ainda recente democracia, será necessário fazer a máquina pública funcionar, ampliar a participação e mitigar a desconfiança que cerca os governos democráticos no Brasil. Será preciso liderança e construir um projeto político viável. A conjuntura é de mudança.
Fernando Filgueiras é professor de Ciência Política da UFMG, coordenador do Centro de Referência do Interesse Público (Crip)
Fonte: Valor Econômico
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