- O Estado de S. Paulo (12/4/2015)
Em um recente e esclarecedor texto (“Democracia, entendimento e o fator Temer”, disponível em http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1771), o competente cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, professor da Universidade Federal da Bahia, sustentou uma instigante hipótese para que se pense nas saídas que se abrem para a resolução da crise política que corrói o governo Dilma. Para ele, “um bom pacto ajuda mais do que uma custosa cirurgia institucional”.
Paulo Fábio fundamenta sua posição numa análise criteriosa da situação política e da correlação de forças que hoje se batem no País. Não faz agitação, mas esforço de compreensão, exercício com que se busca limpar o terreno do entulho acumulado, persuadir por meio da razão e direcionar protagonistas.
Ele nos ajuda a refletir sobre a questão que hoje está posta na mesa: se nossa “elite política” prolongar seu fracasso e persistir na repetição das rotinas de que se tem valido nos últimos tempos, poderá haver solução virtuosa que dê às ruas excitadas um horizonte político confiável? A representação política – com a qual toda sociedade complexa mantem uma relação de dependência essencial – não age somente impulsionada pelos fluxos e pressões sociais, que refletem mudanças estruturais em curso e alterações nos humores cívicos. Ela também precisa da ação inteligente da elite dirigente: de estratégias, escolhas e atitudes que criem caminhos e brechas.
Paulo Fábio faz a pergunta certeira: “O que esperar de partidos e lideranças políticas quando, em momentos de insatisfação social ou de dificuldades econômicas, o jogo democrático apresenta-se truncado pelos impasses habituais das táticas do varejo político, ou quando as crises até resultam, em parte, desse próprio varejo? Espera-se que os partidos atuem como instituições (corpo organizado de regras) e os líderes como estrategistas do atacado, para restabelecerem a fluência do jogo. Às vezes, a perturbação é tão grave que é preciso mudar as regras. Mas na maioria dos casos um bom pacto ajuda mais do que uma custosa cirurgia institucional”.
Para ele, só teremos a perder se nos deixarmos aprisionar pelo “equívoco da percepção moralista da política no atual contexto brasileiro que é a demonização generalizada da nossa classe política e da sua vocação histórica para estabelecer pactos”. A imagem corrente tem reduzido os políticos à condição periférica de artífices de maldades sem-fim, uma espécie de “classe” predisposta a lutar exclusivamente por seus interesses corporativos. Trata-se de uma chave interpretativa que conta com a má qualidade dos componentes desta “classe”, mas que comete o erro primário de jogar fora a criança com a água suja do banho. Ou seja, reflete mais a indignação que vê os políticos como problema do que a compreensão crítica que percebe, neles, a presença de um recurso estratégico para o alcance de soluções coletivas.
Num livro que publiquei vários anos atrás (Em Defesa da política, Editora Senac São Paulo, 2001) e que me parece permanecer atual, também me pus o dilema: “supondo que fosse possível e razoável imaginar a completa extinção da classe política, quem faria o que fazem os políticos?”.
Como a história nem sempre é incluída nas percepções cotidianas da população, de repente se esquece que a obra da redemocratização – a ultrapassagem da ditadura, a reconstitucionalização do País, a eleição de governos democráticos – foi essencialmente uma operação política e não fruto do acaso ou de vontades arbitrárias. O eixo da transição democrática não foi fixado unilateralmente pela indignada pressão popular, mas por uma combinação fina de luta e conciliação, para a qual a elite política contribuiu de forma decisiva. Não houve somente brados de “abaixo a ditadura” e “fora militares”, mas muitas idas e vindas, muita sinuosidade, muitas conversas de bastidores, muita ação política e de políticos. Avanços efetivos existiram porque os slogans primários foram compensados por soluções políticas racionais.
A análise instigante do cientista político baiano ajuda a que se entenda, por exemplo, que o “fora Dilma” de hoje não contém em si nenhum passo à frente. As manifestações que têm se sucedido no País estão soltas no ar, carentes de cálculo racional e politização. Alimentam-se mais de decepção, ressentimento e frustração do que de busca de saídas coletivas. Apesar disso, não são pouca coisa, nem muito menos puro e simples exemplo de uma “conspiração” organizada pela mídia e pela “elite branca e golpista”, como sustentam setores do PT e do próprio governo.
O realismo político de Paulo Fábio faz com que ele ressalve até mesmo aquilo que tem sido visto como problema principal: o protagonismo adquirido pelo PMDB, que a rigor, nos últimos meses, praticamente encapsulou o governo Dilma. Sua análise sustenta a percepção, igualmente realista, “de que tem predominado, também nos ambientes políticos, o conflito entre o senso comum moralista e a lógica corporativa de um partido político. Seja por pragmatismo eleitoral ou por interesse patrimonialista, a elite política nacional (ao menos algumas de suas mais relevantes facções) flerta perigosamente com a silhueta de uma vala comum, onde a conjunção de crises ameaça jogá-la por inteiro”. Mas a elite política não é, e nunca foi nem será, um bloco monolítico, que atua como manada. Crises, além do mais, não significam o fim de tudo ou a inviabilização geral da nação.
“Podem ter o papel pedagógico de atiçar o instinto coletivo de sobrevivência, próprio de elites políticas experientes no governo da sociedade”. Por isso, na medida em que a crise política atual avança, mais ganham visibilidade certos atores “cuja estratégia mobiliza o entendimento como método”. Seria este o caso da desenvoltura com que passou a atuar o Vice-Presidente da República e também Presidente do PMDB, Michel Temer, “a quem não tanto a virtù, mas a fortuna transforma em peça importante para a viabilização de um cenário em que o idioma do entendimento pode levar a um desfecho em que a crise é espantada por uma conciliação”.
Paulo Fábio defende a possibilidade de uma solução virtuosa da crise pela via de “um arco de partidos, do governo e das oposições”, que viabilize o controle da economia e a pavimentação de um caminho institucional comum até as eleições de 2018. Nesta engenharia, o PMDB tenderá a jogar papel de relevo, seja em nível mínimo – ao fornecer ao PT melhores condições de governança – ou máximo, ao contribuir para que se articule uma frente política mais ampla que forneça algum vigor para o sistema de governo. Temer não é Renan nem Cunha: é uma espécie de obstáculo à ação desenfreada dos presidentes das duas casas legislativas. Encarna o PMDB “institucional”, com instinto aguçado de sobrevivência e qualificado para interferir com cálculo racional-democrático no cenário político.
O cientista político baiano não sabe “se será o governo ou a oposição (tucanos + PSB, PPS, etc.) quem entenderá primeiro que essa saída passa necessariamente pela atuação (e não pelo descarte) do PMDB institucional, entendimento que aconselha o fortalecimento de Temer e o esvaziamento do poder de Cunha e Renan, o que não é sinônimo, vale dizer, de enfraquecimento do Congresso. Há sinais, embora ambíguos, nos dois campos políticos principais, de que algo começa a se mover na direção dessa compreensão”. Da parte da situação, o governo poderá fazer de Temer “o canal de atendimento de algumas demandas das bases congressuais, como também “terceirizar”, através dele, um diálogo com a oposição”. Os grupos oposicionistas, por sua vez, poderão “encontrar em Temer um emissário junto ao próprio governo para negociar condições de aprovação das medidas de ajuste na economia” e para “construir uma agenda mais ampla, resgatando o discurso da campanha de Aécio Neves, que se pôs como candidato não só do PSDB, mas de um conjunto de forças que querem mudanças na orientação de governo, dentro dos marcos de uma institucionalidade democrática”.
Se passos nessa direção serão dados de fato é algo que não pode ser afirmado agora. Há problemas e dificuldades em boa dose e o tempo é inimigo de todos, para o bem e para o mal. Em ambos os lados já há quem se disponha a correr os respectivos riscos e se mova para o diálogo, mas há também quem jogue contra o diálogo. Falta grandeza e são poucas as lideranças com disposição e competência para fazer a roda girar em sentido positivo. O sentido de urgência ainda não se disseminou e depende da percepção dele a multiplicação de esforços em prol do diálogo democrático. Pequenos acordos ou pactos poderão, assim, evitar que a elite política fique alijada ou sem condições de traduzir em termos políticos e institucionais os desdobramentos da Operação Lava-Jato e o clamor das ruas excitadas.
