segunda-feira, 23 de junho de 2025

Quem puxará o fio embolado da sucessão de Lula? Paulo Fábio Dantas Neto*

Desde que começaram a circular pesquisas e comentários sobre maiores dificuldades do que as previstas para a reeleição do presidente Lula, é possível que círculos petistas mais antenados tenham cogitado, ou talvez até trabalhado, internamente, para que a esquerda construísse um plano B, alternativo à tentativa de reeleição. Aliás, mesmo antes do atual contexto em que se supõe mais dificuldades eleitorais ao presidente, o ex-deputado e ex-ministro José Dirceu já naturalizara essa hipótese em entrevista, raciocinando com o longo prazo. Mas da mesma forma que seria lógico cogitar um plano B, é lógico pensar que ele não prosperaria. A força da inércia, não só do aparelho partidário do PT como também da miríade de interesses locais, setoriais, e/ou de conservação de espaços na máquina pública ergue um muro contra qualquer arquitetura política que não a da manutenção do "status quo".

Em que, então, se sustentaria uma ideia de a esquerda dar um cavalo de pau e descartar aquela que é sua liderança sem rivais, o nome que, apesar das sombras no horizonte, aparece em todas as pesquisas como o único competitivo que ela tem? Desistir dele seria, certamente, caminhar para uma opção fora da esquerda. Deixemos de lado, por ora, o exame da conveniência disso como saída política desejável para o país e perguntemos se há razões de política prática para que a esquerda faça esse movimento.

Do ponto de vista do que se pode definir como interesse normal e previsível de qualquer força política, a racionalidade e plausibilidade desse movimento não pode ser imediatamente admitida. Passaria primeiro por uma autoavaliação pessimista e conclusiva sobre as chances eleitorais do governismo. Tal conclusão poderia resultar da constatação de que a oposição encontrara uma candidatura unitária capaz de derrotar o presidente, numa eleição em dois turnos. Mas a candidatura unitária, assim como a vantagem eleitoral da oposição, são hipóteses ainda distantes de se consolidarem como tendências. Examinemos em separado cada uma das duas hipóteses.

Paira sobre a hipótese da unidade da oposição o espectro de Jair Bolsonaro sobre o conjunto da direita brasileira. Inexiste setor desse campo que possa dispensar o apoio do ex-presidente sem incorrer numa imprudência eleitoral. Pode-se cobrar da direita que pense no país e recuse essa contaminação extremista com bem mais propriedade do que se pode, com o mesmo argumento, cobrar de Lula que desista da reeleição e da esquerda que renuncie ao protagonismo que a condição do presidente lhe dá. Afinal, é bem recente a experiência do país com a devastação social pela pandemia e com o risco de ruína institucional trazidos pela passagem da extrema-direita pelo governo. Politicamente é possível e até intuitivo criticar e, no limite, rejeitar qualquer candidatura que flerte com o risco de retorno daquela experiência, ainda que mitigada.  Mesmo assim, do ponto de vista analítico, é irrealista, também no caso da direita, esperar que abra mão do óbvio fator de competividade eleitoral que é o apoio de Bolsonaro.

Por outro lado, esse apoio, a depender dos termos em que ocorrer, pode inviabilizar a ampliação de qualquer candidatura para fora dos muros da direita. E não é crível que outra candidatura, sem a prévia popularidade in natura do ex-presidente, possa vencer Lula se entregar a ele o eleitorado de centro, o que é provável de ocorrer - mesmo com todo o mau trato a que o populismo lulista tem submetido esse tipo de eleitor - se Bolsonaro, inelegível, ou mesmo preso, for presença destacada na campanha ou na chapa, ou obtiver do candidato compromissos públicos estritos com pautas da extrema-direita.

Tudo isso poderia levar a que a extrema-direita, sendo privada da elegibilidade do seu líder, tivesse o realismo de ser discreta e menos radical nas exigências de compromissos prévios para que o seu apoio não inviabilize uma candidatura competitiva e mais moderada do que seria a de Bolsonaro ou outra que o representasse diretamente. E para compensar esse recuo estratégico, usar a própria moderação do candidato majoritário como biombo e sombra para eleger deputados, senadores e até governadores radicais que pudessem maximizar a pressão sobre o novo governo, em caso de vitória.

