• Em nova coletânea, crítico Antonio Carlos Secchin faz cuidadoso estudo sobre o poeta pernambucano
Rodrigo Petrônio* - O Globo / Prosa
RIO — Em meio às valiosas contribuições de especialistas nas obras de João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, as análises de Antonio Carlos Secchin ocupam um lugar de destaque. O horizonte crítico desses poetas acaba de se expandir ainda mais. Trata-se da chegada de duas novas obras de Secchin: “Papéis de poesia: Drummond & mais” (Editora Martelo), com orelha de Alfredo Bosi e prefácio de Antonio Cicero, e “João Cabral: uma faca só lâmina” (Cosac Naify) — livro que será lançado dia 16, às 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon.
Drummond é analisado em um conjunto de artigos breves que abrangem desde a estreia, com “Alguma poesia” (1930), passando por “A rosa do povo” (1945) e por uma interessante anatomia da composição de “Os 25 poemas da triste alegria” (1924), conjunto póstumo editado por Secchin em 2012. Como foram originalmente enviados a Mário de Andrade em cartas, Secchin retoma a epistolografia entre ambos para captar as impressões do mentor e assim traçar um perfil do jovem Drummond que iniciava suas lides poéticas. A obra de Secchin traz ainda breves anotações e análises de Euclides da Cunha, Pereira da Silva, Alphonsus de Guimaraens, Ferreira Gullar e Paulo Henriques Britto.
Quanto a Cabral, além de ser o organizador de suas obras completas, Secchin é autor do clássico “João Cabral: a poesia do menos”, de 1987. Contudo, o recente estudo é composto pela reedição de apenas dois capítulos desta obra anterior, “O mundo onírico” e “A família reescrita”, e por um ensaio publicado na revista “Colóquio/Letras”. Todos os demais capítulos são inéditos e exclusivamente escritos para este novo olhar sobre a poesia mineral e luminosa do poeta pernambucano.
A tese de Secchin continua a enfatizar a poesia de Cabral como uma poesia de sinal de menos, ou seja, uma poesia antilírica que se situa em uma região de negatividade e desconfia de todo tipo de expressividade sentimental. Mediante esse critério, uma das primeiras tarefas críticas consiste em compreender como a atmosfera antirrealista, que permeia toda a obra de Cabral, pode ser entendida sua notória defesa de uma poética construtivista e racional.
De saída, é possível divisarmos duas matrizes. A primeira diz respeito à concepção de poesia como exercício de lucidez. Ela é marcante desde “Primeiros poemas” (1937), onde os homens passam com a “consciência de que estão representando”. Trata-se de uma criação ao mesmo tempo crítica e crise, porque se institui como forma autorreflexiva. E é completada por uma segunda matriz: a presença de um forte campo semântico que reforça a poesia como sinal de menos, avessa aos arroubos noturnos: sol, mineral, geometria, pensamento, claridade, praia, arquitetura.
Contudo, Cabral teve um intenso diálogo com artistas de orientação surrealista, e sua poesia incorpora diversos elementos do sonho. Como equacionar sonho e lucidez? A partir de “Os três mal-amados” (1943) e “O engenheiro” (1945), Secchin identifica uma “desativação onírica” em sua poesia. Esse movimento não ocorre por meio de uma supressão das imagens, em direção à poesia pura, tal como ocorre em Jorge Guillen ou Paul Valéry, por exemplo. Tampouco segue as premissas de uma poesia abstrata como a de Wallace Stevens.
No caso de Cabral, há uma inversão da relação de prioridade imagem-realidade: não é o mundo dos sonhos que modela o real, o real é que “penetra o onírico e o modela à sua imagem”. Essa alteração é decisiva para se compreender o convívio entre “metáforas orgânicas” e uma poética mineral de retorno ao inorgânico. Além de ser um poeta da contenção, Cabral é um poeta da contingência. O poema é uma máquina de comover, no sentido de Le Corbusier. Mas é também um receptor de impurezas. O poeta é um engenheiro, sim. Mas a poesia não é flor, mas fezes. Em “O cão sem plumas” (1950), “O rio” (1953), “Morte e vida severina” (1954-55), “Paisagens com figuras” (1955), Secchin capta a tensão entre o orgânico e inorgânico, e como esses elementos se organizam no nível da forma como imagem penetrada pelo real.
Em “Uma faca só lamina” (1955) teria ocorrido uma “encruzilhada dialética” na obra do poeta. A partir dela, toda matéria poética associada ao ego tende a desaparecer, e a ser subsumida a uma noção de eficácia. A imagem do poema como máquina assume o palco de sua poesia. Em “Quaderna” (1959), “Serial” (1959-61) e “Dois parlamentos” (1960), a função maquínica tende a se aprofundar a partir de um controle cada vez maior da linguagem e de uma exploração cada vez maior de recursos paralelísticos e seriais de composição, tanto no nível macro quanto na microscopia dos poemas.
Essa oscilação entre construtivismo e contingência explica por que, em “Museu de tudo” (1975), Secchin detecta os mesmos temas obsessivos, porém deslocados. O sentido autobiográfico e a “carga memorialística” presentes nesses poemas em nenhum momento dão origem a uma poesia do eu ou a uma poética confessional. Mais uma vez reincide a negatividade: o museu de tudo é uma espécie de “caixão de lixo”, ou seja, a contingência do tempo e de todas as suas consequências desrealiza o sonho da eficácia e da serventia, bem como a expectativa transcendental da obra de arte. O forte diálogo com as artes plásticas, os poemas-homenagens, a geografia de Pernambuco e da Península Ibérica, a incursão nos topoi ligados ao sinal de menos marcam as últimas obras do poeta, como “A escola de facas” (1980), “Auto do frade” (1980), “Agrestes” (1985), “Crime na calle Relator” (1987) e “Sevilha andando” (1994).
Embora leiamos sempre ao fundo o diálogo com alguns expoentes da fortuna crítica de Cabral, como Benedito Nunes, João Alexandre Barbosa, Luiz Costa Lima, Haroldo de Campos, José Guilherme Merquior, um dos méritos deste novo livro de Secchin é o de não se envolver nos debates hermenêuticos. Concentra-se em um cuidadoso escrutínio formal e nas principais linhas de força da poesia cabralina, palavra a palavra e verso a verso. Um estudo já essencial para todos que queiram ler melhor a obra desse poeta que, como Paul Celan, concebeu a escrita como inscrição fóssil. Apenas como sinal de menos diante da vida a linguagem se transforma em poesia.
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* Rodrigo Petronio é escritor, filósofo, professor de pós-graduação da FAAP e autor e organizador de diversas obras
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