Pandemia matou mais do que sugere estatística oficial
O Globo
Mortos são estimados em 22 milhões no
mundo. No Brasil, notificação funcionou, mas tragédia foi maior
O anúncio do fim da
emergência global da Covid-19, feito pela Organização Mundial da
Saúde (OMS),
foi auspicioso, mas ainda há conclusões incômodas a tirar do pesadelo de mais
de três anos. A primeira: é preciso fazer uma avaliação honesta do saldo
macabro. O número de mortos divulgado por autoridades no mundo inteiro não
corresponde à realidade. Estudos revelam que a pandemia de Covid-19, mesmo
tendo tido impacto menor que suas congêneres no passado, foi bem mais
devastadora do que sugerem as estatísticas oficiais.
As mortes notificadas não espelham a realidade por vários motivos. Devido às redes de saúde sobrecarregadas, à prioridade aos infectados e ao isolamento, pacientes que padeciam de males como doenças cardíacas ou câncer tiveram de interromper o tratamento e morreram. Mesmo que não tenham sido causadas pelo coronavírus, tais mortes também resultam do choque da pandemia nos sistemas de saúde.
Outros problemas foram a baixa testagem,
falhas de diagnóstico e a deficiência crônica na notificação de mortalidade no
mundo. De acordo com a ONU, mesmo em tempos normais, apenas dois terços dos
países registram mais de 90% das mortes. Há casos em que os registros não
chegam a 10%. Na pandemia, a situação se agravou.
Para calcular o saldo das pandemias, a
métrica consensual na epidemiologia é conhecida como “excesso de mortes”. Ela
avalia quantas pessoas morreram — por todas as causas, não apenas por ação da
Covid-19 — acima da média histórica no período. Dentre as várias avaliações, a
mais atualizada é publicada pela revista The Economist, com dados estimados
para 200 países. O total de mortos durante a pandemia de Covid-19 foi, de
acordo com ela, de 2,4 a 4,3 vezes o número oficial (6,9 milhões). Ficou em
torno de 21,9 milhões ou, com 95% de probabilidade, entre 16,9 milhões e 30,1
milhões.
Isso significa que o número oficial de
notificações está bem abaixo do real. A discrepância varia de um país a outro.
A maior foi observada na Índia, que registrou 531.794 mortes, mas apresenta um
excesso de 2,3 milhões a 9,4 milhões (800%). Também chama a atenção a China,
que relata 121.073 mortes, mas cujo excesso é estimado entre 450 mil e 3,4
milhões (1.200%).
O Brasil não está tão mal quanto se poderia
supor considerando a desastrosa gestão da pandemia no governo Jair Bolsonaro.
No período em que registrou 702.116 mortes, o excesso de mortalidade ficou
entre 850 mil e 920 mil, ou 20% (mesmo patamar dos Estados Unidos, cujo excesso
é estimado entre 1,3 milhão e 1,4 milhão, para 1.127.152 mortes oficiais). Uma
das lições da pandemia, portanto, é que, apesar dos percalços, o sistema de
notificação de mortalidade do SUS está entre os melhores do mundo.
Isso em nada alivia o impacto trágico do
coronavírus no país. Os números fidedignos apenas espelham melhor a dimensão da
tragédia. Como a Covid-19 mata mais certas faixas etárias e grupos
demográficos, é preciso ajustar os dados para comparar desempenhos. Ponderado pela
demografia, o excesso de mortes de 391 por 100 mil habitantes deixa o Brasil
atrás de dois terços dos 200 países. Teria sido diferente se o governo
Bolsonaro não tivesse negado a ciência e sido mais ágil nas medidas de
prevenção e na vacinação. O desafio agora é evitar que na próxima pandemia —
não se sabe quando, mas é certo que ela virá — tal vergonha se repita.
Indicação política de diretores de escola
deteriora qualidade do ensino
O Globo
Mais da metade assumiu cargos de direção
apenas pela vontade do prefeito ou do secretário de Educação
A dificuldade do Brasil para elevar seu
desempenho nos exames internacionais que avaliam a qualidade da educação,
como o Pisa, contrasta com os investimentos dedicados à educação pública básica
nos últimos anos (de acordo com algumas métricas, eles quadruplicaram). O
paradoxo é cristalino: o país gasta mais dinheiro no ensino, mas não consegue
extrair resultado satisfatório.