Mas não é assim que a banda toca para a extrema-direita. Onde se cogita que possa querer preservar um lar em comum com toda a direita, ela é revolução e, dentro dessa lógica, despreza o raciocínio acumulador de forças da política democrática. Sua húbris é o confronto porque é dele que retira a força destruidora que persegue.  Políticos de direita não bolsonaristas (eles existem, é bom não esquecer) podem contracenar com a extrema-direita a ponto de se deixarem confundir com ela, por cálculo racional, mas não têm direito a ilusões quanto a esse ponto. Comutativamente, Bolsonaro sabe que não pode confiar que políticos de direita com pretensões majoritárias ajudem a ressuscitá-lo politicamente por causa do seu recall eleitoral. Mais provável é que se beneficiem desse recall ao tempo em que tentem fazer de sua condenação penal uma morte política irreversível. Por essas duas razões, que formam uma reciprocidade negativa, a unificação completa da direita com o bolsonarismo possui baixa probabilidade.  A unificação dependeria de uma mudança radical na correlação de forças interna entre as duas direitas. Como nem o bolsonarismo exibe (como tem ficado claro em eleições de diversos níveis desde 2020) uma vitalidade de fenômeno eleitoral a ponto de prescindir da candidatura do seu chefe, nem existe, na outra direita, um fenômeno de popularidade que equivalha ao do chefe da primeira banda, o atual lusco-fusco continuará até que fique definitivamente claro para o grande público que Bolsonaro não poderá ser candidato. Esse desfecho está próximo e a recente entrevista do senador Flavio Bolsonaro, recheada de ameaças a longo prazo, deixou evidente a consciência de que a curto prazo estão derrotados e lhes resta apoiar um candidato fora do seu grupo ou cometer um haraquiri.

A perda de força relativa da extrema-direita não decreta a unificação da direita. Sempre haverá espaço para candidaturas extremistas “puro sangue” enquanto o campo moderado da direita não estiver, ele mesmo, unificado (hoje há outros nomes, além do governador de São Paulo). Essa é a condição de competitividade eleitoral necessária para exercer força de gravidade sobre a extrema-direita sem fazer a ela concessões politicamente comprometedoras e também para atrair placas estagnadas ao centro.

Chega-se ao exame da segunda hipótese (de haver na direita candidatura competitiva por si), cuja confirmação geraria movimentos de adesão no centro, dentro e fora do chamado centrão e de reação na esquerda e em setores de centro que estão dentro do governo. A concretização dessa hipótese não depende apenas de um nome que se destaque mais em pesquisas. Aliás, pelas características da direita não radical, essa não é variável central. A popularidade, não sendo prévia, terá que ser construída e isso é missão, inicialmente, da política convencional, para em seguida ser confiada à comunicação política.

A liderança do Congresso, por exemplo, assim como os partidos de direita e centro-direita ali confortavelmente instalados, precisam decidir se já lhes interessa disputar o Poder Executivo em 2026 ou se ainda precisam consolidar seu poder no Legislativo por mais um ciclo eleitoral. Os governadores do campo da direita precisam definir se lhes interessa um espaço de articulação comum para influir nas eleições e num futuro governo ou se vão preferir emular, em seus estados, o legado retórico do bolsonarismo sem Bolsonaro candidato ou, ainda, se depois de fazerem oposição ao governo Lula durante três anos, vão se aproximar dele em troca de benesses eleitorais federais de última hora.

A esse segmento da elite política - cujo poderio político aumentou com assentos parlamentares, com posições em ministérios e nos estados, obtidos graças a votações expressivas conquistadas em eleições recentes - e a seus partidos, cujo poderio institucional aumentou muito em razão de reformas pontuais na legislação partidária e eleitoral realizadas desde 2016, cabe essas decisões estratégicas. Mas elas sempre podem ser anuladas pela rebeldia do eleitorado, alimentada pela “polarização afetiva”. Se o potencial dessa polarização é inevitavelmente aumentado pelas redes sociais, pode ser matizado se, fora delas e também tentando usá-las, essas facções da elite política apostarem num discurso esvaziado de ideologia e que se atenha a polarização política entre oposição e governo. Se farão isso ou não é algo a ser visto adiante e tem íntima relação com as conexões sociais desse segmento político.

 A direita nunca foi um campo político fechado em si. Hoje, diante da inclinação conservadora do eleitorado brasileiro, o é menos ainda. São múltiplas suas possibilidades de conexão com distintos agrupamentos sociais, o que aumenta a de conquistar aliados no mundo político. Para fazer frente a isso seria preciso que seus adversários na esquerda, ou no centro, estivessem concentrados e unificados não em torno apenas de um nome, mas também de linhas programáticas hoje invisíveis a olho nu. As expectativas de sua formulação foram inteiramente depositadas num governo que falhou nisso. Em outras palavras, a oposição não tem nome unificador, mas parece ter um constrangedor predomínio na comunicação com a sociedade ou, pelo menos, com os setores de opinião cujos interesses vocaliza.

Parece, mas não necessariamente é e será assim. Se não ganhar autonomia real de discurso e de movimentos em relação ao bolsonarismo, essa direita, mesmo unificada e competitiva poderá voar, mas transportará chumbo nas asas. Será muito difícil a Tarcísio de Freitas ou outro candidato de direita convencer eleitores de sua moderação se tiver a mulher de Bolsonaro na chapa, se veicular ameaças a ministros do STF ou se fizer acenos de anistia a golpistas.

Assim, é provável que, mantido ou evoluindo o quadro de dificuldades, o campo do lulopetismo fique preso numa armadilha, que é um dilema entre mudar seu foco populista para armar novo jogo pelo meio do campo, ou permanecer numa retranca agressiva e confiar no erro do adversário para ganhar o jogo novamente por uma bola. Esse dilema afeta inclusive as suas cabeças mais lúcidas que, por realismo partidário, tendem a acompanhar a maré dominante e a não contestar o chefe. O presidente é o único ator capaz de mexer pedras para criar, na esquerda, um movimento em direção ao centro, equivalente ao que se assiste no campo da direita, apesar das contradições que a fazem avançar aos solavancos. Lula faria isso se aceitasse as implicações do diagnóstico de que a reeleição é difícil. Mas essa compreensão é incompatível com o perfil político do ator em questão. Se em algum momento essa realidade se impuser, será em momento tão tardio que a candidatura escalada (Haddad, por exemplo) não terá como fazer mais do que foi feito em 2018, isto é, guardar o lugar do PT como protagonista da oposição entre 2026 e 2030. Com o adendo: algo ou alguém será responsabilizado em público por uma eventual derrota que a política hegemonista constrói desde que as urnas foram abertas, em outubro de 2022. Antes de 01.01.2023, quando Lula subiu a rampa pela terceira vez, a mensagem dele e do seu partido já era "ou nós, ou o dilúvio". Se vier, de fato, depois, o dilúvio ou o abismo, é da tradição que se coloque a culpa nos "outros". A pergunta é: e se a derrota vier, sem trazer o dilúvio?

A exorcização dos fantasmas que paralisam a política brasileira há mais de dois anos depende justamente do que o PT teme: a eficácia do STF e da sociedade em concentrar seus focos - tanto o da decisão do primeiro, como o do apoio da segunda - na punição dos responsáveis pela conspiração golpista que fracassou em dezembro de 2022 e em parar de dispersar esse foco, dando peso equivalente ao esperneio pós golpista de janeiro de 2023.

Uma nova lógica não se instalará se não partir de algum lugar, no espectro político brasileiro, distinto dos dois polos e também da constelação de centro-direita que nove entre dez analistas cotidianos da política nacional insistem em chamar de centrão, termo que confunde, mais do que ilumina, os diversos gatos, lebres, leões e raposas; ou de bolsonarismo, aí por confusão consciente e politicamente orientada.

A quem (lideranças e partidos) ocupa ou diz ocupar um lugar de centro distinto de tudo isso, é preciso perguntar o que efetivamente quer. Noves fora o caso do governador gaúcho Eduardo Leite (que tem tentado dizer o que quer, com escassa audiência até aqui), a parte mais relevante e expressiva desse hipotético centro democrático está, neste momento, mal instalada dentro do governo Lula. Logo, essa pergunta precisa ser feita a políticos como Geraldo Alckmin, Simone Tebet e Marina Silva.

A Marina, para saber em que direção proporá que vá o seu pequeno partido, para o qual a sua palavra é decisiva e, principalmente, para saber dela que tipo de política considera mais adequada à primazia que ela sempre confere à pauta ambiental. Comentei esse assunto em artigo específico, nesta coluna, há três semanas (“Sobre Marina Silva e mais além”, em 31.05.2025).

Ao vice-presidente da República é difícil perguntar algo, mesmo que se veja indícios de desconforto seu para com rumos atuais do governo e para com os que se desenham mais claramente à medida em que as eleições se aproximam. Alckmin acha-se - institucionalmente e eticamente - atado ao compromisso da chapa majoritária que integrou ao lado de Lula, em 2022. É melhor perguntar ao prefeito João Campos, o novo líder do PSB, para saber até onde ele tem condições de - e está disposto a - levar uma eventual reorientação política do seu partido, especialmente após terem se tornado públicas as cogitações do núcleo decisório que trata da reeleição de Lula de substituir Alckmin na chapa de 2026. Talvez se possa, com esse monitoramento de Campos, saber até que ponto ele e Alckmin estão, ou estarão, articulados.