O também analista político Luiz Eduardo Soares seguiu caminho parecido, numa inspirada postagem feita nas redes sociais (agora no site Gramsci e o Brasil:http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1775). Às ponderações de Paulo Fábio, acrescentou uma firme e equilibrada contestação da ideia de “frente de esquerda” apresentada pelo diretório nacional do PT como forma de emprestar oxigênio e poder de comando ao governo Dilma.
Soares percebe que há uma “onda conservadora” crescendo no Congresso, “sob a batuta do que há de pior no PMDB — que ocupou o espaço deixado vazio pela desmoralização do PT e do governo”. Esta onda ameaça as conquistas sociais e os direitos civis e trabalhistas, além de alimentar a “crise provocada pelo bonapartismo arrogante e obscurantista de Dilma”.
Há no quadro atual pressões paralisantes, de caráter defensivo, e pressões mobilizadoras, que de algum modo podem potencializar a participação cidadã. Estas últimas ganharam alento com as manifestações de 15 de março e de hoje, 12 de abril, dando a sensação de que as ruas tenderiam a encurralar o governo. O problema é que os vetores de mobilização ainda não se combinaram com perspectiva política democrática, empurrando os cidadãos para atitudes de mágoa, frustração e ressentimento, facilmente capturadas por forças mais conservadoras e autoritárias, à direita e à esquerda.
A opção pela formação de “frentes de esquerda sectárias, estreitas, enamoradas do chavismo e dos populismos autoritários” não se mostra nem factível, nem particularmente virtuosa, até porque caminha na contramão das tendências em curso. Nas palavras de Luiz Eduardo Soares, a frente esquerdista proposta por parte do PT “é composta por lideranças e partidos que não foram capazes de enxergar aonde nos conduzia a política econômica desastrada de Dilma, ao longo do primeiro mandato, e que tampouco compreenderam como e por que a adesão do governo e do PT aos métodos políticos tradicionais, e sua tolerância com a corrupção, aprofundariam o descrédito da política, atingindo o coração da democracia”.
Na melhor das hipóteses, a ideia de que a saída da crise está à esquerda somente tem como efeito a reprodução de um discurso bipolarizado que se vale do simbolismo do “nós” contra “eles” para manter a política em estado de tensionamento moral e turbulência. Pode interessar circunstancialmente ao governo Dilma, mas não sugere nenhuma saída para sua crise. Acima de tudo, não valoriza a necessidade de se defender direitos e conquistas, não dialoga nem com a sociedade nem com seus setores mais indignados, que são literalmente empurrados para a direita.
A conclusão de Luiz Eduardo Soares é semelhante à de Paulo Fábio Dantas Neto. “O futuro a buscar é uma governança transparente, rigorosamente refratária à corrupção, aberta à participação, respeitando os direitos históricos dos trabalhadores, comprometida com a pauta humanista, os direitos humanos, os direitos dos indígenas, com a sustentabilidade e a redução das desigualdades, e refratária a improvisações irresponsáveis de efeitos destrutivos, sob a forma de um capitalismo de Estado ou de um projeto populista desenvolvimentista”.
O momento exige discernimento e pensamento complexo. Cientistas políticos como os mencionados aqui nos ajudam a pensar e sugerem pistas para que avancemos em termos de diálogo democrático e de ação política de novo tipo.
Enquanto o mundo assiste ao encontro entre Obama e Raul Castro e os brasileiros constatam que suas dificuldades são bem maiores do que se deduzia do discurso oficial dos últimos anos, faz nenhum sentido insistir no maniqueísmo e ficar gastando energia para saber se foram 100 ou 100.000 os que saíram às ruas para extravasar indignações.
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Marco Aurélio Nogueira é professor de teoria política na Unesp
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