Entre as inúmeras mazelas que explicam tal
dificuldade, uma veio à tona em trabalho recente da ONG d3e, com apoio do
movimento Todos Pela Educação e de outras organizações. Analisando a seleção e
a formação de diretores de escolas públicas, o estudo
constatou que 55% assumiram o cargo por indicação política,
sobretudo em escolas municipais de cidades menores. Quem apadrinha é em geral o
secretário de Educação, para atender um político influente ou o próprio
prefeito. Há mais de dez anos um estudo sobre o mesmo tema constatou uma
situação ainda pior. Apesar do avanço, o quadro está longe do regime de mérito
necessário para elevar a qualidade do ensino.
Há, de acordo com Priscila Cruz, presidente
do Todos Pela Educação, relação inequívoca entre a qualidade da direção escolar
e o nível do ensino. Nos últimos dez anos, vários estados qualificaram a
seleção de diretores, com a abertura de concursos e exigências como planos de
gestão ou certificações. Tais práticas deveriam ser estendidas a todas as
escolas, mas ainda são uma exceção, revela o estudo da d3e.
De acordo com a pesquisa, 38% das escolas
estaduais e 14% das municipais ainda escolhem seus gestores apenas por votação.
Não há padrão para a escolha de diretores pelo voto. Nalgumas escolas só os
professores participam do escrutínio; noutras, alunos também podem votar ou
mesmo os pais. Eleições abertas demais aumentam o risco de a escola ficar nas
mãos de quem não reúne as competências exigidas pelo cargo. Como nem todo bom
professor será um bom diretor, há a necessidade de preparar quem assumirá o cargo
de gestão. Um modelo indicado é, depois de triagem no curso preparatório e das
entrevistas, submeter os dois ou três melhores à votação.
O Brasil também abriga diferentes
realidades na direção escolar. Do total, 80% dos diretores atuam em apenas uma
escola e, entre os 20% que dirigem mais de uma, a maioria está na Região Norte.
Dos professores que são diretores, 88% têm formação superior, enquanto no
Nordeste 20% têm no máximo ensino médio. Essa é uma das inúmeras causas do
nível mais baixo de ensino na região.
A cidade de Sobral, no interior do Ceará, é frequentemente citada como exemplo positivo. Candidatos a diretor passam por seleção rigorosa, de que constam um curso específico para gestão, além de entrevistas e avaliação curricular. Há outros bons exemplos na triagem de diretores no Espírito Santo. Disseminar essas boas práticas e outros exemplos positivos por todo o país é o principal desafio para evitar o desperdício de recursos e para a educação enfim cumprir sua promessa de reduzir a pobreza e a desigualdade.
Moderação distante
Folha de S. Paulo
Exorbitâncias institucionais para acertar
contas são indevidas e má estratégia
O populismo redivivo, saliente no Brasil e
em outros países, assedia os pilares iluministas da governança democrática,
como a separação de Poderes e o império da lei. O modo como as instituições
respondem ao assalto diz muito sobre o viço e a qualidade do regime.
O tirocínio consiste não apenas em resistir
às investidas de um presidente ameaçador, aspecto em que se saíram bem as
organizações de controle do exercício do poder no Brasil nos últimos quatro
anos, com a lamentável exceção da Procuradoria-Geral da República.
A boa prática recomenda também não lançar
mão de heterodoxias e extravagâncias para acertar contas com poderosos de
outrora. Nesse flanco o desempenho de algumas autoridades deixa a desejar.
Cada vez se justificam menos os poderes
excepcionais que o Supremo Tribunal Federal concedeu a si mesmo para chefiar
inquéritos policiais que se alongam e se alargam em escopo sem perspectiva de
conclusão. Quando será exercido o sagrado direito do contraditório e do devido
processo sobre o grande volume de provas colhidas sem óbice nas investigações?
Atitudes como mandar apagar mensagens na
internet, que poderiam ser aceitáveis em período eleitoral, soam anômalas mais
de seis meses depois de encerrada a votação —ainda mais quando assestadas
contra atores privados que expõem sua opinião sobre uma proposta de legislação
que pode restringir a liberdade de expressão.
Quando o órgão máximo da Justiça censura,
os milhares de magistrados abaixo dele podem sentir-se estimulados a seguir-lhe
os passos.
A cassação expedita, com base em interpretação
criativa contra o direito de ser eleito, do ex-coordenador da Lava
Jato Deltan Dallagnol tampouco sugere que se vivem tempos de normalidade e
ortodoxia no Tribunal Superior Eleitoral.
No Executivo —o Poder mais propenso a
cometer abusos, que deveria ser o alvo primordial do controle democrático—
criam-se instâncias para aferir o que pode ser falso ou verdadeiro em
discursos. O ministro da
Justiça passa uma carraspana intimidatória em representantes de redes sociais.
O Estado de Direito não combate radicais
com radicalização. Exorbitâncias institucionais não farão quase metade do
eleitorado mudar de lado. Talvez produzam o efeito contrário, ao emprestarem
verossimilhança a versões de que há perseguição politicamente motivada.
Basta olhar ao redor, na América do Sul,
para notar como os ventos da política continuam mudando rapidamente. O
exercício da autoridade em limites estritos e a busca de consensos amplamente
majoritários na sociedade continuam sendo a melhor receita para a pacificação
da política brasileira.
Morte em liberdade
Folha de S. Paulo
CNJ revela que superlotação reduz
expectativa de sobrevida de ex-detentos
Um ano e meio: esse é o tempo médio
de vida de egressos do sistema penitenciário brasileiro. Segundo
pesquisa contratada pelo Conselho Nacional de Justiça, saúde e vinculação ao
crime são os principais fatores de risco de pessoas que saem da prisão.
O levantamento, feito por pesquisadores da
Fundação Getulio Vargas e do Insper, analisou um escopo de 1.168 processos
judiciais de todos os estados entre 2017 e 2020.
Foram analisadas mortes dentro do sistema
prisional e fora dele, quando a pessoa ainda tinha algum vínculo com a Justiça
criminal.
No primeiro caso, prevalecem como causas
doenças do aparelho circulatório, sepse e pneumonia, além de traumas violentos
como enforcamento e estrangulamento.
A contumaz superlotação dos presídios
contribui para condições de vida degradantes que geram problemas de saúde e
estimulam a violência. De acordo com dados mais recentes do Anuário Brasileiro
de Segurança Pública, 566.396 condenados pela Justiça viviam em regime fechado
em 2021, e o sistema tinha um déficit de vagas de 180.696 —ou 1,3 preso por
vaga.
Ademais, em 70,43% dos casos de óbito no
cárcere, não há informações sobre a instauração de algum tipo de investigação.
Há também precariedade de dados sobre cor, comorbidades, escolaridade etc.
O quadro é igualmente preocupante no
ambiente externo. A morte acompanha o ex-detento, seja pelas consequências da
superlotação de presídios, como as doenças, seja porque a liberdade não rompeu
o vínculo de vulnerabilidade ante o crime, dada a ausência de políticas sociais
de reinserção.
Ferimento por arma de fogo e hemorragia de
causa não especificada são os dois principais fatores que levam egressos do
sistema ao óbito, seguidos de doenças do aparelho circulatório. Esses dados,
combinados com o baixo tempo médio entre a saída da prisão e o falecimento (1,5
ano), revelam o impacto do encarceramento em massa mesmo em liberdade.
O Estado é responsável pela segurança dos
apenados e também tem o dever de prover condições dignas de vida no sistema
prisional.
Acabar com a superlotação, melhorar a infraestrutura do cárcere e promover políticas de reinserção do ex-detento à sociedade são medidas que não só seguem princípios básicos dos direitos humanos como beneficiam toda a sociedade, ao contribuir para a queda de índices de criminalidade e violência.
Poluição ideológica
O Estado de S. Paulo
Decisão draconiana do Ibama de impedir que
a Petrobras avaliasse a exploração de petróleo na Margem Equatorial, que inclui
a foz do Amazonas, mostra distorção do debate ambiental
O Ibama negou o pedido de licenciamento
ambiental da Petrobras para explorar a Margem Equatorial, que vai do litoral do
Amapá ao Rio Grande do Norte e que inclui a foz do Rio Amazonas. O órgão
considerou a solicitação incapaz de garantir a segurança da região. A Petrobras
afirmou ter atendido aos requisitos que o processo exigia e reiterou o pleito.
A rigor, nem de produção ainda se tratava,
pois o pedido que o Ibama rejeitou agora dizia respeito a perfurações meramente
exploratórias para levantar a existência de petróleo em um bloco localizado a
160 km da costa e a mais de 500 km da foz do Amazonas.
Se os estudos iniciais confirmassem o
potencial que já foi encontrado em países vizinhos, a Petrobras teria que
submeter novo pedido de licenciamento ao Ibama para começar a produzir. Ou
seja, o Ibama teria a oportunidade de opor-se à exploração depois da eventual
confirmação de viabilidade. Ao fazê-lo antes mesmo dessa confirmação, o Ibama,
de forma draconiana, deixou claro que, em qualquer circunstância, a Margem
Equatorial está fechada à exploração.
O caso reúne todos os aspectos que ilustram
a claudicante governança do setor público. Foi um governo petista, o de Dilma
Rousseff, que incluiu áreas da Margem Equatorial em um leilão de 2013. Agora, é
também um governo petista que impede liminarmente a exploração da região. Entre
aquele momento e este, a questão ambiental transformou-se em trincheira
ideológica.
Logo, não chega a ser uma surpresa que o
Ibama, de volta ao comando petista, tenha adotado atitude intransigente quando
se trata de exploração da Região Amazônica. Afinal, é a soma de todos os
pesadelos – a devastação da Amazônia, a extração de óleo poluente e a aposta em
combustível fóssil.
O problema é que a primeira vítima dessa
batalha ideológica é a razão. Não estão sendo levados em conta os recursos que
a exploração da Margem Equatorial pode gerar para o desenvolvimento do País, em
especial das populações locais, geralmente condenadas à pobreza em razão do
imperativo de manter a região intocada. Ora, a exploração consciente da região
é perfeitamente possível e não deveria ser um tabu.
Ademais, a exploração de áreas promissoras
como a Margem Equatorial pode dar à Petrobras os recursos necessários para que
invista em projetos de energia limpa, de acordo com uma transição que já ocorre
no mundo desenvolvido.
Nada disso parece ter sido levado em conta
no caso, que opõe a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, preocupada
unicamente com o impacto na Região Amazônica, e o ministro de Minas e Energia,
Alexandre Silveira, disposto somente a proteger os interesses da Petrobras. Tem
todas as características de um jogo de soma zero – cujo derrotado, seja qual
for o vencedor, é o País.
A correta ponderação entre pontos positivos
e negativos dessa atividade, quando ocorrer, deve envolver não apenas o Ibama e
a Petrobras, mas todo o governo e os órgãos públicos direta e indiretamente
relacionados, considerando as dimensões ambiental, econômica e social. É
preciso ouvir especialistas, a sociedade e a população dos Estados da Margem
Equatorial, que se estende por mais de 2,2 mil km de extensão entre o Norte e o
Nordeste. Se o potencial for confirmado – lembrando que pode vir a não ser –,
seria justo impedir o desenvolvimento que a atividade pode proporcionar à
região?
É do interesse do País defender o meio
ambiente, sobretudo em uma região tão sensível como a Amazônia, sob os olhares
de uma comunidade internacional disposta a cobrar responsabilidades e impor
penalidades. Mas o governo não pode ignorar a pluralidade de visões,
experiências e conhecimento dos mais diversos atores envolvidos na questão.
Problemas de governança têm sido um
obstáculo para investimentos que possam gerar o crescimento de que o País
necessita. O debate sobre a Margem Equatorial pode ser uma oportunidade para
revê-los e para construir um modelo que garanta a exploração sustentável da
Região Amazônica, mas é preciso enfrentar a discussão com urgência, coragem e
muita responsabilidade.