No caso da ministra do Planejamento, a discussão sobre seu futuro já transborda dos bastidores para o noticiário e o colunismo político. Há especulações sem fonte certa sobre razões do relativo desaparecimento de Simone e da sua pasta do primeiro plano da cena política e balões de ensaio sobre ela ser uma das cogitações para a vice de Lula em 2026, substituindo Alckmin. Mas na semana passada surgiu matéria de maior consistência (”Uma ministra à parte das decisões centrais da política econômica” - O Globo, 15.06.25), assinada pela jornalista Jennifer Gularte. Ela permite interpretações políticas sobre as razões da situação descrita no título. A primeira é que a situação é consequência da postura excessivamente recuada de quem não cuidou, a contento, do compromisso com o seu próprio pensamento e, consequentemente, descuidou também da confiabilidade da sua reputação na própria retaguarda, onde está o capital político que a fez ministra. Entendo que essa é uma avaliação persuasiva. Mas a matéria pode ter uma mensagem ambígua. Um outro lado dessa lua que parece minguante pode ser a descrição de uma postura de Tebet não como uma atitude política mas como comportamento leal e correto de ministra de um governo que não é parlamentarista e cujo chefe é o presidente da República.

Se ambas as percepções tiverem lá suas razões, é lógico chegar à conclusão de que Tebet já deveria ter saído do governo, para não perder a credibilidade, seja, pela primeira interpretação, por continuar omitindo seus pontos de vista, seja, no caso da segunda, pelo risco de, explicitando-os, ferir, eventualmente, a liturgia do cargo.  Mas a "não lógica" da sua permanência muda no cargo pode não ser ilógica. É possível que Tebet considere até bom que circule a versão de que sua opinião está sendo ignorada para, mais adiante, isso lhe servir de argumento de desembarque. Pode ser. O problema é saber se a sua torcida, há tanto tempo vendo-a no banco de reservas de um jogo em campo acanhado, já não terá desistido e passado a torcer por alguém em outro jogo, jogado num estádio maior.

Esses são o centro e a centro-esquerda que entraram no governo e deixaram-se, em variados graus, subsumir na onda crescentemente populista do seu chefe. Já o centro que está fora do governo e do “centrão” é fraco, sem musculatura política e eleitoral, seja para liderar ou para pressionar. Se não for adubado por forças hoje governistas, acabará sugado por um dos polos, ou por ambos. O que fará ou deixará de fazer é menos relevante que movimentos atuais ou futuros realizados no âmbito dos polos.

Mas o movimento ao centro a que me referi anteriormente é uma necessidade da esquerda, independentemente do que possam ou queiram fazer as forças centristas. Ele é necessário para que a esquerda se reconecte ao eleitor. Isso se ela tiver, de fato, uma expectativa majoritária de poder e não estiver resignada a entregar a eleição ao campo oposto, em troca do lugar de futura oposição.

Para fazer um movimento desse tipo, Lula teria que dar uma guinada “gorbatcheviana”. Parece ser pedir demais, se considerado, como já feito, perfil e antecedentes, dele e do seu partido. Mas se mantida a inércia, restará a lógica política de fatos consumados que marca a relação entre ambos e seus aliados. E a expectativa, de duvidosa realização, de que a guinada seja dada à revelia ou mesmo contra a estratégia do núcleo decisório que orbita em torno do presidente, seja qual for esse núcleo. O lapso de tempo é curto e o espaço eleitoral do centro (potencialmente vasto, conforme pesquisas), parece ir caindo quase grátis no colo da centro-direita, ou de uma direita que anexe o espólio do bolsonarismo.

Para a primeira hipótese (do eleitorado de centro ser capturado por uma centro-direita mais autônoma) só há na área, até aqui, Eduardo Leite, provavelmente só para marcar posição. Para a segunda hipótese (de cair no colo de uma direita robusta), Tarcísio de Freitas parece ser a mais factível. Mantidas as atuais condições, o eleitor "de centro" será disputado por esses dois candidatos, mais do que por Lula. Os nomes centristas, com algum potencial eleitoral fora da direita, estão engessados, pensando que estão entrincheirados. É o caso do próprio Lula, que cada vez mais governa menos e fala para o seu cercado.

*Cientista político e professor da UFBA.

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