- Valor Econômico
Os otimistas deveriam ficar alertas com possíveis novos banhos de água fria
Há um clima de otimismo no ar respirado pelos meus colegas economistas. Muitos acreditam que o PIB do Brasil agora vai deslanchar. As causas do otimismo são diversas. Pelo lado estrutural, a tal “agenda de reformas”. Pelo lado conjuntural, principalmente o canal do crédito. Vejamos este último.
Para quem não sabe, o canal do crédito é um dos mecanismos de transmissão da política monetária. Quando o Banco Central reduz a taxa Selic, esse movimento barateia o custo do capital, o que aumenta as concessões de empréstimo e a demanda agregada. No curto prazo, quando há capacidade ociosa, o aumento da demanda agregada eleva o PIB do país.
Há estudos que sugerem que o canal do crédito é o principal mecanismo de transmissão da política monetária para a atividade econômica no Brasil. Isso quer dizer que quando o Banco Central reduz a taxa básica de juros, é do mercado de crédito que vem o maior empurrão para o PIB.
Muitos colegas imaginam que o empurrão dessa vez será forte. Além da taxa Selic estar hoje na mínima histórica, há perspectiva de que ela possa diminuir ainda mais nos próximos meses (até 4,25%, segundo o Focus), permanecendo em patamares reduzidos por um período relativamente longo.
Além disso, o mercado de crédito brasileiro passou recentemente por algumas mudanças, que, em tese, tornariam o crédito direcionado mais sensível às alterações na Selic. Por exemplo, a mudança da TJLP para a TLP teria aumentado a potência da política monetária, fortalecendo o canal do crédito.
As estatísticas dão algum amparo para os otimistas. No acumulado em 12 meses até outubro, os novos empréstimos do Sistema Financeiro Nacional cresceram, em termos reais, 8,5%. No segmento do crédito livre, o crescimento foi ainda maior, de 9,3%. O canal parece estar, de fato, com saúde.
Mas será que o otimismo se sustenta adiante? Da forma como vejo, é preciso cautela com a crença compartilhada que se formou.
Primeiro, porque a aceleração do PIB depende de uma aceleração do crédito. Ou seja, não basta que o crédito cresça, mas sim que essa taxa de crescimento seja cada vez maior. E essa aceleração ainda é incipiente, depois de alguns meses sem acontecer, não sendo claro que ela vá continuar.
Embora a taxa Selic esteja muito baixa (4,5%), a taxa média de juros do crédito livre ainda se encontra no mesmo patamar (36%) de maio de 2014, quando a Selic estava em 11%. Se a Selic diminuiu, mas a taxa cobrada na ponta não caiu proporcionalmente, isso quer dizer que o spread bancário aumentou. De fato, o spread médio era de 24,6% em maio de 2014 e passou para 30,4% no último dado disponível.
Curioso notar que a taxa de inadimplência do crédito livre é mais baixa hoje do que era em maio de 2014 (3,9% contra 4,6%), a alíquota efetiva de compulsório também é menor e o crédito direcionado encolheu bastante. Ou seja, vários dos tradicionais “culpados” pelo alto spread bancário sugeririam um spread mais baixo hoje (e não mais alto!).
A alta concentração e a falta de competição bancária estão cada vez mais evidentes. A sensação que dá é de que a maré baixou e descobrimos que os bancos estavam nadando pelados. Esse, aliás, é um tema quente de pesquisa aplicada, vide a tese de doutorado de Gustavo Joaquim, recentemente defendida no Massachusetts Institute of Technology, que sugere que falta de competição causa spreads maiores.
Uma segunda razão para minha cautela com o canal do crédito tem a ver com o fato de que as famílias e empresas ainda estão bastante endividadas no Brasil. O endividamento das famílias, por exemplo, está em 44,8%, próximo do pico de 46,8% de 2015, o que sugere consumidores ainda alavancados.
Ainda que o grau de comprometimento da renda disponível das famílias seja menor hoje do que nos últimos anos, o patamar atual é superior à média histórica, com 20,6% da renda familiar atualmente comprometida com o serviço das dívidas contraídas no passado.
No caso das empresas, o último Relatório do Centro de Mercado de Capitais (Cemec) revela que: (i) a alavancagem das firmas (sem Petrobrás) caiu pouco desde o pico de 2015; (ii) muitas empresas ainda não conseguem gerar caixa para pagar as despesas financeiras.
É improvável que muitas dessas firmas consigam obter crédito - sendo que algumas devem morrer na ausência de fôlego financeiro.
Terceiro, porque o argumento de que a mudança da TJLP para TLP aumentaria a potência da política monetária é, no mínimo, polêmico. A evidência empírica mais recente, fruto de modelos macro de equilíbrio geral (um deles meu, em parceria com Maurício Furtado e Vinícius Cerqueira), coloca dúvidas no entendimento consensual. Além disso, exercícios preliminares sugerem que a responsividade da TLP real não é estatisticamente muito diferente da responsividade da TJLP real frente a mudanças na Selic.
Quarto, que mesmo considerando a tão propalada pujança do mercado de capitais (crédito em uma acepção mais ampla), esta esconde o fato de que muitas empresas estão aproveitando a janela para trocar dívida cara e em moeda estrangeira por dívida barata e em reais, sem utilizar esses recursos para investir, com impactos limitados na demanda agregada.
Por fim, é importante reconhecer que o canal do crédito é apenas um dos fatores que estão atuando sobre o PIB no curto prazo. Há muitas forças concorrentes, muitas delas contracionistas, atuando sobre a atividade, como a política fiscal, a política parafiscal, a incerteza mundial e o PIB de alguns parceiros comerciais - especialmente Argentina (em contração) e China (em desaceleração).
Ademais, alguns itens da agenda de reformas, como as privatizações, podem ter efeitos contracionistas no curto prazo.
O fato é que estamos em plena década frustrada, conforme argumentei em coluna aqui no Valor em 10/04/2019. Há muitos anos (desde 2011) estamos prevendo um crescimento que sistematicamente não se realiza. Já que cautela virou uma palavra da moda no debate econômico, seu uso é, no mínimo, adequado para discutir a pujança futura da atividade. Se gato escaldado tem medo de água fria, os otimistas deveriam ficar alertas com possíveis novos banhos de água fria.
*Ricardo de Menezes Barboza é professor colaborador da Coppead-UFRJ e mestre em Macroeconomia pela PUC-Rio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário