Em que, então, se sustentaria uma ideia de a esquerda dar um cavalo de pau e descartar aquela que é sua liderança sem rivais, o nome que, apesar das sombras no horizonte, aparece em todas as pesquisas como o único competitivo que ela tem? Desistir dele seria, certamente, caminhar para uma opção fora da esquerda. Deixemos de lado, por ora, o exame da conveniência disso como saída política desejável para o país e perguntemos se há razões de política prática para que a esquerda faça esse movimento.
Do ponto de vista do que se pode definir como
interesse normal e previsível de qualquer força política, a racionalidade e
plausibilidade desse movimento não pode ser imediatamente admitida. Passaria primeiro
por uma autoavaliação pessimista e conclusiva sobre as chances eleitorais do
governismo. Tal conclusão poderia resultar da constatação de que a oposição encontrara
uma candidatura unitária capaz de derrotar o presidente, numa eleição em dois
turnos. Mas a candidatura unitária, assim como a vantagem eleitoral da oposição,
são hipóteses ainda distantes de se consolidarem como tendências. Examinemos em
separado cada uma das duas hipóteses.
Paira sobre a hipótese da unidade da oposição
o espectro de Jair Bolsonaro sobre o conjunto da direita brasileira. Inexiste
setor desse campo que possa dispensar o apoio do ex-presidente sem incorrer
numa imprudência eleitoral. Pode-se cobrar da direita que pense no país e
recuse essa contaminação extremista com bem mais propriedade do que se pode,
com o mesmo argumento, cobrar de Lula que desista da reeleição e da esquerda
que renuncie ao protagonismo que a condição do presidente lhe dá. Afinal, é bem
recente a experiência do país com a devastação social pela pandemia e com o
risco de ruína institucional trazidos pela passagem da extrema-direita pelo
governo. Politicamente é possível e até intuitivo criticar e, no limite,
rejeitar qualquer candidatura que flerte com o risco de retorno daquela
experiência, ainda que mitigada. Mesmo
assim, do ponto de vista analítico, é irrealista, também no caso da direita,
esperar que abra mão do óbvio fator de competividade eleitoral que é o apoio de
Bolsonaro.
Por outro lado, esse apoio, a depender dos
termos em que ocorrer, pode inviabilizar a ampliação de qualquer candidatura
para fora dos muros da direita. E não é crível que outra candidatura, sem a
prévia popularidade in natura do ex-presidente, possa vencer Lula se
entregar a ele o eleitorado de centro, o que é provável de ocorrer - mesmo com
todo o mau trato a que o populismo lulista tem submetido esse tipo de eleitor -
se Bolsonaro, inelegível, ou mesmo preso, for presença destacada na campanha ou
na chapa, ou obtiver do candidato compromissos públicos estritos com pautas da
extrema-direita.
Tudo isso poderia levar a que a
extrema-direita, sendo privada da elegibilidade do seu líder, tivesse o
realismo de ser discreta e menos radical nas exigências de compromissos prévios
para que o seu apoio não inviabilize uma candidatura competitiva e mais
moderada do que seria a de Bolsonaro ou outra que o representasse diretamente.
E para compensar esse recuo estratégico, usar a própria moderação do candidato
majoritário como biombo e sombra para eleger deputados, senadores e até
governadores radicais que pudessem maximizar a pressão sobre o novo governo, em
caso de vitória.
Mas não é assim que a banda toca para a
extrema-direita. Onde se cogita que possa querer preservar um lar em comum com
toda a direita, ela é revolução e, dentro dessa lógica, despreza o raciocínio
acumulador de forças da política democrática. Sua húbris é o confronto
porque é dele que retira a força destruidora que persegue. Políticos de direita não bolsonaristas (eles
existem, é bom não esquecer) podem contracenar com a extrema-direita a ponto de
se deixarem confundir com ela, por cálculo racional, mas não têm direito a
ilusões quanto a esse ponto. Comutativamente, Bolsonaro sabe que não pode
confiar que políticos de direita com pretensões majoritárias ajudem a
ressuscitá-lo politicamente por causa do seu recall eleitoral. Mais
provável é que se beneficiem desse recall ao tempo em que tentem fazer
de sua condenação penal uma morte política irreversível. Por essas duas razões,
que formam uma reciprocidade negativa, a unificação completa da direita com o
bolsonarismo possui baixa probabilidade.
A unificação dependeria de uma mudança radical na correlação de forças
interna entre as duas direitas. Como nem o bolsonarismo exibe (como tem ficado
claro em eleições de diversos níveis desde 2020) uma vitalidade de fenômeno
eleitoral a ponto de prescindir da candidatura do seu chefe, nem existe, na
outra direita, um fenômeno de popularidade que equivalha ao do chefe da primeira
banda, o atual lusco-fusco continuará até que fique definitivamente claro para
o grande público que Bolsonaro não poderá ser candidato. Esse desfecho está
próximo e a recente entrevista do senador Flavio Bolsonaro, recheada de ameaças
a longo prazo, deixou evidente a consciência de que a curto prazo estão
derrotados e lhes resta apoiar um candidato fora do seu grupo ou cometer um
haraquiri.
A perda de força relativa da extrema-direita
não decreta a unificação da direita. Sempre haverá espaço para candidaturas
extremistas “puro sangue” enquanto o campo moderado da direita não estiver, ele
mesmo, unificado (hoje há outros nomes, além do governador de São Paulo). Essa
é a condição de competitividade eleitoral necessária para exercer força de
gravidade sobre a extrema-direita sem fazer a ela concessões politicamente
comprometedoras e também para atrair placas estagnadas ao centro.
Chega-se ao exame da segunda hipótese (de
haver na direita candidatura competitiva por si), cuja confirmação geraria
movimentos de adesão no centro, dentro e fora do chamado centrão e de reação na
esquerda e em setores de centro que estão dentro do governo. A concretização
dessa hipótese não depende apenas de um nome que se destaque mais em pesquisas.
Aliás, pelas características da direita não radical, essa não é variável
central. A popularidade, não sendo prévia, terá que ser construída e isso é
missão, inicialmente, da política convencional, para em seguida ser confiada à
comunicação política.
A liderança do Congresso, por exemplo, assim
como os partidos de direita e centro-direita ali confortavelmente instalados, precisam
decidir se já lhes interessa disputar o Poder Executivo em 2026 ou se ainda
precisam consolidar seu poder no Legislativo por mais um ciclo eleitoral. Os
governadores do campo da direita precisam definir se lhes interessa um espaço
de articulação comum para influir nas eleições e num futuro governo ou se vão
preferir emular, em seus estados, o legado retórico do bolsonarismo sem
Bolsonaro candidato ou, ainda, se depois de fazerem oposição ao governo Lula
durante três anos, vão se aproximar dele em troca de benesses eleitorais
federais de última hora.
A esse segmento da elite política - cujo
poderio político aumentou com assentos parlamentares, com posições em
ministérios e nos estados, obtidos graças a votações expressivas conquistadas
em eleições recentes - e a seus partidos, cujo poderio institucional aumentou
muito em razão de reformas pontuais na legislação partidária e eleitoral realizadas
desde 2016, cabe essas decisões estratégicas. Mas elas sempre podem ser
anuladas pela rebeldia do eleitorado, alimentada pela “polarização afetiva”. Se
o potencial dessa polarização é inevitavelmente aumentado pelas redes sociais,
pode ser matizado se, fora delas e também tentando usá-las, essas facções da
elite política apostarem num discurso esvaziado de ideologia e que se atenha a
polarização política entre oposição e governo. Se farão isso ou não é algo a
ser visto adiante e tem íntima relação com as conexões sociais desse segmento
político.
A
direita nunca foi um campo político fechado em si. Hoje, diante da inclinação
conservadora do eleitorado brasileiro, o é menos ainda. São múltiplas suas
possibilidades de conexão com distintos agrupamentos sociais, o que aumenta a
de conquistar aliados no mundo político. Para fazer frente a isso seria preciso
que seus adversários na esquerda, ou no centro, estivessem concentrados e
unificados não em torno apenas de um nome, mas também de linhas programáticas
hoje invisíveis a olho nu. As expectativas de sua formulação foram inteiramente
depositadas num governo que falhou nisso. Em outras palavras, a oposição não
tem nome unificador, mas parece ter um constrangedor predomínio na comunicação
com a sociedade ou, pelo menos, com os setores de opinião cujos interesses
vocaliza.
Parece, mas não necessariamente é e será
assim. Se não ganhar autonomia real de discurso e de movimentos em relação ao
bolsonarismo, essa direita, mesmo unificada e competitiva poderá voar, mas transportará
chumbo nas asas. Será muito difícil a Tarcísio de Freitas ou outro candidato de
direita convencer eleitores de sua moderação se tiver a mulher de Bolsonaro na
chapa, se veicular ameaças a ministros do STF ou se fizer acenos de anistia a
golpistas.
Assim, é provável que, mantido ou evoluindo o
quadro de dificuldades, o campo do lulopetismo fique preso numa armadilha, que
é um dilema entre mudar seu foco populista para armar novo jogo pelo meio do
campo, ou permanecer numa retranca agressiva e confiar no erro do adversário
para ganhar o jogo novamente por uma bola. Esse dilema afeta inclusive as suas
cabeças mais lúcidas que, por realismo partidário, tendem a acompanhar a maré
dominante e a não contestar o chefe. O presidente é o único ator capaz de mexer
pedras para criar, na esquerda, um movimento em direção ao centro, equivalente
ao que se assiste no campo da direita, apesar das contradições que a fazem
avançar aos solavancos. Lula faria isso se aceitasse as implicações do
diagnóstico de que a reeleição é difícil. Mas essa compreensão é incompatível
com o perfil político do ator em questão. Se em algum momento essa realidade se
impuser, será em momento tão tardio que a candidatura escalada (Haddad, por
exemplo) não terá como fazer mais do que foi feito em 2018, isto é, guardar o
lugar do PT como protagonista da oposição entre 2026 e 2030. Com o adendo: algo
ou alguém será responsabilizado em público por uma eventual derrota que a política
hegemonista constrói desde que as urnas foram abertas, em outubro de 2022. Antes
de 01.01.2023, quando Lula subiu a rampa pela terceira vez, a mensagem dele e
do seu partido já era "ou nós, ou o dilúvio". Se vier, de fato,
depois, o dilúvio ou o abismo, é da tradição que se coloque a culpa nos
"outros". A pergunta é: e se a derrota vier, sem trazer o dilúvio?
A exorcização dos fantasmas que paralisam a
política brasileira há mais de dois anos depende justamente do que o PT teme: a
eficácia do STF e da sociedade em concentrar seus focos - tanto o da decisão do
primeiro, como o do apoio da segunda - na punição dos responsáveis pela
conspiração golpista que fracassou em dezembro de 2022 e em parar de dispersar
esse foco, dando peso equivalente ao esperneio pós golpista de janeiro de 2023.
Uma nova lógica não se instalará se não
partir de algum lugar, no espectro político brasileiro, distinto dos dois polos
e também da constelação de centro-direita que nove entre dez analistas
cotidianos da política nacional insistem em chamar de centrão, termo que
confunde, mais do que ilumina, os diversos gatos, lebres, leões e raposas; ou de
bolsonarismo, aí por confusão consciente e politicamente orientada.
A quem (lideranças e partidos) ocupa ou diz
ocupar um lugar de centro distinto de tudo isso, é preciso perguntar o que
efetivamente quer. Noves fora o caso do governador gaúcho Eduardo Leite (que
tem tentado dizer o que quer, com escassa audiência até aqui), a parte mais
relevante e expressiva desse hipotético centro democrático está, neste momento,
mal instalada dentro do governo Lula. Logo, essa pergunta precisa ser feita a
políticos como Geraldo Alckmin, Simone Tebet e Marina Silva.
A Marina, para saber em que direção proporá
que vá o seu pequeno partido, para o qual a sua palavra é decisiva e,
principalmente, para saber dela que tipo de política considera mais adequada à
primazia que ela sempre confere à pauta ambiental. Comentei esse assunto em
artigo específico, nesta coluna, há três semanas (“Sobre Marina Silva e mais
além”, em 31.05.2025).
Ao vice-presidente da República é difícil
perguntar algo, mesmo que se veja indícios de desconforto seu para com rumos
atuais do governo e para com os que se desenham mais claramente à medida em que
as eleições se aproximam. Alckmin acha-se - institucionalmente e eticamente - atado
ao compromisso da chapa majoritária que integrou ao lado de Lula, em 2022. É melhor
perguntar ao prefeito João Campos, o novo líder do PSB, para saber até onde ele
tem condições de - e está disposto a - levar uma eventual reorientação política
do seu partido, especialmente após terem se tornado públicas as cogitações do
núcleo decisório que trata da reeleição de Lula de substituir Alckmin na chapa
de 2026. Talvez se possa, com esse monitoramento de Campos, saber até que ponto
ele e Alckmin estão, ou estarão, articulados.
No caso da ministra do Planejamento, a
discussão sobre seu futuro já transborda dos bastidores para o noticiário e o
colunismo político. Há especulações sem fonte certa sobre razões do relativo
desaparecimento de Simone e da sua pasta do primeiro plano da cena política e
balões de ensaio sobre ela ser uma das cogitações para a vice de Lula em 2026,
substituindo Alckmin. Mas na semana passada surgiu matéria de maior
consistência (”Uma ministra à parte das decisões centrais da política
econômica” - O Globo, 15.06.25), assinada pela jornalista
Jennifer Gularte. Ela permite interpretações políticas sobre as razões da
situação descrita no título. A primeira é que a situação é consequência da
postura excessivamente recuada de quem não cuidou, a contento, do compromisso
com o seu próprio pensamento e, consequentemente, descuidou também da
confiabilidade da sua reputação na própria retaguarda, onde está o capital
político que a fez ministra. Entendo que essa é uma avaliação persuasiva. Mas a
matéria pode ter uma mensagem ambígua. Um outro lado dessa lua que parece
minguante pode ser a descrição de uma postura de Tebet não como uma atitude
política mas como comportamento leal e correto de ministra de um governo que
não é parlamentarista e cujo chefe é o presidente da República.
Se ambas as percepções tiverem lá suas
razões, é lógico chegar à conclusão de que Tebet já deveria ter saído do
governo, para não perder a credibilidade, seja, pela primeira interpretação,
por continuar omitindo seus pontos de vista, seja, no caso da segunda, pelo
risco de, explicitando-os, ferir, eventualmente, a liturgia do cargo. Mas a "não lógica" da sua permanência
muda no cargo pode não ser ilógica. É possível que Tebet considere até bom que circule
a versão de que sua opinião está sendo ignorada para, mais adiante, isso lhe
servir de argumento de desembarque. Pode ser. O problema é saber se a sua
torcida, há tanto tempo vendo-a no banco de reservas de um jogo em campo
acanhado, já não terá desistido e passado a torcer por alguém em outro jogo,
jogado num estádio maior.
Esses são o centro e a centro-esquerda que
entraram no governo e deixaram-se, em variados graus, subsumir na onda crescentemente
populista do seu chefe. Já o centro que está fora do governo e do “centrão” é
fraco, sem musculatura política e eleitoral, seja para liderar ou para
pressionar. Se não for adubado por forças hoje governistas, acabará sugado por
um dos polos, ou por ambos. O que fará ou deixará de fazer é menos relevante
que movimentos atuais ou futuros realizados no âmbito dos polos.
Mas o movimento ao centro a que me referi
anteriormente é uma necessidade da esquerda, independentemente do que possam ou
queiram fazer as forças centristas. Ele é necessário para que a esquerda se reconecte
ao eleitor. Isso se ela tiver, de fato, uma expectativa majoritária de poder e
não estiver resignada a entregar a eleição ao campo oposto, em troca do lugar
de futura oposição.
Para fazer um movimento desse tipo, Lula
teria que dar uma guinada “gorbatcheviana”. Parece ser pedir demais, se
considerado, como já feito, perfil e antecedentes, dele e do seu partido. Mas
se mantida a inércia, restará a lógica política de fatos consumados que marca a
relação entre ambos e seus aliados. E a expectativa, de duvidosa realização, de
que a guinada seja dada à revelia ou mesmo contra a estratégia do núcleo decisório
que orbita em torno do presidente, seja qual for esse núcleo. O lapso de tempo é
curto e o espaço eleitoral do centro (potencialmente vasto, conforme pesquisas),
parece ir caindo quase grátis no colo da centro-direita, ou de uma direita que anexe
o espólio do bolsonarismo.
Para a primeira hipótese (do eleitorado de
centro ser capturado por uma centro-direita mais autônoma) só há na área, até
aqui, Eduardo Leite, provavelmente só para marcar posição. Para a segunda hipótese
(de cair no colo de uma direita robusta), Tarcísio de Freitas parece ser a mais
factível. Mantidas as atuais condições, o eleitor "de centro" será
disputado por esses dois candidatos, mais do que por Lula. Os nomes centristas,
com algum potencial eleitoral fora da direita, estão engessados, pensando que
estão entrincheirados. É o caso do próprio Lula, que cada vez mais governa
menos e fala para o seu cercado.
*Cientista político e professor da UFBA.
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