O Estado de S. Paulo
Documento postula o papel de uma kantiana
razão abrangente, que valoriza e respeita a preservação da hospitalidade
universal, lastreado num direito comum e compartilhado à face da Terra
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento é um dos importantes textos adotados na Eco-92, a conferência
da ONU, sediada no Rio de Janeiro, que consolidou na agenda internacional os
temas do meio ambiente. A Declaração traçou uma política para a consolidação e
o desenvolvimento progressivo do Direito Ambiental. Representou uma vis
directiva para enfrentar a vulnerabilidade crítica da natureza, crescentemente
ameaçada pelos riscos trazidos pela ação humana.
Da importância da Declaração e de seus desdobramentos cuida, e bem, livro recém-publicado organizado pelos professores André de Paiva Toledo e Lucas Carlos Lima. Tratase de um comentário brasileiro elaborado por qualificados estudiosos, que explicitam a arquitetura normativa dos seus 27 princípios. Estes obedecem a uma lógica de mútua implicação e complementaridade, vivificados pela sua dinâmica constitutiva, que têm como função a expansão lógica e axiológica do Direito.
A Declaração indica caminhos de novos
níveis de cooperação, voltados para proteger a integridade do sistema global do
meio ambiente, fruto da natureza interdependente e integral da Terra, como
aponta o seu preâmbulo.
No mundo mais cooperativo do início da
década de 1990, a Rio-92, com a densa participação do Brasil, superou dificuldades
que circunscreveram o alcance da Conferência de Estocolmo de 1972, como a
diferença de perspectivas Norte/Sul. O suplantar dessas dificuldades é a “fonte
material” da Declaração do Rio.
Na sua raiz está o paradigma do conceito de
desenvolvimento sustentável, elaborado pelo Relatório Brundtland, de 1987. O
paradigma proclamado na Declaração substanciou a interconexão e a
interdependência entre as necessidades de desenvolvimento e as de preservação
do meio ambiente. Situou em novos termos o desenvolvimento na sua dimensão de
sustentabilidade para as gerações presentes e futuras. Esclareceu que, para
alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental e seus custos
devem constituir parte integrante da racionalidade do processo decisório – público
e privado – do desenvolvimento e não podem ser considerados isoladamente de
suas externalidades. É o que significa não dar continuidade a padrões
insustentáveis de produção e consumo.
O novo paradigma ensejou um terreno comum
que viabilizou a Rio-92, ao consagrar a “ideia a realizar” do desenvolvimento
sustentável. Este adquiriu notável irradiação. Permeia o Direito do Meio
Ambiente nos planos interno e internacional.
Para obter a cooperação num espírito de
parceria global entre países tão díspares, era necessário encontrar um
mecanismo diplomático de coesão, interestatal. Este foi o princípio, consagrado
na Declaração, das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, uma regra de
calibração da intensidade dos compromissos assumidos que enseja aos países em
desenvolvimento um tratamento especial e diferenciado, à luz das suas
especificidades.
Essa diferenciação não é estática. Comporta
no tempo margens de ampliação das responsabilidades dos países em
desenvolvimento que provêm da mudança das circunstâncias econômicas e
ambientais. É o que se vem verificando, por exemplo, na engenharia normativa do
aprofundamento de um tratado-quadro, como a Convenção do Clima – grande fruto
da Rio-92 – na revisão periódica das suas partes contratantes (as COPs).
A interface ciência e conhecimento, e o que
suas métricas revelam sobre a vulnerabilidade crítica da natureza, tornou-se
desde Estocolmo uma “fonte material” de decisiva importância para o
desenvolvimento progressivo do Direito do Meio Ambiente e para a contestação de
negacionismos infundados.
Assim, a Declaração do Rio dá a devida
ênfase à importância do conhecimento científico, seu aprimoramento, sua
intensificação, difusão e transferência e relevo ao acesso à informação
apropriada relativa ao meio ambiente, que deve estar ao alcance dos cidadãos
interessados.
Novos institutos jurídicos de maior
importância para a gestão dos riscos ao meio ambiente, como o princípio da
precaução e o da avaliação do impacto ambiental, foram contemplados. Também
tendo em vista a construção de um sistema econômico internacional cooperativo,
aberto ao intercâmbio entre países, a Declaração do Rio consigna que medidas de
política comercial com propósitos ambientais não devem constituir-se em
discriminações arbitrárias ou em barreiras disfarçadas ao comércio
internacional.
A Declaração reconhece que o tema do
desenvolvimento sustentável não se circunscreve ao âmbito intergovernamental. É
um tema que diz respeito à sociedade civil. A Declaração realça o papel de
mulheres, jovens, populações indígenas e comunidades locais na promoção e
gestão do desenvolvimento sustentável.
O meio ambiente tem o alcance de uma
indivisibilidade global. A Declaração do Rio postula o papel de uma kantiana
razão abrangente, valorizadora e respeitadora da preservação da hospitalidade
universal, lastreado num direito comum e compartilhado à face da Terra.
*Professor Emérito da Faculdade de Direito
da USP, na condição de Ministro das Relações Exteriores, foi vice-presidente
‘ex officio’ da Conferência do Rio de 1992
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