A Venezuela de mal a pior
O Estado de S. Paulo
Tribunal Penal Internacional evidencia que
a ditadura recrudesce. Com a alta do petróleo, o apoio de esquerdistas
latino-americanos e a debilidade da oposição, ela está mais forte como nunca
Há 50 anos, a Venezuela, assentada sobre as
maiores reservas de petróleo do mundo, era um dos países mais ricos da América
Latina. Mas se o ouro negro fez por um tempo a fortuna dos venezuelanos, a
dependência dele também fez a sua miséria. Uma baixa de duas décadas nos preços
do petróleo ajudou o demagogo Hugo Chávez a assumir o poder em 1998. O boom nos
anos 2000 possibilitou-lhe vender a grande primavera socialista nas Américas
como um ouro de tolo.
Mas desde 2013, quando o ciclo acabou,
Chávez morreu e o ex-motorista de ônibus Nicolás Maduro assumiu, a economia
encolheu três quartos. Cerca de 7 milhões de venezuelanos (um quarto da
população) fugiram. Hoje os aposentados recebem US$ 5 por mês. O salário mínimo
é US$ 3,2. Segundo a ONU, 6,5 milhões de venezuelanos passam fome; 4,1% das
crianças sofrem desnutrição aguda e quase 40% não estudam.
Em 2019, Maduro fraudou as eleições e
fabricou um legislativo biônico. Já não há concursos públicos para a
magistratura e as Forças Armadas trocam lealdade por vistas grossas aos seus
negócios corruptos.
O Tribunal Penal Internacional investiga o
regime por 5 dos 11 crimes contra a humanidade estabelecidos no Estatuto de
Roma, assinado pela Venezuela: assassinatos e ferimentos; privação de
liberdade; destratos e tortura; crimes sexuais e perseguição. Só entre 2016 e
2019, segundo dados oficiais, as forças de segurança executaram
extrajudicialmente 19 mil pessoas alegando “resistência à autoridade”. Desde
2014, mais de 15 mil civis foram detidos arbitrariamente.
A trágica ironia é que, além das vítimas
usuais, como políticos de oposição e jornalistas, os setores da população mais
violentados são justamente os que a esquerda jura defender, como trabalhadores
de base, sindicalistas, camponeses e indígenas. Há relatos regulares de que o
regime, quando não executa os dissidentes, não só os submete a torturas
indizíveis – como eletrochoques na genitália dos homens ou estupro das mulheres
–, mas os intimida com agressões às suas famílias: mães são obrigadas a se
despir na frente de seus filhos, que chegam a testemunhar ameaças de
crucificação. Segundo a ONG venezuelana Ação em Direitos Humanos, só em 2022
houve 2.203 vítimas de violações à integridade pessoal – um aumento de 68,6% em
relação a 2021.
O desesperador é que, por uma conjunção de
fatores externos e internos, a autocracia de Maduro está possivelmente mais
forte do que nunca.
O choque na cadeia energética precipitado
pela guerra na Ucrânia elevou os preços do petróleo ao mesmo tempo que obrigou
países ocidentais a buscarem alternativas à Rússia. Os americanos aliviaram
suas sanções e, em parte por isso, a economia cresceu 6% em 2022. A nova onda
de líderes de esquerda na América Latina, como Lula ou Gustavo Petro na
Colômbia, colabora para legitimar o regime. O jovem presidente esquerdista do
Chile, Gabriel Boric, chegou até a fazer reprimendas aos regimes venezuelano e
nicaraguense, mas sua convicção é questionável: mesmo ele resiste a superar
nostalgias da esquerda e a criticar a ditadura cubana, um dos sustentáculos de
Maduro, junto com Rússia, China e Irã.
Pouco se pode esperar das eleições de 2024.
Reprimida por fora, a oposição está desorientada por dentro e parece incapaz de
se unir para viabilizar candidaturas competitivas. De resto, nesse estado de
coisas, Maduro não concederá a supervisão de observadores internacionais para
garantir um pleito limpo.
O sentimento triunfalista do déspota foi
resumido em uma de suas entrevistas semanais na TV estatal. “É hora de uma nova
geopolítica redistribuir o poder no mundo”, disse. “Esta guerra na Ucrânia é
parte das dores de crescimento de um novo mundo que está nascendo. Não tenham dúvidas
de que eu estarei lá na vanguarda.”
Resta saber se, diante das terríveis
violações de direitos humanos na Venezuela, fartamente documentadas por
instituições independentes, ainda haverá quem não só evite condenar Maduro nos
mais duros termos, como, pior, esteja ao lado do tirano venezuelano nessa
“vanguarda” da truculência e da desumanidade, em nome de afinidades ideológicas
imorais.
Transparência é para valer
O Estado de S. Paulo
Discurso de Lula em defesa da Lei de Acesso
à Informação não se traduz nas ações do governo
A luz do sol é o melhor desinfetante, diz o
conhecido adágio que reflete o espírito da Lei de Acesso à Informação (LAI). O
escrutínio público, de fato, coíbe desmandos e desvios, e não é exagero afirmar
que a LAI representou um salto civilizatório para o País. Por isso, é bem-vindo
que o presidente Lula da Silva tenha feito um discurso em defesa dessa lei que
completou 11 anos de vigência há poucos dias. Mas só palavras não bastam: o
entusiasmo demonstrado pelo presidente para enaltecer a transparência − e
fustigar o descaso de seu antecessor em relação a esse princípio tão salutar − precisa
se traduzir em ações. Algo que não vem acontecendo.
A Lei 12.527/2011 entrou em vigor em maio
de 2012, 180 dias após sua promulgação. Com atraso, dotou o País de mecanismos
para que a população tivesse acesso ao que se passa no labirinto das instâncias
governamentais, invertendo uma lógica muito cara aos detentores do poder: com a
LAI, em tese, a transparência passa a ser regra, e o sigilo, exceção. Eis um
princípio republicano cuja função é oxigenar a administração pública, jogando
luz sobre as zonas cinzentas onde vicejam abusos e malfeitos.
Entre o que a lei prevê e o resultado de
sua aplicação prática, porém, há uma longa distância, como ficou claro no
governo de Jair Bolsonaro, quando a decretação de sigilos descabidos virou
estratégia para manter à sombra o que não interessava ao então presidente
divulgar. Como não poderia deixar de ser, a opacidade do governo anterior virou
tema da campanha eleitoral, e Lula alardeou o quanto pôde que faria tudo
diferente.
Como noticiou o Estadão, o terceiro mandato de Lula tem seguido uma lógica bem distinta de seus discursos. Exemplo disso foi a imposição de sigilo sobre gastos com viagens nacionais e internacionais do atual presidente. Sem falar na recusa de divulgar a íntegra das imagens dos atos golpistas de 8 de janeiro gravadas por câmeras do Palácio do Planalto. Há também pedidos de informação que foram rejeitados sem levar em conta pareceres da Controladoria-Geral da União (CGU). Recentemente, o Ministério da Fazenda recusou-se a revelar a lista de quem entrou no prédio-sede nos primeiros meses de 2023.
Ora, somente a aplicação correta da LAI é
capaz de produzir os resultados almejados, conferindo a devida transparência
aos atos oficiais, não só no Executivo, mas em todos os Poderes, nas esferas
federal, estadual e municipal.
Um decreto recém-assinado por Lula
centralizou na CGU a fiscalização do rol de documentos sigilosos de toda a
administração federal. Como informou o
Estadão, caberá à CGU analisar as
classificações adotadas no âmbito de cada ministério, verificando se a
legislação foi corretamente seguida e determinando correções, em caso de
falhas. Sem dúvida, é prerrogativa do presidente da República reorganizar a
estrutura da máquina pública e o modo como funciona. No que diz respeito ao
cumprimento da LAI − e das demais leis em vigor no País −, porém, a regra é
outra. Afinal, não se trata de uma escolha, mas do dever de todo e qualquer
governante.
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